Laerte reflete sobre sua entrada no universo feminino no primeiro documentário brasileiro da Netflix
As primeiras cenas de Laerte-se mostram ela insegura, tentando desmarcar a entrevista que faria para o documentário em que reflete sobre sua transição. Depois de viver quase 60 anos como homem (boa parte deles como pessoa pública), três filhos e três casamentos, o consagrado cartunista passou a se mostrar ao mundo como mulher, em 2009.
A transição rendeu inúmeras matérias na imprensa na época, incluindo um ensaio nu. Mas Laerte-se, o primeiro documentário original da Netflix produzido no Brasil ( e já disponível na plataforma), vai além e coloca a cartunista no divã, depois de três anos de filmagens. "Eu e Eliane [Brum, codiretora do filme] queríamos fazer um documentário que fosse além do que estava na mídia, e Laerte estava muito exposta. Não fazia sentido para nós começar algo se não fosse diferente", diz a outra diretora, Lygia Barbosa da Silva. "Particularmente, me interessava compreender o percurso de investigação dela, porque me parecia muito mais um caminho de 'desintidades' do que 'identidades'", completa Eliane.
O filme seguiu Laerte por situações cotidianas - na ida da manicure à sua casa, na companhia do neto que o chama de avô, na casa do filho para tentar resolver um problema com seu computador -, enquanto as perguntas das diretoras o faziam refletir sobre sua entrada no universo feminino. A proposta da quadrinista era de que o documentário a acompanhasse no processo de implante dos seios, uma dúvida que percorre o filme. Eliane chama a atenção para um paralelo: "Me pareceu absolutamente extraordinário que ela iniciasse uma reforma da casa, enquanto pensava se reformaria o corpo. E todas as questões identitárias que este ato significa".
Por diversas vezes ao longo do documentário, Laerte respira fundo; em debates sobre a questão de gênero não sabe o que dizer, se desculpa, mas acaba arrancando risos da plateia. "Estou fazendo uma investigação da mulher que posso ser", diz. "O que me surpreendeu foi a capacidade dela de carregar sua interrogação pela vida. Sabia disso, percebia antes mesmo de conhecê-la. Mas não imaginava o quanto era persistente nisso", completa Eliane.
O documentário vai construindo um paralelo entre as indagações da cartunista, autora de Piratas do Tietê e Deus, e suas tiras, que funcionam como um divã - Hugo/Muriel é a reflexão pública de sua transição. "Como Laerte diz, os personagens são uma espécie de batedores dela. Eles experimentam a realidade antes dela mesma. Acredito que com todos os artistas seja um pouco assim, mas nunca tinha testemunhado alguém fazer essa síntese de vida-obra-vida com tanta visceralidade", diz Eliane.
"Todos temos questionamentos e nem sempre temos repostas e quando Laerte faz isto em seu trabalho é muito interessante, é muito bom a gente ler uma tirinha assim, e pensar: 'Eu também não preciso ter repostas para tudo!'", diz Lygia. "Não é um filme para dar respostas que apaziguem quem o assiste, mas um filme que permite inquietações novas a quem estiver disposta a se arriscar nelas", conclui Eliane.
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