Precisamos das Matheusas vivas, todas

por Anderson França

Convidamos Anderson França para uma reflexão sobre a invisibilidade LGBTQ+: ”É mais uma pessoa que, ao partir, chegou. Que ao sair, entrou”

Quando uma amiga pediu pra compartilhar a foto do Matheus porque estava desaparecido depois de uma festa, JURO, pensei: meu, deve tá chapadaço no aço chei de aucarróu e geral pelado.

Porque eu já ajudei uma pessoa que desapareceu, mas surgiu três dias depois, que nem Jesus, super dizendo que “não, parça, eu tava bem, só o celular que descarregou”. Lembro que até a Lavigne, da Casa da Paula Lavigne, compartilhou meu pedido de buscas, que no fim, ok, o cara tava vivo, mas porra, liga esse celular.

 

A gente vai ficando cético rolando a timeline.

Porque é muita desgraça.
Aqui, onde eu moro, é tanta mas tanta desgraça por dia, que a gente nem absorveu a morte de Marielle, nem o último tiroteio, há meia hora atrás, aí os cara bota Síria, vagabundo que explode escola, o nortecoreia que ia lavar o âncora do Aprendiz de porrada, depois ficou todo mundo amigo e saíram pra beber com os fiel.

Esse é o ponto.

Corta pra uma semana depois, na madrugada.
Eu acordo, numa rara insônia, e pego o celular pra ler uma notícia que tinha o depoimento do irmão de Matheus.

Merda.

Foi o que eu disse:

Merda.

 

Não ia conseguir lidar com isso. E, de fato, não sei se lidei. Ainda.

Mas era Matheusa.

Não Matheus. Theusa.

Mina que “vira” homem, que vira mina, que não é homem, nem mina, nada.

 

Eu pensei, mano, porra.

Que mundo é esse que eu agora não consigo nem definir o gênero de uma pessoa, mas mano, pense comigo:

 

Eu estava diante de mais uma morte de uma pessoa LGBTQ+, e preocupado com o artigo de gênero, não com a morte.

Fato, quando morre favelado, eu culpo a PM. Quando morre preto, eu culpo branco. Mas quando morre LGBT, eu culpo quem?

Quem matou, até onde se sabe, é traficante. O mesmo traficante que eu tento fazer com que não exista mais, porque quero que libere entorpecente. Mas salvar a pele do cara de ir pro tráfico NÃO O TORNA RESOLVIDO EM TUDO. E ele continuará sendo uma pessoa preconceituosa.

Eu entrei numa crise estranha, às 9 da manhã, sem fazer meu café e me arrumando pela metade pra ir trabalhar.

Eu não fiquei nem pronto, nem inacabado.
Eu fiquei Matheusa.

A realidade e aquele momento não davam conta de mim.
Como a realidade do nosso momento na História não deram dela. Dele.

Eu queria chorar a morte, mas eu não conseguia PEGAR na pessoa. Porque estou tão limitado no bagulho gênero, que ela se tornou fluida, como uma nuvem, fumaça, escapando pelos dedos.

O que me levou a 1 Samuel 16, 7.

É isso mesmo, senhores. Eu sou crente. Fudeu.

Na Bíblia, tem uma parte que diz: “O homem vê o exterior, mas o Senhor vê o coração”.

E o que quer dizer isso, além de uma frase para colocar em adesivo de Bíblia?

Quer dizer que Deus, para se relacionar com a humanidade, observa através dela. Atravessa para dentro. Não está preocupado, esse Deus, com gênero. Classe. Raça. Mas com o que de humanidade existe no sujeito que está DENTRO.

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O atravessamento do olhar de um Deus promíscuo. Que vira a esquina, que decepciona os religiosos, que o chamam de promíscuo, porque ele se relaciona com todos que a igreja não ama.

 


Porque o crente aceitou Jesus, mas agora precisa aceitar o que Jesus falava. E Jesus falava de amor de maneira subversiva e incontrolável. Deus é amor.

E nós só seremos prontos para nos relacionarmos com a humanidade do outro no dia em que atravessarmos o outro com o olhar que busca encontrar o mais precioso dentro dele, a sua essência, a sua imagem e semelhança consigo mesmo, a humanidade dele, que está dentro, como a sua, que não está no seu gênero, sua raça, seu carro, na porra do dinheiro que você tem no banco, as viagens que fez, a merda do tênis de marca que usa, o bairro onde mora,

 

nós estamos sendo impedidos de ver através do outro por causa dos MUROS QUE NÓS CRIAMOS PARA NOS ISOLAR DA HUMANIDADE. Nos tornamos monges em meio a multidões. Caminhamos vazios, em meio a vazios, na estação da Luz às 5 da tarde, sendo que existem milhares de nós em volta. Ilhas. Fuckin ilhas do inferno, sem olhar para dentro, para o lado, para o alto, apenas nós.

E por isso Matheusa só me fez falta na ausência.

E por isso, ao ver o depoimento de  Ton Coff, fotógrafo que a conheceu UM DIA ANTES DA SUA MORTE, e a fotografou para o Jacaré É Moda, projeto do qual ela fazia parte, eu senti por um momento a dor profunda que a morte causa e aquele sentimento fudido de ser interrompido na normalidade dos afetos, como quando na minha TV surgia a mensagem que Marielle havia sido morta.

Eu comecei a ver que eu TINHA MUITOS AMIGOS EM COMUM. E que com certeza, já nos esbarramos nas ruas. E que pessoas que estão comigo, fazendo coisas comigo, estavam dando colo e afeto pra ela, e

 

porra

 

QUANDO FOI QUE NOS TORNAMOS INVISÍVEIS PARA O OUTRO DESSA FORMA?

 

Não me preocupa mais se era ela ou ele, mas sim

a poesia que ela fazia,

o perfume que exalava dos cabelos,

o olhar que nos paralisava

 

coisas que eu

JAMAIS

poderei dizer que senti.

  

Porque ando consumindo tanta desgraça, e tão preocupado com a superficialidade das afirmações, que eu deixei de enxergar dentro alguém que, hoje, sua ausência define o quanto eu precisava dela.

 

A vida vai se tornando um álbum de fotografias, com pessoas que desaparecem.

E, no cenário, essas ausências passam a ser discutidas, mas nós não valorizamos antes.

 

Matheusa saiu do mundo me deixando uma percepção:

eu deixei a minha humanidade morrer. E quando eu morrer, no corpo, a morte virá buscar um corpo drenado por fracassos e insensibilidades.

 

Matheusa é mais uma pessoa que, ao partir, chegou.

Que ao sair, entrou.

 

Não podem mais sair Matheusas. As que estão conosco, as Marielles que estão aqui, nós precisamos delas vivas, todas. Precisamos porque, quando elas saem, a dor da ausência é tão grande, que nem a Maré inteira na Brasil dá conta de silenciar.

Nós precisamos nos atravessar uns aos outros. Receber o outro como eu. Como tu. Permitir o acesso, abrir as senhas da alma. Para que nossos corpos, um dia, enfim, não sejam mais, uns pros outros,

 

estranhos.

Créditos

Imagem principal: Ilustração Carol Ito

Ilustração Carol Ito

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