Milly Lacombe: Abaixo a família

por Milly Lacombe

A família tradicional brasileira é um ideal fictício e falido, um arranjo inalcançável. Lutar contra esse modelo é da ordem do dia. Queremos derrubá-lo, não reproduzi-lo

Em volta da mesa de jantar, todas as noites nos reuníamos. Havia os mais variados quebra-paus nos quais alternavam-se os protagonistas e os duelos. Minha mãe servia todos os pratos, enquanto permanecíamos sentados esperando nossa vez. Meu pai numa cabeceira, eu na outra, minha mãe e meu irmão de um lado, minhas duas irmãs do outro. Cresci no meio de uma família considerada do tipo universal: branca, classe média, pai, mãe, quatro filhos. 

Havia noites em que apenas conversávamos e ríamos. Em outras, berros, ofensas e saídas dramáticas da sala. Depois do jantar, meu pai normalmente ia ver os páreos no Jockey da avenida Cidade Jardim, em São Paulo. Voltava lá pela meia-noite, quando já estávamos dormindo. No momento em que os pratos eram retirados, meus irmãos e eu íamos para frente da TV ou terminar de fazer a lição. Minha mãe eu não lembro o que fazia, mas sempre parecia muito ocupada.

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Recentemente tive acesso a quatro cadernos em que minha mãe escreveu por anos uma espécie de diário confessional dessa época. Eu nunca soube que ela fazia isso, muito menos que ela pudesse ter a técnica narrativa de uma escritora. A cada frase, a noção de que havia ali um enorme talento sufocado. 

Os cadernos falam da imensa solidão da minha mãe enquanto crescíamos. Descrevem cenas de machismos do meu pai, cenas que hoje, mesmo quando leio em voz alta para minha mãe e explico por que meu pai, um cara bacana sobre todos os aspectos, estava sendo machista ao pedir que ela mostrasse a ele as notas com os gastos do supermercado, não são por ela registradas como violências. Minha mãe nunca trabalhou porque meu pai dizia que ela precisaria “cuidar da casa e dos filhos” – e foi isso o que ela fez até meu pai morrer e todos nós sairmos para viver outras vidas.

Sirvo duas taças de vinho, sento com minha mãe de 85 anos em volta da mesma mesa na qual sentávamos os seis, e digo que talvez ela não precisasse ter passado por aquela solidão. Pergunto por que nunca soubemos das coisas que ela sentia, ela dá um gole na taça e ergue os ombros.

Pergunto se ela teria se sentido menos sozinha se soubesse que muitas outras mulheres estavam, naquele mesmo instante em que ela escrevia suas confissões, passando por dores e conflitos muito parecidos sem ter com quem falar. Ela diz que sim, que teria sido menos sofrido. 

Meu pai morreu em julho de 2000, justamente quando os netos começavam a nascer. Meu pai não conheceu plenamente a versão “avó” da minha mãe, e nem viu quando ela, aos 70 anos, começou a viajar com as amigas, a fazer farra com os netos por fins de semana inteiros, a deixar sair de sua boca, de forma farta, a expressão “eu te amo” dirigida a cada um dos dez netos muitas vezes ao dia. 

Nós, os filhos, não conhecemos essa versão de minha mãe até sairmos de casa. Conhecemos uma mulher rígida, preocupada, ocupada, enervada e levemente entristecida. Mas não a mulher que ri a fartar, que tem muitas amigas, que, aos 85, bebe a vida a goles largos. Quem teria sido minha mãe sem as opressões que o arranjo da família tradicional impôs sobre ela? Uma escritora? Uma roteirista? Cineasta? Estaria ela, aos 85, dependendo da boa vontade dos filhos para se sustentar? 

A ideia que fazemos de família é a ideia de uma família idílica que, como disse Freud, funciona mesmo é como um núcleo produtor de neuroses. O retrato da minha família tradicional, que cada um de nós quatro fomos encorajados a replicar, não é o retrato da nossa sociedade, composta por muitas e muitas mães solo. 

