Minha mãe nunca me bateu, me deixou passar fome ou negou cuidado médico. Mas as coisas que ela fez, silenciosas e quase invisíveis, corroeram minha autoestima e me marcaram permanentemente
Daqui da beiradinha do mar eu sinto o vaivém das ondas, chuífe-chuífe, fazendo carinho no meu tornozelo. A água está uma delícia, me chamando, prometendo me proteger do sol que castiga meu cocuruto. Eu quero entrar. Mas bem ali na frente eu vejo a razão pra desistir: silenciosas e quase invisíveis, as águas-vivas. Muitas, enfileiradas. Não dá pra mergulhar sem atravessar essa barreira e, se eu atravesso, elas vão se defender. Por baixo da água, onde ninguém vê, elas vão me queimar. Eu sei disso porque aconteceu duas vezes no último mês. Eu vi só água, entrei, e senti: o chicote, o susto, o fogo furando a pele. Eu sou da água, eu vim de lá, e eu trago no corpo a memória de que a água pode me fazer mal. Seria irresponsável me colocar numa situação sabendo que eu vou sair dela machucada.
Eu tinha saído machucada de infinitas visitas e telefonemas e brigas em saguão de aeroporto, quando eu decidi parar de falar com minha mãe. Minha mãe, diferente das águas-vivas, nunca marcou minha pele: ela nunca me bateu, nem me deixou passar fome, nem me negou cuidado médico. As coisas que ela fez, silenciosas e quase invisíveis, eu chamo de microabusos.
Pensa no conceito de microagressões — frases e atitudes que parecem inofensivas, mas se revelam cruéis. Agora transpõe isso do âmbito social pro âmbito doméstico: microabusos. Minha mãe polvilhou nossa relação com lascas de violência que, somadas, corroeram minha autoestima e me marcaram permanentemente.
A história que eu vim contar não é sobre ela, é sobre mim. É sobre, e para, toda filha que cresceu com machucados que não deixam roxo. Eu não vim acusar, eu vim acolher. E vim lembrar que histórias de violência raramente são preto no branco. Contar uma história assim é como olhar um bicho gelatinoso: tem que rodear, jogar luz aqui e ali, aceitar que os contornos não são nítidos. Toda história, mesmo as violentas, tem nuance.
LEIA TAMBÉM: A maternidade também pode ser tóxica
Erros
Desde que eu me lembre, pelo menos desde os cinco anos, minha mãe me chamava atenção por um erro que cometi só uma vez, mas que eu não sabia descometer: meu nascimento. Eu cheguei quando meus irmãos já eram adolescentes; fui o que ela sempre chamou de um acidente.
“Depois que você nasceu, começou minha rinite.”
“Depois que você nasceu, acabou minha cintura.”
Mais tarde na vida, afundada numa depressão que ela se negava a tratar, o tal erro foi esticando seus tentáculos e a reclamação ganhou expressões mais complicadas: “O que acabou com a minha vida foi não ter me separado do seu pai antes. Mas é que você era pequena. É que você nasceu tão tarde. Se não fosse isso, eu podia ter sido feliz.”
Eu demorei trinta anos pra notar o absurdo nessa frase. Uma obviedade que me escapou por tempo demais: entre minha mãe e eu, fui eu quem menos teve voz na decisão de ser gerada, gestada, parida, criada por ela.
Eu sei que depressão, ainda mais como a dela, não é brincadeira. Eu imagino que ela se sentia frágil e, assim como as águas-vivas, atacava quando só queria se defender. Ela estava doendo, e tanto, que não percebia que sua dor vinha de dentro, e não de mim. Ela estava doente. Eu empatizo com ela. Mas empatizo ainda mais comigo de cinco, oito, ou 12 anos: muito nova pra aguentar tanta queimadura.
É claro que cometi muitos outros erros, mais ativos que meu nascimento. Uma vez, eu ri da pronúncia embolotada da minha mãe pra falar CD-ROM, mesmo sabendo que inglês e tecnologia eram novidades pra ela. Outra, eu molhei o cabelo da minha única Barbie, sabendo que isso era proibido. Eu cheguei em casa depois de escurecer. Eu desmaiei nas nossas férias. Eu esqueci de ir aos Correios. Eu chorei. Eu falei demais. Eu fiquei calada.
Pra todos esses erros, minha mãe tinha uma mesma punição: o silêncio. Ela me olhava com olhos de gelo, crispava a boca, e se trancava no quarto. Às vezes por horas, às vezes até o outro dia. E eu ali fora sozinha pra lidar com a minha culpa. Foi assim, acho, que eu aprendi que silêncio é uma forma de opressão.
Penso na mulher que tuitou que não ia convidar os pais pro casamento. Segundo o júri implacável da internet, o maior erro dela foi ter falado sobre o assunto. "Entendo seu problema", era o tom dos comentários, "mas desnecessário tornar isso público".
LEIA TAMBÉM: "A família tradicional brasileira é um ideal fictício e falido", escreve Milly Lacombe
Silêncio
O silêncio às vezes aparece como bocas fechadas, outras vezes como frases feitas: Não Tem Amor Igual De Mãe. Mas o silêncio não faz a gente esquecer a dor, nem aceitar a dor, só faz a gente doer sozinha. Nos piores casos, faz a gente perpetuar o abuso.
