Milly Lacombe: Para os esquisitos

por Milly Lacombe

Um texto para todos os que já sentiram inadequados ou inadequadas, para quem tem orgulho de ser quem é num mundo que todos os dias diz que não podemos, não devíamos

Esse texto é para todos aqueles e todas aquelas que já se sentiram inadequados nesse mundo. Para as meninas que não puderam jogar bola, para os meninos que não puderam brincar de boneca; para as meninas que nunca quiseram usar saia ou vestido e para os meninos que sonhavam com o salto alto. Para meninas que detestam se maquiar, para meninos que se acham mais bonitos de olhos e unhas pintados. Para meninas que querem fazer amor com meninos e com meninas, para meninos que querem ter um corpo de menina. Para as meninas que jogam bola, detestam vestido e só gostam de transar com meninos, para meninos que só são capazes de existir sem o pau e mesmo assim sentem atração por meninas. Para todos e todas que um dia já precisaram justificar seu amor.

Para os corpos mutilados das travestis assassinadas por homens frouxos e incapazes de assumir seu tesão. Para todos aqueles que vieram antes de mim e explodiram as fronteiras dos gêneros e da sexualidade. Para as mulheres com as quais me deitei, para as mulheres com as quais um dia sonhei. Para quem tem coragem de romper com normas e regras, para quem se curou da homofobia por amor à filha lésbica. Para quem já quis desistir, para quem desistiu e partiu. Para quem resistiu e tem orgulho de ser quem é num mundo que todos os dias diz que não podemos, não devíamos.

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Para quem foi às ruas implorar que não votassem em candidato que declarou que se tivesse um filho gay o teria espancado. Para quem entende que não existe luta contra a lgbtfobia sem luta antirracista. Para quem entende que não existe luta contra a lgbtfobia sem feminismo. Para quem não admite que se separe o movimento LGBTQ+ das causas indígenas. Para quem associou que, a cada árvore derrubada pelo agronegócio e para cada rio que morre em nome do lucro da mineradora, um pouco da luta LGBTQ+ é perdida. Para quem se indigna com as execuções nas periferias e nas favelas promovidas por homens fardados e para quem sabe que apenas uma luta LGBTQ+ que inclua essas agendas pode ser válida. Para quem sabe que um corpo LGBTQ não será livre até que todos os corpos que não se incluem nessas letras sejam.

Para quem sonha com um mundo sem marcadores de gênero, de raça e de classe, mas entende que só chegaremos lá travando as devidas batalhas identitárias. Para quem percebeu que estamos diante de uma única possibilidade de luta: a luta para salvar esse planeta improvável da fúria de um sistema que se reproduz através da exploração da terra e da exploração de poucos homens brancos sobre todos os seres humanos. Para quem apreendeu que a voracidade do lucro rápido e a qualquer custo é o que vai nos matar, nos extinguir, nos devastar. E que nessa hora todas as batalhas terão sido perdidas, menos uma porque o planeta, que sozinho também resiste, prevalecerá com ou sem a gente nele. Para quem finalmente compreendeu que não há nada mais importante do que esse pálido ponto azul perdido no espaço (obrigada, Sagan), que por algum tipo de mistério inalcançável por nossos sentidos podemos chamar de casa, de abrigo, de doador de vida – de um excesso exuberante de muita vida.

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Para James Baldwin, Adrienne Rich, Lélia Gonzalez, Emma Goldman, Rosa Luxemburgo, Virginia Woolf, David Foster Wallace, Marcel Proust, Ursula Le Guin, Marielle Franco. Para o bando de malucos e de malucas que há 51 anos, no dia 28 de junho de 1969, berrou “eu existo” e enfrentou a violência de uma polícia opressora e sanguinária que queria tirá-los do bar conhecido como Stonewall, lugar onde podiam ser quem eram no meio de uma Nova York que teimava em dizer o contrário. Por todos e todas nós, os esquisitos, desencaixados, perturbados, confusos, atravessados, caóticos, desorganizados, desorientados, desamparados. Para os alucinados de Stonewall que lutaram para que pudéssemos seguir respirando, existindo e, quem sabe, um dia ser absolutamente livres.

Esse texto vai para todos os que já sentiram inadequados ou inadequadas: vocês são a sanidade desse planeta. Porque não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade adoentada, como ensinou o guru Krishnamurti. Vida longa aos desencaixados e indignados porque são eles que mobilizam as grandes transformações sociais, políticas e econômicas que incluem e acolhem. E que possamos atravessar essa grande noite fria e sair vivos do outro lado para começar a construir um mundo menos competitivo, menos explorador, mais justo, mais colaborativo e mais gentil. Salve a luta. Salve a coragem. Salve o orgulho LGBTQ+.

Créditos

Imagem principal: Kay Tobin Lahusen

Photo by Kay Tobin Lahusen, Men kissing under a tree, 1977 Credit: Courtesy New York Public Library, Manuscripts and Archives Division

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