Deixa te dizer onde dói em mim

por Milly Lacombe

”Nós somos as histórias das nossas cicatrizes. É a partir delas que formamos o que chamamos de caráter”

A primeira vez que eu vi minha pele abrir a ponto de sangrar – a primeira da qual me lembro – foi durante um jogo de futebol. Eu estava no Rio de Janeiro, no térreo do apartamento em que morava na rua General Glicério, em Laranjeiras, quando fui recuperar uma bola que quicava muito perto do muro e enfiei o joelho no concreto. Em minha memória, o corte provocou um sangramento nível O massacre da serra elétrica, o filme trash de terror que talvez tenha sido o maior orçamento da história em gasto com molho de tomate. Certamente não houve assim tanto sangue envolvido, embora as expressões de horror nos rostos de meus colegas de time tenham sido perturbadoras, mas foi o suficiente para me deixar com uma cicatriz. Eu tinha sete anos, essa foi minha primeira cicatriz e ela está comigo até hoje.

Depois dela houve outras, a maior sendo uma cirurgia de ligamento no joelho esquerdo que, além de extensa, é bastante larga. A do joelho, em especial, meus sobrinhos sempre adoraram ver, nem tanto pela estética, mas talvez por causa das histórias fictícias que eu associava às maneiras como eu a adquiri.

Essas são as cicatrizes aparentes. Mas existem muitas outras que não podem ser vistas. São as que estão da pele para dentro. São as que contam as histórias dos meus conflitos, das batalhas que enfrentei, dos erros que cometi. Eu levei muitos anos para conseguir enxergá-las com algum respeito, o mesmo respeito que tenho pela marca daquele jogo de bola no Rio da década de 70.

Nós somos as histórias das nossas cicatrizes. É a partir delas que formamos o que chamamos de caráter. Existem as cicatrizes que moram em cada uma de nós, e existem as cicatrizes que habitam em todas nós.

Uma de minhas tatuagens – são nove – é uma frase que diz, em latim, “amor fati”, ou “amor pelo próprio destino”. Marquei minha pele com essas palavras quando estava passando por uma das maiores dores da vida: o fim de uma relação de 10 anos. De alguma forma, sofrendo como nunca imaginei ser capaz de sofrer, havia em mim a noção de que aquele era meu destino, aquele era meu caminho, nada de verdade estava fora do lugar. Respira e vai, me dizia uma voz misteriosa.

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Viver é perder um pouco a cada dia, ensinou Elizabeth Bishop em seu sublime poema “A Arte de Perder”. Perder células, perder neurônios, perder elasticidade, memória, mobilidade, amigos, casas, pais, amores. Perder a cabeça, perder tempo, perder o ar, destrambelhar. Viver, como me disse uma vez alguém, não é para amadores.

Ter que negociar, todos os dias, a consciência da finitude  - de que a vida não tem solução, de que o final é, a despeito do que façamos, um só  - é tarefa para gigantes. O truque é que somos incapazes de fazer isso sozinhos. Precisamos uns dos outros. Precisamos de um porto onde atracar nossas dores, onde poderemos cuidar das cicatrizes até que elas parem de doer e virem, finalmente, uma marca da qual, de um jeito que só nós sabemos, poderemos respeitá-las, admirá-las, cortejá-las, amá-las. Amor fati.

Talvez seja por isso que aquelas dores que são evitáveis me causem tanta revolta. Já há dor demais na vida, dores inevitáveis, e a elas precisamos nos entregar se queremos que parem de sangrar e virem cicatrizes das quais poderemos nos orgulhar. Mas para que todas e todos nós possamos ter tempo, disposição e força para nos implicar nessa tarefa é preciso lutar para que as dores evitáveis sejam evitadas. O que chamo de dores evitáveis são as causadas por injustiças sociais, pelo machismo, pela misoginia, pelo racismo, pela LGBTfobia - pelo regime político do heteropatriarcado que tanto mal e separação causa.

Uma vez li um poema de Virginia Woolf que mudou muitas coisas em mim. Ele dizia: “como mulher, não possuo país; como mulher, meu país é o mundo todo”. Com essa frase aparentemente simples Virginia me disse que, como mulher, eu não tinha uma nação, uma nacionalidade, um território. Que a luta rumo à emancipação deveria me reconciliar com o feminino e com todas as mulheres do mundo. Que meu país é ser mulher, que meu patriotismo é mulherar. 

Minhas conterrâneas são todas aquelas que passaram e estão passando pelas mesmas dores evitáveis pelas quais estou passando. Os limites impostos, as constantes interrupções, as objetificações, as erotizações convenientes, os silenciamentos, os abusos, os assédios, os assassinatos. 

Meu país é ser mulher, meu verbo é mulherar, meu destino é me libertar.

Vejam, por exemplo, esse trecho do estupendo livro de Françoise Vergés, Um Feminismo Decolonial

“Todos os dias, em todo lugar, milhares de mulheres negras, racializadas, 'abrem a cidade'. Elas limpam os espaços de que o patriarcado e o capitalismo neoliberal precisam para funcionar. Elas desempenham um trabalho perigoso, mal pago e considerado não qualificado, inalam e utilizam produtos químicos tóxicos e empurram ou transportam cargas pesadas, tudo muito prejudicial à saúde delas. Geralmente, viajam por horas de manhã cedo ou tarde da noite. Um segundo grupo de mulheres racializadas, que compartilha com o primeiro uma interseção de classe, raça e gênero, vai às casas da classe média para cozinhar, limpar, cuidar das crianças e das pessoas idosas para que aquelas que as empregaram possam trabalhar, praticar esportes e fazer compras em lugares que foram limpos pelo primeiro grupo de mulheres racializadas. No momento em que a cidade 'abre', nas grandes metrópoles do mundo, mulheres e homens correm pelas ruas, entram nas academias, salas de ioga ou meditação. Aderindo ao mandato do capitalismo tardio, que exige manter os corpos saudáveis e limpos, essas mulheres e homens, na sequência de seus treinos, tomam um banho e comem uma torrada com abacate e bebe um suco detox antes de prosseguirem com suas atividades. Chega então a hora em que as mulheres negras e racializadas tentam encontrar um lugar no transporte público para seus corpos exauridos. Elas cochilam assim que se sentam, seu cansaço é visível para aquelas que querem vê-lo.”

Juntando Woolf e Vegès, meu país precisa ser o de todas as trabalhadoras do mundo que, dia após dia, voltam em transporte público exaustas para casa. É a única possibilidade para que eu consiga me emancipar, para que todas nós possamos, finalmente, nos dedicar a cuidar das dores inevitáveis até que elas virem cicatrizes.

Viver dentro dessas lutas é fazer da revolução uma prática cotidiana. Não existe outra forma de construir um mundo dentro do qual mulheres possam, finalmente, existir sem sujeições, opressões, abusos, interrupções. Isso, claro, até que possamos, como pede Paul Preciado, superar as marcas de gênero. Mas esse assunto fica para outro devaneio. 

 

Termino com o poema de Bishop:

A arte de perder não é nenhum mistério;

Tantas coisas contêm em si o acidente

De perdê-las, que perder não é nada sério

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,

A chave perdida, a hora gasta bestamente.

A arte de perder não é nenhum mistério.


Depois perca mais rápido, com mais critério:

Lugares, nomes, a escala subseqüente

Da viagem não feita. Nada disso é sério.

 

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero

Lembrar a perda de três casas excelentes.

A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império

Que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo

que eu amo) não muda nada. Pois é evidente

que a arte de perder não chega a ser mistério

por muito que pareça (Escreve!) muito sério

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