Aos 57 anos, Emil Ferris foi a quadrinista mais premiada de 2018, depois de reaprender a desenhar
A história de Emil Ferris com os quadrinhos começou quando ela se viu, aos 40 anos, em uma cadeira de rodas como uma filha de 6 anos para criar sozinha. Em 2001, ela foi picada por um mosquito que transmitiu a febre do Nilo Ocidental, doença que em poucas semanas paralisou suas pernas e os movimentos da mão direita, que ela usava para trabalhar como ilustradora e designer freelancer. Com os trabalhos minguando, decidiu reaprender a desenhar com a mão esquerda, ingressando na School of the Art Institute of Chicago (SAIC).
O esforço valeu a pena. Em 2017, a norte-americana lançou a graphic novel Minha coisa favorita é monstro, que chegou às lojas brasileiras no dia 11 de março deste ano pelo selo Quadrinhos na Cia. A HQ levou cinco anos para ficar pronta. Embora seja uma obra ficcional, traz elementos da biografia da autora, que se inspirou na própria infância e nas experiências de familiares e amigos. A história gira em torno de Karen, uma garota de 10 anos que tem a forma de “lobismoça” e é frequentemente atacada por sua aparência. Enquanto aprende a lidar com as agressões dos colegas da escola, ela tenta desvendar o assassinato de sua vizinha de cima, uma sobrevivente do Holocausto, narrando tudo em seu diário. O cenário é a agitada Chicago dos anos 60, marcada por conflitos políticos e manifestações pelos direitos civis.
A graphic novel é "um tipo de monstro”, como disse um dos editores para quem Emil apresentou o trabalho. E ela concorda. São 416 páginas impressas como se fossem folhas de caderno, todas desenhadas com caneta esferográfica. “Quando eu era criança, era tudo o que eu tinha para desenhar. Meus pais não tinham muito dinheiro”, conta a quadrinista, que não tem ideia de quantas canetas usou para finalizar o livro, mas calcula algo na casa dos milhares. Com tantas peculiaridades, o livro foi recusado por 48 editoras até ser lançado, em 2017, pela Fantagraphics Books. A espera valeu a pena: a quadrinista foi a mais premiada em 2018, levando as principais categorias (melhor álbum, melhor roteirista/desenhista e melhor colorista) do prêmio Eisner, nos Estados Unidos, e o Fauve d’Or, prêmio do Festival de Angoulême, na França.
Em entrevista por telefone, Emil Ferris contou à Tpm sobre sua afinidade com os monstros, a forma que encontrou para lidar com a febre do Nilo Ocidental e o processo de criação de Minha coisa favorita é monstro.
De onde veio sua paixão por monstros? Meu avô tinha uma loja em que vendia peles, eu passava muito tempo lá. Talvez aqueles animais mortos tenham sido meus primeiros monstros. Eu também passava temporadas no México, de onde minha mãe veio, e lá existem muitas tradições ligadas à morte. Via esqueletos e criaturas que são essencialmente monstros. Quando era criança, também costumava ficar acordada para ver os creepy shows que passavam tarde da noite na televisão. Foi assim que conheci Drácula, entre outros filmes de terror. Aquilo mudou minha vida.
Quais artistas dos quadrinhos são referência para você? Chris Ware [autor de Jimmy Corrigan - O Menino Mais Esperto do Mundo], Art Spiegelman [Maus] e Lynda Barry [What it is, sem tradução no Brasil] – eu amo muito ela, leio quase toda semana.
A narrativa de Minha coisa favorita é monstro parece um fluxo de consciência, algo caótico. Você escreveu o roteiro todo antes de começar a desenhar? Eu nunca escrevi um roteiro, queria deixar “a porta aberta”. O desenho me diz mais coisas do que o texto. Eu faço um desenho e isso traz informação sobre o personagem e sobre a história.
Você disse em entrevista que ficou isolada enquanto produzia o livro. Por quê? Quando comecei, eu realmente não conhecia pessoas que faziam quadrinhos. Foi um processo muito interno, porque eu estava pensando essencialmente em mim, no que foi ser criança, o quanto foi difícil crescer. Só no final do processo eu tive amigos que me apoiaram e leram a história.
Por que decidiu desenhar tudo com caneta esferográfica? Era tudo que eu tinha na minha infância, meus pais não tinham muito dinheiro. Eu só queria ser autêntica da mesma forma que era quando criança e que o livro se parecesse com os meus cadernos. Caneta esferográfica não é muito comum nos quadrinhos, mas, quando comecei, não sabia disso.
Como a febre do Nilo afetou seu desenho e sua vida? Eu perdi os movimentos da minha mão direita e tive que reaprender tudo com a esquerda. Ainda tenho alguns problemas com minhas pernas. Quando estava numa cadeira de rodas, não podia sair muito de casa. A partir disso, fazer um livro, cuidar da minha filha e frequentar a fisioterapia para tentar voltar a andar eram formas de atrair uma vibração de amor para mim.
Quarenta e oito editoras recusaram o projeto. Por quê? O livro é diferente dos quadrinhos tradicionais, acho que os editores ficaram surpresos por ter muitas páginas. Parece um pouco com os livros ilustrados do século 19, da literatura. Eu amo isso. Um editor disse que o livro era um tipo de monstro e eu concordei!
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Você é uma das poucas mulheres a ser premiada nas principais categorias do Eisner e do Angoulême. O que pensa sobre isso? Confesso que não sou muito das mídias sociais e não acompanho muito o que elas têm feito, como têm se mobilizado. É claro que eu apoio mulheres quadrinistas, mas não me preocupo muito sobre como a exclusão opera. Tento ficar focada no meu trabalho.
Hoje, você se dedica exclusivamente aos quadrinhos? O que diria para mulheres que querem trabalhar com isso? Estou me dedicando somente aos quadrinhos agora. Eu recomendo começarem mais jovens do que eu [risos], porque é um trabalho duro. E, claro, nunca desistir.
Está trabalhando em um novo projeto? Sim, vai ser a continuação de Minha coisa favorita é monstro, ainda com a personagem Karen. Também farei livros sobre outros personagens, mas ainda não posso falar muito. O que posso dizer, com certeza, é que terão a ver com horror, mágica e monstros, que são coisas que amo.
Por que você é tão otimista? Eu levava dois dias para terminar uma única página, trabalhando 12 horas em cada um. E as pessoas leem bem rápido, em cinco minutos ou menos. Eu poderia ficar depressiva com isso, a menos que achasse um fluxo mágico, a certeza de que iria transmitir exatamente o sentimento que eu queria. Era a minha chance de poder tocar as pessoas, transformar algo nelas. Eu fiz e estou fazendo o que posso. Isso é sobre ter esperança.
Créditos
Imagem principal: Emil Ferris
Ilustrações Emil Ferris