Milly Lacombe: Era só mais uma história de amor

por Milly Lacombe

”Paulo Vaz foi vítima de transfobia, mas também de misoginia. O falocentrismo em nossa sociedade está entranhado de forma tão poderosa que ele é capaz de contaminar até membros da comunidade LGBTQIA+”

A morte de Paulo Vaz me pegou de sopetão na noite do dia 14 de março. Ao ver a notícia, fiquei alguns segundos olhando para a tela do celular sem conseguir falar ou, como é de costume quando recebemos a informação de que uma pessoa jovem morreu, acreditar. 

Conheci Paulo durante uma gravação de Amor&Sexo em 2018. Ele e Pedro HMC, seu marido, foram ao programa do qual eu era uma das roteiristas participar de uma dinâmica com o casal Daniela Mercury e Malu Verçosa. Nos encontramos no camarim antes da gravação. Pedro, que já tinha sido roteirista de Amor&Sexo, conhecia todo mundo e falava alegremente com quem cruzava seu caminho pelos corredores do estúdio no Projac. Paulo, mais tímido, sorria ao ver o marido falar, gesticular, confraternizar. 

O encontro dos dois, um homem cis e um homem trans, era apenas mais uma história de amor. Eles contaram como se conheceram, como aquele encontro os deslocou de seus lugares emocionais anteriores, como estavam redescobrindo seus desejos e corpos. Me pareceu muito evidente que havia entre eles uma ligação profunda e uma paixão que, ao não conseguir se reduzir ao limite daquelas peles, escorria para fora.

A dinâmica com Daniela e Malu foi divertidíssima. Me lembro de ter sido capturada pela beleza e pela sensibilidade de Paulo, um policial civil que transicionou dentro da instituição e, durante o processo, educou muitos de seus colegas sobre o que era a transexualidade.

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Os dois falaram aberta e corajosamente sobre o improvável encontro, sobre Pedro, um homem cis gay, ter alargado os limites de seus desejos se relacionando com um outro homem cujo órgão genital era uma buceta em vez de um pênis, sobre como Paulo, que nasceu mulher e se entendeu a princípio como lésbica, ter explodido as fronteiras de seus desejos depois da transição. O encontro de Pedro e de Paulo foi um encontro de amor alargado. Um amor que não se restringiu a identidades previamente estabelecidas. Um encontro que, como pedem as grandes histórias de amor, despossuiu os amantes. 

Os grandes encontros não acontecem para nos confirmar, mas para nos reinventar. Eles não confirmam nossos desejos, eles explodem as fronteiras do que achávamos que sabíamos sobre nós mesmos. Eles confundem mais do que explicam. 

As narrativas e os pontos de vistas das pessoas trans estão aí para nos chacoalhar e, a quem aceitar o convite, fica a divina chance de re-inaugurar a própria subjetividade. Mas a luta tem sido até aqui devastadora para essas pessoas. Estudos recentes indicam que cerca de 30% dos homens trans já pensaram em suicídio. O Brasil é o pais que mais mata LGBTQs no mundo (e o que mais consome pornografia LGBTQ também). Somos, portanto, um país de recalcados, um país em perpétua crise de desejo.

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Seria importante entender que corpos trans não querem necessariamente se fincar em um outro gênero. Como diz o filósofo Paul Preciado, “como um homem-trans, eu me desidentifico com a masculinidade dominante e sua definição necropolítica. O que é mais urgente não é defender o que nós somos (homens ou mulheres), mas rejeitá-lo, desidentificarmo-nos da coerção política que nos obriga a desejar o padrão e a reproduzi-lo”.

Pessoas trans não são homens com bucetas ou mulheres com pênis necessariamente. São novas formas de existir para além do binarismo homem-mulher. Ao explodirem o sistema sexo-gênero e levarem nessa destruição os cacos das sexualidades confinadas criam novos mundos possíveis para todos nós. Nas palavras de Preciado: não me pergunte o que eu sou e não me peça para permanecer igual.

Paulo Vaz foi vítima de transfobia, mas também de misoginia. O falocentrismo em nossa sociedade está entranhado de forma tão poderosa que ele é capaz de contaminar até membros da comunidade LGBTQ. A misoginia, entre todos os preconceitos, ainda é aquele que melhor se disfarça. Onde se vê LGBTfobia ainda falha-se em ver misoginia. Lugar de fala vai se transformando em lugar de falha e a adoração ao pênis se reinventa e se reproduz lá onde ela já deveria ter sido amputada das formas mais profundas e definitivas.

Transfobia e misoginia não são preconceitos excludentes. Assim como acontece com os demais preconceitos, pode existir entre eles uma interseccionalidade. A misoginia ainda se esconde muito bem entre a gente. Onde imediatamente se vê transfobia pode demorar-se para ver misoginia, por exemplo. Analisar o que aconteceu com Paulo sem considerar as interseccionalidades talvez não nos ajude a entender o que ele passou.

Era apenas mais uma história de amor. Uma história potente e cheia de beleza. Uma história de deslocamentos emocionais e de reinauguração de desejos. Mas a sociedade não estava preparada para ela.

Paulo não merecia essa fúria dentro de um mundo onde ele só fez amar e ensinar a amar. A gente não pode se dar ao luxo de perder pessoas como ele. O Brasil não pode seguir triturando seus jovens, não pode seguir massacrando corpos que escapam das normas porque esses corpos estão dizendo pra gente que não existe norma, não pode seguir matando dissidentes sexuais porque virá deles uma parte importante na transformação dessa nação. 

Trans de transformar, de transmutar, de transitar, de transicionar, de transformar. Trans de ir além, de atravessar. Vai em paz, Paulo. A gente segue na luta aqui.

Créditos

Imagem principal: Reprodução Instagram / Unsplash

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