O cara por trás do jornal do Lira Paulistana

por Juliana Sayuri

Fernando Alexandre criou em 1981 um dos primeiros guias de cultura, lazer e serviços do Brasil, onde publicou autores como Caco Barcellos, Caio Fernando Abreu, Maria Rita Kehl e Paulo Caruso

No fim de uma tarde de sexta-feira de outubro, uma Kombi estacionou em frente a uma livraria na esquina entre as ruas da Consolação e Bela Cintra, em São Paulo. De lá saíram duas portas de madeira e quatro cavaletes, que foram improvisados como banquinha para o lançamento do jornal Lira Paulistana. Depois de uma hora de festa, marcada por fogos de artifício, fanfarra e garrafões de vinho branco servido à vontade na Avenida Paulista, os organizadores se lembraram de que não tinham pedido autorização à prefeitura para o convescote, nem pensado num esquema de segurança para socorrer os beberrões que se empoleiravam na mureta do viaduto da Avenida Rebouças. Às pressas, eles recolheram tudo e foram embora, dando fim à festa-relâmpago.

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Relâmpago também foi a vida do tabloide, que teve apenas 12 edições semanais, veiculadas entre outubro e dezembro de 1981. Idealizado pelo jornalista Fernando Alexandre Guimarães Silva, então na casa dos 30 anos, Lira Paulistana foi um dos primeiros cadernos dedicados à cultura da cidade de São Paulo: antecedeu, por exemplo, o Caderno 2, d'O Estado de S. Paulo (lançado em abril de 1986), e a Veja São Paulo, a Vejinha (de setembro de 1985).

"O Lira foi pioneiro na divulgação da tríade cultura, lazer e serviços. Fernando Alexandre e a equipe do jornal ocuparam a linha de frente desse propósito. Foi uma usina criativa, num tempo pré-internet, utilizando equipamentos analógicos, de forma artesanal, para divulgar o que ocorria nas artérias de São Paulo", afirma o historiador Tiago João José Alves, 32, doutor pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que desenvolve projeto para digitalizar o acervo do jornal na íntegra, a fim de disponibilizá-lo a outros pesquisadores da área. Atualmente, os arquivos originais estão na casa de Fernando, em Florianópolis.

"Minha vida é uma revistinha pornográfica aberta", diz Fernando Alexandre, o Fernandão, que antes mesmo do jornal ajudou a fundar o centro cultural Lira Paulistana, um antigo depósito de ferragens transformado em casa de shows, cinema, editora, gravadora e teatro – o nome remete ao livro de poemas de Mario de Andrade (1893-1945). "Desculpa, meu passado está muito bagunçado", ressalva o jornalista de 68 anos, enquanto revira uma mala marrom com cartazes de eventos e edições que produziu ao longo de sua carreira.

Ativo entre 1979 e 1986, o centro marcou a cultura alternativa e independente no fim da ditadura civil militar: era um pequeno porão na Rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, com uma apertada arquibancada de madeira e um palco disputado por jovens artistas como Itamar Assumpção, Tetê Espíndola, Ira!, Titãs, Kid Vinil, Lanny Gordin, Língua de Trapo, Ratos de Porão e Ultraje a Rigor. Tido como um reduto de militância musical, o lugar também teve participação ativa na campanha das Diretas Já, em 1984. Entre os habitués estavam estudantes da PUC e da USP, além de nomes como Arrigo Barnabé, Maurício Kubrusly, Marcelo Tas e Fernando Meirelles – na vizinhança, o cineasta abriu sua primeira produtora, a Olhar Eletrônico. Hoje, o endereço emblemático do Lira virou uma lanchonete.

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À época editor da Gazeta de Pinheiros, Fernando morava numa vila de casas geminadas na Rua Capote Valente. Passava em frente ao Lira Paulistana todos os dias, até que pediu demissão e se uniu a Wilson Souto (o Gordo), Riba de Castro, Plínio Chaves e Chico Pardal para compor o núcleo duro do centro cultural. Ali o jornalista elaborou o tabloide de 28 páginas, com reportagens e roteiro cultural da capital paulista, inspirado em modelos como Village Voice, de Nova York, e Time Out, de Londres.

