Gaby Amarantos: Afeto também é luta

por Denise Meira do Amaral

A cantora paraense, que acaba de lançar o álbum ”Purakê”, aprendeu com seus antepassados que a revolução também pode vir através da arte, do amor e da beleza

Não é por ser mulher, negra e nortista que Gaby Amarantos tenha que só falar sobre suas dores. Com botas prateadas, figurino de acrílico laranja e olhos pintados em vermelho, a cantora paraense retrata uma Amazônia ao mesmo tempo ribeirinha e futurista no clipe “Vênus em Escorpião”, canção de destaque de seu novo álbum “Purakê”, lançado no último mês. Abordando as queimadas na floresta com uma pirotecnia de cores e Ney Matogrosso soprando a fumaça de um charuto sob o globo terrestre, entoando o refrão “Eu gosto mesmo é de amar” – em uma poderosa psicodelia fantástica à la Michel Gondry –, o clipe é um bom resumo do que se esperar da nova fase da cantora paraense.

A vontade de fazer esse clipe foi engajar as pessoas com a causa a partir de um lugar de empatia. “A música não fala: ‘A Amazônia está queimando, o nosso pulmão do mundo’, mas mostra de um jeito que você pensa: ‘Caramba não sabia que era sobre isso’ e a gente consegue trazer a atenção das pessoas, fazer com que elas se conectem de uma forma que não seja panfletária”, acredita.   

Vestindo uma camiseta branca em homenagem à Dandara, guerreira negra do período colonial do Brasil, que preferiu a morte à escravidão e aclamada como Heroína da Pátria, em 2019, Gaby conta no papo com a Tpm que quanto mais a gente entrar nesse lugar de combate, mais se martiriza e se machuca. “É muito dolorido para gente que é mulher negra, mulher indígena, ter que estar sempre gritando as nossas dores. Não aguento mais dores, quero arte, quero amor, quero beleza”, diz ela, que aprendeu com seus antepassados que a revolução também pode vir através da música, da arte e da dança. “Mesmo escravizados eles estavam encontrando formas de resistir e sobreviver”. 

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Após aderir ao turbante e estudar sua ancestralidade, Gaby passou a entender sua negritude de uma forma mais política e que a solidão da mulher negra, enfrentada desde sua adolescência, tinha um nome e um porquê. “Por isso é muito importante ter mulheres negras, mulheres indígenas e mulheres que passam por opressão colocadas em lugar de beleza, em lugar de seres humanos para serem amados. Desde capa de revista a uma protagonista na novela, a uma deputada”, conta.  

Mortes

Já no clipe “Amor para Recordar”, em parceria com Liniker e com participação de seu filho, Davi, 12, sua sobrinha Ana Vitória, 5, e sua irmã Gabriele Amarantos, Gaby interpreta uma mãe ribeirinha que teve seu filho apartado após ir em busca do grande sonho da cidade grande. Ao final, a mãe morre e é velada em cima de um flutuante, no rio Piriquitaquara, em um dos trechos mais emocionantes de todo o disco. “Pensei muito em me conectar com essas histórias e com tantas pessoas que perderam entes queridos. Não só de quem perdeu pessoas na pandemia, mas, de certa forma, tem essa conexão com quem foi impedido de ritualizar o seu luto. Pensei muito na minha família, no meu trabalho, no meu filho e na minha mãe, que não está mais aqui”, conta.

Prestes a fazer sua estreia como atriz de novelas na Globo como Emília, uma faxineira que sonha em ser cantora de rádio, na próxima novela das 18h, “Além da ilusão”, Gaby, que já gravou inúmeras participações como ela mesma em algumas produções, é protagonista ainda do longa chamado “Serial Kelly”, sobre uma cantora de forró eletrônico em busca de ascensão – sem previsão de estreia. Gaby também apresenta o programa “Saia Justa”, há três anos, no GNT. 

Tpm. Seu novo álbum, o “Purakê”, é uma alusão ao peixe elétrico da Amazônia, com voltagem chegando a quase mil volts. O que você traz desse peixe?

Gaby Amarantos. Carrego muito dessa eletricidade. É um choque que eu tenho, que o álbum tem, que eletriza, revigora e mostra para as pessoas novos caminhos e sonoridades. Acho que sou uma artista bem fora do eixo, de um segmento diferente, que se propõe a fazer trabalho visual diferente. Sempre fui a diferentona do rolê. E o poraquê é um peixe bem diferente também. Ele não tem um formato de peixe, parece uma enguia, mas também parece uma cobra, tem várias ramificações. Também sou assim. Ele vive nos igarapés mais profundos porque não é um peixe de fácil acesso. Eu cheguei a conhecer porque meu avô ribeirinho pescava e era um grande evento quando eles pegavam um poraquê. Para a cosmologia indígena, o poraquê era um índio guerreiro na tribo e, para querer se comparar ao Deus Tupã, começou a entoar por trovões. 