Na mesma época desse tuíte, teve o caso da Larissa Manoela. A atriz veio a público sobre ter rompido com os pais, que abusaram dela financeiramente. Através de um advogado, os pais responderam que achavam “extremamente triste e lamentável a opção da Larissa pela ingratidão, pela indiferença e pelo desrespeito.” Essa declaração, especialmente quando os pais estavam sendo acusados de má-fé, faz parecer que respeito é uma via de mão única.
“Você me respeite, porque mãe você só tem uma”, minha mãe sempre dizia. “Eu posso ter quantos filhos eu quiser.”
Me dá arrepio, mas também alívio, ver como as palavras da minha mãe são um eco das palavras dos pais da Larissa Manoela — e da Jennette McCurdy, da Tara Westover, da Stephanie Foo. Eu não estou sozinha com meus microabusos.
LEIA TAMBÉM: "Minha mãe tem uma filha que ela ama e outra que ela odeia. O problema é que eu sou filha única", diz Tati Bernardi
Veneno
Pra além dos micro, eu vivi com minha mãe dois episódios de abuso que cabem na definição mais clássica do termo. Aos 14, uma ameaça de suicídio, que, ela disse, era por minha culpa. Aos 16, uma ameaça de me expulsar de casa. Nenhuma das duas se concretizou, mas cada uma delas me tirou o chão. Atordoada, sem saber o que fazer com aquela dor queimando minha pele, eu puxei o assunto dias depois na mesa de jantar. “Ave maria, minha filha, que isso? Eu jamais falaria uma coisa dessa pra você, nunca!” — foi a reação da minha mãe, idêntica nas duas vezes.
O que só aumentou meu choque. Uma parte de mim tinha certeza da memória, a lembrança ainda vívida das palavras dela como um chicote, o susto, o fogo furando a pele. Mas outra parte tinha certeza da autoridade da minha mãe. Ela sabia tudo, e eu sabia tão pouco. Eu não soube nem a hora certa de nascer. Eu provavelmente tinha me confundido.
A partir daí, eu virei uma menina confusa. Fatos que pra outras pessoas pareciam sólidos, pra mim eram gelatinosos, transparentes, fugidios. Virei alguém que não conseguia confiar na própria memória, que se desestabilizava com qualquer incongruência boba numa conversa, que escorregava em crises de pânico e de desrealização, que se sentava na janela do 14º andar com um pé pra fora, depois dois, me perguntando se me apagar apagaria minha dor.
É claro que minha mãe não foi só veneno. Junto com a memória da porta se fechando na minha cara, eu guardo também a memória dela fazendo cafuné pra eu dormir, enrolando brigadeiro pro meu aniversário, da gente comendo pastel de queijo depois do cinema. Muitas vezes ela estourou a bolha, se abriu pra mim. Mas se ela me fez bem, isso não anula que ela me fez mal.
As duas coisas são verdade ao mesmo tempo.
Depois que eu parei de falar com minha mãe
Tudo o que eu estou falando aqui, eu já falei pra minha mãe. Ao vivo, por telefone, em mensagens cheias de por-favor. Num email de 2009, que eu escrevi e reescrevi até que ele fosse ponte, e não muro, e ao qual ela respondeu, apenas: “Flávia, entendo seus pontos de vista e sentimentos. Um abraço.”
Demorei ainda cinco anos pra cortar contato. Foi uma dessas decisões graduais, que vão e vêm, chuífe-chuífe, a necessidade de me preservar sendo coberta pela culpa, que era coberta pela raiva, e de novo pela culpa. A cicatriz mal fazia casquinha, eu me queimava outra vez.
Por que eu entrei de novo, se sabia que ia me machucar?
O espaço entre uma recaída e outra foi aumentando, até que um dia eu não telefonei mais. Eu adoraria dizer que eu também recusei os telefonemas dela, mas a verdade é que ela não me ligou. Ela ligou pra família e reclamou de mim. Parentes me pediram juízo. Amigas me sugeriram perdão.
Eu queria poder acolher todas as filhas de mães instáveis, de mães que não se cuidam e, portanto, não cuidam. Inclusive as filhas que hoje são mães. Em vez de cobrar das vítimas — juízo, perdão — eu queria oferecer. Oferecer colo a cada uma delas. Como, na prática, eu não posso, eu ofereço este texto. Que ele sirva como convite pra gente conversar mais, e mais abertamente, sobre o assunto.
Depois que eu parei de falar com minha mãe, minha vida se abriu. Sem o veneno dos microabusos, eu fui gostando mais de mim. Eu me casei. Eu fui promovida. Eu reatei com meu pai, com quem eu tinha cortado contato a pedido dela. Eu reatei com amigos antigos. Eu fiz amigos novos. Eu enchi minha casa de gente. Eu ri mais leve.
É claro que eu gostaria que tivesse sido diferente. Eu queria ter uma mãe pra desabafar, ou só pra fofocar, pra rir da novela, pra passar uma semana de férias juntas, pra ouvir Bethânia, pra entrar no mar. Eu sou como ela, sou feita dela, eu vim dela. Mas eu sei dos meus machucados. E sei que não vale a pena entrar só pra me queimar. Aqui fora eu me sinto segura, mas sozinha, mas segura.
Créditos
Imagem principal: Unsplash