Rachel Reis: Sou danada, aprendi rápido a bater de frente

por Júlia Flores

Foi a morte de um amigo que fez a cantora baiana se reconectar com a música. Dona do hit Maresia, ela fala sobre amor, o sucesso repentino e as tretas de ser uma mulher preta nesse mercado

É em silêncio, sozinha, que Rachel Reis prefere ficar antes de subir aos palcos. Com pulinhos, ela tenta driblar o nervosismo e se preparar para dar show. Dona do hit Maresia, a cantora ainda está se acostumando com a ideia de ser famosa – ou ser diva, como ela define.

Além de acumular milhões de visualizações em plataformas de streaming, ela teve o nome estampado no line-up de festivais famosos, como o MITA e o Meca Inhotim. Apesar de ter crescido em uma casa cheia de música e ter cantado em bares durante dois anos, a baiana de 25 anos experimentou o reconhecimento do público só na pandemia, depois de um tempo afastada dos microfones.

Foi a morte prematura de um colega de trabalho, em 2019, que a reaproximou da música. "Ali me dei conta de que precisava correr atrás dos meus sonhos”, conta ela, usando a gíria baiana 'barril' para descrever as emoções que enfrentou no período de luto. Não pensou duas vezes antes de pedir demissão do postinho de saúde em que trabalhava como atendente em Feira de Santana, a 90km de Salvador, e se mandar para Recife com a intenção de usar os estúdios do produtor cultural pernambucano Barro para gravar seus dois primeiros singles autorais, as músicas Sossego e Ventilador. Deu certo e, dali em diante, Rachel decidiu abraçar novamente o sonho que tinha abandonado no começo da vida adulta: o de seguir a mesma carreira que a mãe.

Maura Reys era cantora de seresta nos anos 90 e hoje apresenta-se apenas na igreja evangélica, onde Rachel também já cantou como backing vocal da mãe. Isso fez com que ela e a irmã, Sarah, tivessem uma infância cercada por instrumentos e ritmos latinos – o que influenciou diretamente sua música. Suas canções têm um pouco de pop, cumbia, arrocha, pagode, entre outras tantas influências. "Eu sou assim mesmo, uma mistura”, define.

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Mistura também é uma palavra que pode ser usada para definir a rotina de Rachel fora dos palcos. Enquanto espera o dia em que poderá viver apenas de música, ela divide a agenda de shows com o trabalho fixo como redatora em uma agência publicitária e as aulas do sexto semestre de Publicidade e Propaganda. No meio disso tudo, ainda encontra tempo para curtir o namorado, Davi, e compor novas canções.

Rachel gosta de acompanhar de perto todo o processo de produção de suas músicas. "Já tentaram me deixar de canto. Sendo uma mulher negra, sempre teve um homem que quis falar mais alto do que eu. Mas fui danada, aprendi rápido a bater de frente”, conta numa conversa por videochamada direto de seu apartamento em Feira, poucos dias antes de lançar seu novo single, Lovezinho. A canção faz parte de seu próximo álbum, Meu Esquema, que tem lançamento previsto para setembro. A seguir, batemos um papo com Rachel sobre amor, racismo, música, afetos e o futuro. 

Tpm. Como você está lidando com o sucesso repentino?

Rachel Reis. É muito doido, porque eu tenho que conciliar a minha faculdade de Publicidade e Propaganda e meu trabalho como redatora com uma agenda de shows todo final de semana. Estou feliz que tudo isso esteja acontecendo, mas ao mesmo tempo é uma loucura. Espero o dia em que eu possa viver totalmente de música e que as coisas fiquem mais tranquilas.

Mas precisa disso tudo? Sou precavida e gosto de finalizar as coisas. Estou no sexto semestre e quero terminar a faculdade. Não tenho pretensão de largar nada, mas espero que as coisas se estabeleçam melhor no universo de música. É cansativo dar conta de tanta coisa, e eu sou uma pessoa que não curte deixar o trabalho artístico na mão de outras pessoas.