"O Lira foi um projeto ambicioso. O Lira de papel consolidou uma aposta do centro cultural, que era mostrar para São Paulo o que São Paulo tinha. Era uma tarefa titânica ", comenta Riba, por Skype, que desde 1991 vive em Barcelona. "O Lira era passado para mim. O Lira é passado, aliás. Mas bateu uma nostalgia depois da morte do Itamar [Assumpção, 1949-2003, músico e amigo do centro, onde gravou seu primeiro disco]", conta Riba, 61, que decidiu desengavetar a memória da casa no documentário Lira Paulistana e a vanguarda paulista (2008) e no livro Lira Paulistana: um delírio de porão (2014).

Território livre de Vila Madalena

Natural de Maceió, Fernando rodou São Paulo por quase um ano para montar o projeto do jornal. Do centro à periferia, mapeou, fichou e cadastrou 62 teatros e outros 13 palcos que recebiam montagens teatrais, 180 cinemas, 44 cineclubes, 10 galerias de fotos e 15 espaços de eventuais exposições de arte, 163 centros acadêmicos, 11 movimentos negros, 9 feministas, além de salões de gafieira, forró, bailes, associações de bairro e diretórios de partidos – no primeiro editorial, o periódico se propõe a divulgar comícios e encontros "do PDS, PT, PMDB, PDT, PP e que tais" e "as manifestações das chamadas minorias".

O semanário contou com colaborações de jornalistas como Caco Barcellos, Caio Fernando Abreu, Inimá Simões, Maria Rita Kehl e Paulo Caruso, entre outros. Nos melhores dias, o projeto mobilizou mais de 30 pessoas na redação, abrigada no segundo andar da nova matriz, um sobradinho na Praça Benedito Calixto alugado em janeiro de 1981. Da editora do Lira Paulistana saiu o primeiro livro do cartunista Glauco Villas Boas, Minorias do Glauco, em maio de 1982. Também foram impressos cartazes e filipetas na grafiqueta da casa, que convidava "poetas, seresteiros, namorados, militantes, feministas, cineastas, atores, pequenos proprietários, feirantes, festeiros, jornalistas, mulherengos, artistas, pintores, filósofos, marceneiros, estudantes, escritores, freelancers, desocupados e curtidores em geral do território livre de Vila Madalena, Pinheiros e adjacências" a imprimir suas ideias.

Fernando montava as páginas do periódico na redação, mas as levava para impressão em uma gráfica maior, do Diário do Comércio e Indústria (DCI), na Rua Major Quedinho. Esperava a produção na madrugada de quinta-feira, tomando uma cerveja no Bar das Putas (o atual Sujinho), na Rua da Consolação, e na manhã de sexta levava os exemplares para distribuição a bordo de sua Brasília vermelha.

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O semanário durou apenas três meses, mas influenciou a imprensa da época. Em 1982, dois jornalistas da revista Veja bateram à porta do sobradinho do Lira, querendo conversar sobre um projeto. Fernando não lembra dos nomes dos repórteres – mas recorda-se que, tempos depois, numa noite de sexta-feira, um motoboy lhe entregou um envelope na Praça Benedito Calixto: era a primeira edição da Vejinha, com uma dedicatória de próprio punho de um jornalista. A primeira “carta do editor” da revista foi assinada por Victor Civita (1907-1990), mas, como o exemplar de Fernando se perdeu numa mudança, não é possível confirmar se a assinatura era de fato do fundador da Editora Abril.  

"Tudo era transgressão no Lira, até o jornal. A parte mais divertida era fazer pequenas 'pichações' no paste-up, quer dizer, escrever umas palavras nada a ver nas margens das páginas montadas, antes da impressão final. Era o maior tesão", lembra Fernando. Nos tempos do Lira, o editor criou o Professor Delyra, "um astrólogo anarquista que prevê o passado e sente saudades do futuro", algo na linha bem-humorada do finado Chantecler, da revista piauí.

Segundo as memórias de Fernando Alexandre, o Lira Paulistana desmoronou pouco a pouco, devido a divergências internas entre os fundadores – e ele foi o primeiro a sair: "Eu me apaixonei por uma gata curitibana e me mandei para o sul. Primeiro Curitiba, depois Florianópolis."