O ideal da família tradicional brasileira é um ideal fictício e falido. Essa família em que mamãe cuida da casa “por amor”, em que papai passa o dia fora e, mesmo depois de voltar, sai na hora que bem entender, em que filhos são formados para silenciar e replicar costumes e tradições não funciona satisfatoriamente para nenhum dos envolvidos.

Criar um ser humano é o trabalho mais complexo do mundo e, ainda que houvesse uma distribuição igualitárias de tarefas no lar, é maluquice achar que duas pessoas possam fazer isso satisfatoriamente. Uma então, é crueldade. 

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Lutar para que o Estado se meta o menos possível na tarefa de socialização de um ser humano é adicionar perversidade a esse cenário precário. A boa luta nos obriga a querer ampliar as redes públicas de cuidado social e a imaginar outras formas de nos amparar uns aos outros.

Mas nossa imaginação está bloqueada para qualquer organização familiar que se oponha a dessa família idílica e ficcional. Dane-se que se trate de uma farsa, dizem. Repliquem e sigam em frente sem questionar o modelo.

Em nome dessa família ficcional votou-se a favor de um golpe de estado em 2016. “Pela minha família” diziam os deputados conservadores um depois do outro, envelopados pela bandeira nacional. No dia em que o golpe se concretizou, a cada voto, eu ficava imaginando como seria a família daqueles homens e pelo que passavam suas mulheres. 

Esse modelo de família nos trouxe à situação social atual. Não precisamos de muita investigação para ver que não funcionou. Seria necessário primeiro reconhecer essa verdade para, então, buscar novas formas de nos relacionar.

Derrubar de uma vez por todas a ideia de casamento, de núcleo familiar, de perfeição estética e buscar novas formas de nos arranjarmos, de criarmos seres humanos, de dar conta de tantas vidas de crianças e de adolescentes abandonados devia estar na prioridade da pauta revolucionária.

A noção liberal de que só existem indivíduos e suas famílias no interior de uma sociedade é o que nos aprisiona. Essa versão não é capaz de acolher diferenças, de resolver conflitos, de alargar campos de afeto. 

A família tradicional não é uma verdade realizável, trata-se, ao contrário, de um arranjo inalcançável em busca do qual corremos todos os dias na ilusão de que existem aqueles que estão, agora mesmo, vivendo a ilusão. Quando o ideal é finalmente realizado, passa a ser um núcleo produtor de neuroses e neuróticos.

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Lutar contra esse modelo é da ordem do dia. Queremos derrubar a família, não queremos reproduzi-la. Durante décadas nós, os LGBTQs, lutamos pelo direito ao casamento quando talvez devêssemos estar lutando pelo oposto. Entendo a importância de pelo menos termos a alternativa de poder casar porque só com ela vem a possibilidade de dizermos “não, não queremos nos casar”. Chegamos até aqui e agora seria a hora de retraçarmos a rota. 

Dizer claramente que queremos acabar com a família. Queremos uma sociedade na qual muitos sejam responsáveis pela formação de um ser humano. Queremos creches e escolas gratuitas, queremos mais de um pai, mais de uma mãe, queremos trisais, poliamor, relações abertas, casamentos em casas separadas. Queremos novos parentescos que não envolvam filhos, queremos modelos para que pessoas velhas possam ser adotadas, queremos parentescos fora do aparelho biológico de reprodução, como pede a antropóloga Donna Haraway. Queremos implodir esse modelo nuclear da família fracassada. Libertar a mulher e, com ela, todos os que de um ventre saíram.

Eu sinto saudade dos jantares em volta da mesa com meu pai, minha mãe, meus irmãos. Havia atritos, mas havia também afetos. Havia brigas, mas havia gargalhadas. Minha mãe não estava sempre triste, meu pai não estava sempre ausente. É certo que os sacrifícios e a solidão de minha mãe produziram quatro adultos funcionais e independentes. Mas o que mais poderíamos ter sido se, em vez de salvar uma tradição, tivéssemos conseguido, de fato, nossa emancipação?

Créditos

Imagem principal: Arquivo pessoal

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