O fato de você morar em Feira de Santana, afastada de um grande centro urbano, não te atrapalha? As pessoas te reconhecem na rua? Sim, estou em Feira, mas procurando uma casa em Salvador, porque acho que lá é mais fácil para mim e não quero sair da Bahia tão cedo. Sou caseira, não saio muito, mas às vezes se eu estou em algum lugar a galera vem falar comigo. Recentemente estava no ônibus, a caminho de Salvador, e a menina do meu lado me reconheceu. É estranho, mas legal... Um sentimento novo.

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Você já tinha se imaginado famosa? Aconteceu de forma natural, as pecinhas foram se encaixando. Fazia barzinho de 2016 a 2018 e em 2018 fiz uma pausa porque queria estudar e estava cansada da rotina. Pensei: 'Quero estudar, não quero cantar as músicas de outras pessoas'. Aí dei uma pausa que foi até o final de 2019.

Por que você decidiu voltar a cantar? Eu trabalhava na recepção de um posto de saúde e um colega morreu. Dividíamos muitas coisas, e ele ter morrido do nada me deixou reflexiva, foi 'barril'. Percebi que estava negligenciando o que gostava. Foi nesse momento em que larguei o emprego e fui pra Pernambuco encontrar o Barro e gravar os meus dois primeiros singles, Sossego e Ventilador. Foram minhas duas primeiras composições. O pessoal abraçou, foi um começo fofinho. Até que a coisa foi andando e de 2020 até agora não parei.

Qual era sua função nesse trabalho? Fiz de tudo! Já trabalhei na recepção, com telemarketing, como digitadora... Quando decidi sair, saí que nem dei tchau. Nunca fiquei parada, trabalho desde os 18, sempre me virei sozinha porque tinha necessidade de ser independente e de ajudar as pessoas que eu amo, principalmente minha família. Tudo o que eu faço é por eles.

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Qual é a relação da sua família com a música? Minha mãe era cantora de seresta em Feira de Santana e eu e minha irmã Sarah íamos a shows com ela. Lembro de rolar ensaio em casa, de ter um monte de músico espalhado pela casa. O andar de cima era só de instrumento. Minha irmã seguiu logo os passos dela e com 15 anos já estava cantando. Eu fui relutante. Gostava de cantar sozinha, cantava pelo quintal, mas não me imaginava dentro daquele universo. Já meu pai era advogado, nada a ver com música.

E sua mãe segue cantando? Minha mãe hoje é evangélica. Já cheguei a fazer alguns backing vocals pra ela na Igreja, mas depois de um tempo, parei.

Você cresceu cercada de música então? Nosso universo era esse, nós parávamos pra ouvir música, ver clipe. Escutava muito arrocha, seresta, bachata, Calypso. Depois, mais velha, descobri as minhas próprias referências. Gostava de ficar em casa com meus primos assistindo DVD de hip-hop dos anos 2000. Isso acaba impactando na hora de produzir algo, compor uma música.

E seus amigos, como eles encaram as mudanças? Tenho poucos amigos, posso contar nos dedos, mas são pessoas que me apoiam muito e que estão comigo há bastante tempo. Meu produtor pessoal já era meu amigo, isso é um suporte a mais.

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E por falar em composição, de onde veio a inspiração para a música Maresia? Estava na pegada de fazer música em uma vibe mais tranquila e, conversando com um amigo, ele disse: 'Rachel, por que você não faz uma música bem vibezinha, bem maresia?' Veio daí o insight e a gente queria no EP algo na vibe arrocha, de coisas que a gente escutava na infância da Bahia. Deixamos Maresia em stand by, não tinha certeza se entraria ou não no EP Encosta. Eu acho que quando a gente escuta muito a música no processo de produção acaba enjoando, duvida da qualidade, não sabe se está boa... Apesar de, é claro, saber do seu apelo, já que é uma música que comunica muito bem, de letra fácil, chiclete. No fundo eu sabia que ela podia chegar longe e talvez isso me amedrontasse um pouco. O EP saiu e eu mudei de ideia, decidi lançar como faixa bônus. Foi um sucesso totalmente orgânico, estourou sozinha, sem nenhum impulsionamento.