O que você aprendeu convivendo com seus avós e com seus pais na infância? Nossa, muita coisa. Mas o mais importante foi essa conexão com a natureza. Tive uma infância ribeirinha, né? Passei grande parte da minha vida no meio da floresta, tomando banho de rio, nadando nos igarapés, vendo os botos e cobras atravessarem o rio, aprendendo o nome das árvores, dos frutos, do tempo de cada fruto, de cada bicho, de cada lenda, do canto de cada pássaro... Isso é muito rico para mim. Através do “Purakê” a gente quer mostrar para a galera essa Amazônia além do estereótipo, sabe? A gente quer que as pessoas realmente se conectem com ela. 

As pessoas ainda enquadram os artistas do Norte com um olhar para o exótico? Acho que a galera já entende nossa música como um movimento sério, relevante e consistente. As pessoas agora ficam esperando quando será a próxima novidade que vai vir do Pará (risos). O álbum é uma amostra do que a nossa cena local está produzindo porque contamos com vários artistas ribeirinhos. No clipe “Amor para Recordar”, o styling, a identidade visual, a pesquisa e até a animação são feitas por artistas da periferia paraense. Já no clipe “Vênus em Escorpião”, o figurino foi criado por um ribeirinho descendente de indígena, o Labo Young. Depois dá uma olhada no Instagram dele. É maravilhoso, já saiu até em revistas internacionais. Tem também uma artista indígena incrível de Manaus que chama Uýra Sodoma, as Themônias, um grupo de drag queens indígenas pretas, afroribeirinhas... Uma galera bem legal dessa cena nova.

Seu segundo álbum, “Purakê”, chega depois de um hiato de quase dez anos. O que você mudou do primeiro disco para cá? Como era a Gaby de antes? A Gaby de antes era uma pedra bruta precisando ser lapidada. Não que hoje eu seja um diamante, mas evoluí bastante em relação ao desenvolvimento de sonoridade. Gravamos o “Treme” com a missão de mostrar para as pessoas o que era essa música da periferia. As pessoas leram muito como um disco de tecnobrega, que eu amo, tinha toda essa música que a periferia estava produzindo. E no “Purakê” quero mostrar beleza. Já conhecemos esse som da periferia, e agora, o que mais tem? Ele vem muito nesse lugar de revelar essa Amazônia afrofuturista indígena e quebrar estereótipos. E muito através do elemento água, trazendo um cenário de praia de rio e do romance de verão, na Amazônia dos igarapés. Porque a gente aprendeu que a Amazônia é o pulmão do planeta. Mas, na verdade, o elemento mais forte da floresta é a água, são esses rios flutuantes invisíveis que umidificam o planeta e, por conta deles, a gente respira. 

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Qual seu signo? Sou leonina. 

Achei que fosse de água... Você sabe que quando conheci a Elke Maravilha, a primeira coisa que ela me perguntou foi que signo eu era. Disse que era Leão e ela falou: “Você é uma serva de água, uma serva de peixe. Vai passar por esse mundo para servir pessoas do signo de água”. Meu filho, minha mãe, várias pessoas em minha volta são de água. E a Amazônia é água. Acho que é um serviço fazer as pessoas se apaixonarem por essa beleza da floresta e quererem passar um verão, um Réveillon, tomar banho nesse rio, se envolver com essas lendas e assim entender a importância de defender a Amazônia. 

Esse álbum tem todo um significado familiar também para você, né? Muito. Ele é uma saudação à minha ancestralidade. Dos meus pais, dos meus avós, de todos os meus familiares ribeirinhos, meus antepassados que foram escravizados... O quilombo deles ficava no meio da Amazônia. O engenho que eles trabalhavam de cana de açúcar era no meio da floresta. Para chegar até a casa do senhor feudal, eles tinham que navegar de canoa ou de barco, nem existia rabeta, eles tinham que remar. Toda minha ancestralidade perpassa pela água.

E essas histórias todas, como descobriu? Desde criança sempre fui muito interessada em histórias. Meu bisavô Henrique faleceu com 114 anos e morava no meio da floresta. De dois em dois meses, ele vinha para a cidade, ficava lá em casa e conversava muito com ele. Sempre que encontrava com os mais velhos perguntava: “Como era quando vocês eram crianças? Como vocês trabalhavam?”. A Dona Onete, minha grande amiga e que está no meu álbum, era educadora e deu aula para os meus pais. Ela conviveu com os meus avós e meus bisavós.