Ilha bruxo-paradisíaca

Na verdade, sua trajetória tortuosa o levou para São Paulo, Curitiba e Florianópolis diversas vezes. "Sou reincidente, não réu primário", brinca. Ou, como se definiu em entrevista ao livro Musa Paradisíaca, antologia cultural organizada pela escritora Josely Vianna Baptista e pelo artista Francisco Faria: "O cabra da peste vanguardeiro da pauliceia, que fez jornalismo e passou frio em Curitiba, e virou matuto desterrado nessa ilha bruxo-paradisíaca".

Na Fundação Cultural de Curitiba, o jornalista organizou uma Semana de Arte e Erotismo, com a ajuda de um frei dominicano, Paulo Cesar Botas, em 1985. "Tinha Paulo Leminski, Roberto Freire, Ruy Guerra. Armamos a história toda. Aí fomos conversar com o prefeito [Maurício Fruet, 1939-1998]. Ele disse: 'Puta merda, vocês só me aprontam. Preciso fazer strip-tease na abertura? Não? Então, toca'. Foi um escândalo, cidade careta e tudo mais, mas rolou. Imagina isso agora, nessa movimentação de direita contra Queermuseu e tal...", diz, entre risos.

Ao lado da desenhista curitibana Andrea Ramos, sua então companheira, Fernando se mudou para a capital catarinense. "Aí radicalizei de verdade. Fui urbano a vida inteira e queria um tempo. Escolhemos uma casa isolada na praia do Saquinho, acessível apenas por trilha de uns 30 minutos. Queria outra experiência, horta, entalhe de madeira, conserva de marisco", conta.

A inspiração insular lhe fez desengavetar uma ideia antiga: um dicionário de gírias e expressões do "manezinho", apelido carinhoso para os nativos de Florianópolis. Fernando resgatou anotações feitas em bilhetes de ônibus, contas de bar e sedas para redigir em uma máquina Lettera 44 o Dicionário da ilha: falar e falares da ilha de Santa Catarina, que foi impresso pela primeira vez em 1994 e se tornou um best-seller nas livrarias da cidade.

Três anos depois, Andrea e Fernando construíram uma casa de tijolo à vista na Costa de Dentro, no sul de Florianópolis. Foi nesta casa que o jornalista recebeu a reportagem da Trip.

Na entrada estão um Uno branco com lanterna quebrada e recados rabiscados à mão: "deposite seu comunicador intergaláctico aqui: converse!", diz um deles. Para o anfitrião, smartphone é uma "tornozeleira eletrônica". Mas, ironicamente, internet é a principal ferramenta de trabalho do editor, que atualmente dedica seu tempo a um blog sobre a tradicional pesca de tainha no sul da ilha.

Outro recado diz "zona livre de Papai Noel". Aposentado, Fernando é um senhor de barba branca, óculos quadrados e um abdome proeminente – mas, esclarece ele, a referência natalina se devia apenas às festas de fins de dezembro.

Fã de música de diversos estilos, cerveja e cachaça com erva-baleeira, ele brinca que sofre de "excesso de ar": artrite e artrose. Com a mobilidade reduzida por causa da dor lancinante nas articulações, o jornalista se recolheu nos últimos tempos. Desde que se divorciou, no ano passado, mora sozinho.

À primeira vista, Fernando Alexandre parece ter escolhido viver como um ermitão, em uma casa escondida nos confins de uma ilha, cercada por mata atlântica – à noite, o silêncio só é rompido pelo som de sapos-martelo e cigarras. Entretanto, ele diz que não gosta de ficar só: "Sou dependente químico de pessoas." Além da companhia da gata Olívia, ele recebe visitas esporádicas como a do artista alemão Hieronymus Parth, vizinho sexagenário e seu amigo há três décadas, que estava presente naquela tarde da entrevista.

Depois da experiência do Lira Paulistana, Fernando ficou quase dez anos sem pôr os pés na capital paulista. Voltou apenas para gravar seu depoimento ao documentário dirigido por Riba de Castro, por volta de 2011. "É engraçado. Saí da vanguarda paulistana para a retaguarda da cultura catarinense, popular. Mas não tenho saudosismo. Saudade, só tenho de caminhar", ele diz, arrastando a cadeira para perto de seu desktop e trocando a trilha sonora do new wave japonês Shigeru Umebayashi por Chopin.

Créditos

Imagem principal: Rodrigo Sicuro

Fotos: Rodrigo Sicuro

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