A inspiração para escrever a música veio de alguma sofrência do passado? Tem muita coisa que me inspira, seja o que vivi, seja algo que peguei da vida dos outros ou que vi em um filme. É uma misturinha. Eu namoro desde 2019 e ele lida bem com a fama. O Davi não me acompanha nos shows, mas também não tem ciúmes – e olha que a galera chega mesmo, perde a mão.

Deve ter sido uma mudança muito abrupta para vocês dois. Como eu estourei na pandemia, às vezes acho que estou anestesiada. Um dos dias em que a minha ficha caiu foi quando dividi o palco com a Céu. Sempre falo dela em toda entrevista que dou, ela deve achar que sou obcecada por ela.

Como está sendo para você lidar com o palco? De 7 meses pra cá, quando comecei a fazer shows, já mudei a minha forma de lidar com o palco. Eu tenho certa experiência de cantar pro público, mas público de barzinho, que é muito diferente porque ninguém presta atenção no que você está cantando. Não é a mesma responsabilidade de estar em um festival, por exemplo, em que pessoas podem te conhecer através do show de outros músicos. Eu venho nesse processo de me entender no palco, de entender como é que eu posso me comunicar com as pessoas, o que querem de mim, o que eu quero mostrar pra elas. Tenho curtido cada vez mais estar em cima do palco. Sempre chego me tremendo, tento dar uma aquecida, ficar em silêncio por alguns instantes, dar uns pulinhos... Mas quando eu subo lá vejo que a galera me recebe bem, parece que eles sabem que eu tô começando ainda, e isso me deixa muito confortável. 

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Existe diferença entre a Rachel do palco e a Rachel de longe dos holofotes? Às vezes parece que eu divido minha vida: tem a estudante, a redatora e a que está nos festivais. Eu ainda estou me acostumando com o fato de as pessoas me considerarem uma diva. É bem maluco, mas eu gosto. Brinco que estou me acostumando mal. Até no meu trabalho, lugar em que eu nunca compartilhei o que faço, vieram me elogiar pelas minhas músicas.

Você se sente à vontade para falar sobre racismo comigo? Sim, é importante tocar no assunto. Isso influencia na nossa vida, na forma como as pessoas nos veem. Sou filha de uma mulher negra que também teve a experiência de ser cantora em um mercado branco e machista. Já refleti bastante sobre e isso me serviu de experiência. Aprendi que nunca vou ser só uma cantora, sempre vou ser uma cantora negra. Sendo uma mulher negra no mercado, sei que sempre vai ter alguém achando que vai poder se posicionar por mim, ter domínio sobre o meu trabalho. Quando decidi seguir a carreira na música entrei de cabeça, ainda novinha, e tive que aprender tudo isso na raça. Fui muito danada de bater de frente.

Por causa da sua cor, cobram que você cante músicas mais combativas? Tem uma galera que pensa que preto não pode falar de amor. Lembro que quando lancei meu primeiro EP algumas pessoas criticavam o fato de eu cantar música romântica. Muita gente espera que a gente só fale sobre as nossas dores, não querem ver a gente falar sobre nossa autoestima. Só que eu não me deixo influenciar. Se algum momento eu quiser falar sobre coisas mais dolorosas – já me perguntaram, inclusive, se eu nunca sofri por amor – isso vai rolar também, não é um problema pra mim.

As pessoas associam amor ao sofrimento e o que você canta diz justamente o contrário. Nem todo amor precisa ser um sofrimento, dá pra ser um sentimento leve. A gente consegue isso, mas acho que é preciso se abrir. Às vezes você vem de situações muito difíceis do passado e não consegue enxergar isso.

Acho bonito quando você, na canção Desatei, fala de alguém que abriu mão de um relacionamento abusivo porque aprendeu a se amar. A minha nova música, Lovezinho, também tem essa pegada de colocar a mulher como dona da própria história, em que ela é perfeitamente capaz de ir embora na hora que quiser, que não depende de ninguém. Às vezes, ela pode até amar, mas quer ser livre. É importante falar sobre isso.

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