Levei 30 anos para conhecer minha mãe

por Triscila Oliveira

”Eu tenho certeza de que a versão da mulher que conheci não era realmente ela, porque a vida se encarregou de não permitir que minha mãe fosse quem quisesse ser, de ter sonhos para além de sobreviver”

Quem olha minha relação com minha mãe hoje não acredita em quão tóxica ela já foi. Uma balança delicada de carinho e cuidados versus gritos e agressividade. Uma mãe solo preta, retinta, semianalfabeta, trabalhando de diarista, morando na periferia de Niterói no alto de um morro sem água nem saneamento, criando dois filhos sem qualquer rede de apoio enquanto construía com as próprias mãos, tijolo por tijolo, uma casa nos anos 90 e início dos anos 2000.

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Sabemos muito bem o que a maternidade é capaz de fazer com a vida das mulheres, o adoecimento e a sobrecarga, muitas vezes anulando sua identidade, robotizando-as a serem unicamente máquinas de cuidado. Eu tenho certeza de que a versão que eu conheci não é quem ela realmente é porque a vida se encarregou de não permitir que ela fosse quem ela quisesse ser, de ter sonhos para além de sobreviver. Eu conheci uma mulher exausta, embrutecida, que até hoje tem dificuldades de sorrir, de se olhar no espelho, supersensível, doce, acolhedora e ao mesmo tempo sem tato.

Como muitas mulheres negras de sua geração, não conheceu o amor e isso dificultou sua habilidade de amar. Sabe cuidar, zelar e se sacrificar, mas há um bloqueio que afetou profundamente a construção de seu amor-próprio, autoestima e autoconfiança. Observando sua solidão, aprendi a só aceitar alguém em minha vida se essa pessoa me tratar melhor do que eu trato a mim mesma. Aprendi a jamais trocar a minha paz por alguém que não tem a intencionalidade de permanecer.

 

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Como pode uma mulher que criou dois filhos sozinha enquanto construía uma casa no alto de um morro, carregando lata d’água na cabeça e saco cimento no ombro, não ser confiante? Daí, entra raça, classe, gênero e território. Nessa ordem. Apesar de trabalhar de domingo a domingo, as patroas pechinchavam seu trabalho por vê-la como subalterna; ao chamar um pedreiro para fazer um serviço aqui em casa, eles não apareciam porque não queriam trabalhar para mulher preta, já julgavam que não poderia pagar seu valor (muitas vezes superfaturado); e, por último, mas não menos importante, quando falava que era na periferia e no morro era tratada como bandida. E assim, fora de esquadro daqui e dali, nossa casa foi sendo construída, o que lhe resultou em três hérnias de disco e uma escoliose.

Eu tive que começar a trabalhar fora fazendo faxina aos 13 anos para ajudá-la, e nos tornamos colega de quarto. Saíamos juntas de casa de madrugada, ela para o trabalho e eu para a escola. E depois da escola eu ia trabalhar e chegava à noite para carregar água morro acima. Muitas vezes minha mãe brigava comigo quando eu tinha que estudar ou demonstrava interesse em ser uma adolescente, queria sair, ir ao cinema, dormir mais tarde nos fins de semana, ler um livro... Virei adulta muito cedo e hoje sou uma adulta meio bobona.

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Quando realmente cheguei a vida adulta, já estava tão adoecida que caí em depressão e idealizava como atentar contra minha própria vida, porque na minha cabeça não fazia sentido trabalhar 10, 12 ou até 14 horas por dia só para sobreviver pagando as contas e com menos que o básico. Ela, sem saber como lidar com minha doença, zombava de mim. Nos tornamos parceiras na resolução de problemas, na construção da nossa casa, e não mãe e filha. E assim foram quase três décadas sem nos conhecermos, muitas vezes sem nem sabermos gostos simples uma da outra – por vezes, invertendo os papéis.

Meu irmão, nove anos mais velho, casou-se cedo e partiu de casa para construir sua família. Voltou 17 anos depois após um duro divórcio e precisamos nos reconhecer novamente. Somente em 2015, quando minha mãe se aposentou e eu estava desempregada, tivemos tempo de nos conhecer. Eu batalhando com a depressão e ela, mesmo sem saber, em seu processo de cura, de aprender a desacelerar, descansar. E de reconhecer que seus filhos não precisam mais dela, e isso não significa que ela não tenha mais “utilidade” em nossas vidas, mas que poderia dedicar mais do seu tempo a cuidar de si própria.

Infelizmente, muitas mães e avós se disponibilizam como prestadoras de serviços de todos ao redor porque mulheres em geral são socializadas assim, sobretudo mulheres negras. E muitas o fazem na expectativa de receber qualquer migalha de afeto de volta como troco. Entendem o tanto de tempo de qualidade e vida que perdemos pela necessidade de vender nosso tempo e força de trabalho sobrevivendo?

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Pelas redes tem muita gente determinada a resolver tudo e qualquer incômodo com afastamento. É óbvio que há casos e casos, não estou romantizando nada, apenas direi que assim como ninguém nasce preconceituoso, também ninguém nasce tóxico. Muitas “mães narcisistas” de hoje podem ter sido mulheres que foram muito machucadas, que aprenderam a se defender manipulando, se protegendo antes da possibilidade de um ataque. E gente machucada machuca, sangra em cima de quem não a feriu, e requer muita, muita paciência para sarar.

Salvar nossas mães pode significar muitas coisas, depende da realidade material de cada família. Existe uma estrutura patriarcal que diz que os cuidados são virtudes femininas, isentando homens dessa equação e sobrecarregando mais uma vez as mulheres, dessa vez as filhas. A sobrecarga mental causava na minha mãe sintomas psicossomáticos que por alguns anos achamos ser os primeiros sinais de Alzheimer. Os exames não constaram nada além de altos níveis de estresse. E foi somente quando tomei a frente e assumi a maioria das contas da casa que ela melhorou. A ansiedade, os medos, a crise nervosa, a síndrome de escassez deram uma trégua, deixando apenas o sentimento palpável de não merecimento diante das coisas boas. E este sabemos muito bem de onde vem.

Nas sabedorias dos povos originários e africanos, o pensamento coletivo é ancestral. Vivemos em comunidades, nossas experiências são coletivas, cuidamos uns dos outros, diferentemente do que vêm sendo proliferado hoje em dia por um ultra individualismo de abandono. E quem cuida de quem cuida? Como que mulheres que nunca foram cuidadas saberiam como começar a se cuidar? “Este 'salvar a mãe' é um imperativo de nossa sobrevivência", disse a doutora Jeane Tavares.

Eu sou aquela filha que digo orgulhosa que salvei a minha mãe porque ela reconheceu, do jeito dela, que precisava ser salva. Que poderia e quer levar o resto de sua vida de forma mais leve. Não é fácil. Foram décadas de muita dor e sofrimento que deixaram cicatrizes psicológicas e emocionais profundas. Mas todo dia é um dia que penso nisso e sinto raiva pelo tanto de tempo perdi e quero passar todo tempo que eu puder com ela, porque na minha idade ela já não tinha mais sua mãe, e eu sei que ela não é para sempre. Pelas circunstâncias da vida, eu levei 30 anos para conhecer a minha mãe. Se você pode, e tem oportunidade de conhecer sua mãe, seus pais ou responsáveis, não perca tempo. Ele passa muito rápido.

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