A Dona Onete deu aula para os seus pais? Pro meu pai, para todos os irmãos, para minhas tias... Todo mundo foi educado por ela. Ela era a professora Ionete. Ela me conta muitas destas histórias. Tenho muitos áudios dela gravados. Tem coisas lindas da dança, da cana de açúcar. Ela me conta que minha família era muito musical, estavam sempre trabalhando, dançando, fazendo batalha de rima, construindo instrumentos com tronco de árvore e com folhas. Sempre fui uma criança que teve interesse em saber sobre minha família. E até hoje, quando tenho a oportunidade de encontrar o pessoal mais velho, já boto o meu gravadorzinho de voz para funcionar. 

O que seus pais faziam quando você era criança? O meu pai [Conrado] trabalhava em um banco. Começou como segurança, depois foi pro caixa, até virar gerente da tesouraria. Trabalhou por 28 anos lá. Minha mãe [Elza] era dona de casa, que já é um puta trabalho, mas também fazia mil coisas. Costurava, cozinhava para fora e era consultora desses produtos de catálogo de beleza. Minha mãe já partiu, em 2015. Ela era muito artística. Tenho certeza de que ela teria sido uma artista plástica se tivesse tido incentivo, porque trabalhava muito com artesanato, fazia muita coisa com pintura, umas paradas meio instalação, costurava, fazia crochê e misturava tudo. Ela era também uma ótima naturopata. Como nasceu na floresta, cultivava uma hortinha e uma florestinha, com todos os remédios que fazia. Era super bruxona. 

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E li que para compor o álbum você fez uma imersão de vários dias na floresta, né? Como foi isso? Nossa, uma delícia. Pegamos um barco no início de 2020, no último Carnaval antes da pandemia, junto com o Jallo, nosso diretor musical, e o Lucas Estrela, meu parceiro de composição de várias músicas. Fomos para o meio do rio Arapiuns, em Alter do Chão, comendo peixe assado, tomando vinhozinho, tomando banho de rio e fazendo música. Era cada lua cheia, cada pôr-do-sol, cada fogueira na praia! E a gente só escrevendo as músicas. Foi realmente uma imersão para podermos contar um pouquinho dessa história do nosso ponto de vista. A gente tem que mergulhar nesse rio e ir para dentro dessa floresta pra falar dessa Amazônia.  

Você recebeu algum tipo de mensagem de outro plano nesse processo de imersão na floresta? Senti muito a presença dos meus avós. Tenho inclusive um sonho recorrente que é com um lugar que eu frequentava quando criança. Durante o processo, sonhei muito com a floresta, que eu era um barco e me via flutuando no rio. Eram as minhas pernas, o meu corpo, mas meu corpo era um barco. Tinham várias pessoas em mim e eu estava conduzindo todas elas. Meu Deus, fico arrepiada só de lembrar. Foi uma conexão muito forte. Como sou muito ligada a espiritualidade e a manter esses saberes ancestrais, ficava pensando como é que eu ia conseguir contar essa história, falar da floresta e do poraquê. O próprio nome do álbum surgiu assim. Fomos passar um Réveillon isolados num lugar que se chama Floresta Encantada. É um lugar que tem um conglomerado de igarapés e o poraquê adora porque é um peixe de água escura. A gente estava no meio desse lugar e vi uma cobra verde – símbolo de boa sorte pra algumas etnias indígenas. Estava justamente pensando no nome do disco e surgiu o “Purakê”. Quero muito que as pessoas se conectem com ele e com toda essa natureza. 

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No clipe “Vênus em Escorpião”, com Ney Matogrosso e Urias, você mostra a queimada das florestas. Você também disse que estamos perdendo nossos rios flutuantes. Estamos acabando com a Amazônia, principalmente com esse governo de agora? Nossa. Acho que a vontade de fazer esse clipe foi para que que as pessoas minimamente conseguissem se conectar em um lugar de empatia. Como será estar no meio de uma floresta enquanto ela está queimando? Porque o mais triste disso tudo é que tem tanta coisa acontecendo que as pessoas nem conseguem parar para lembrar que a Amazônia está pegando fogo. É tanta coisa, tanto absurdo, todos os dias... Fiquei pensando como é que a gente consegue trazer atenção das pessoas, fazer com que elas se conectem de uma forma que não seja panfletária. A música não fala: “A Amazônia está queimando, o pulmão do mundo”. Mas ela mostra de um jeito que você pensa: “Caramba não sabia que era sobre isso”. 

E fica muito mais potente porque toca pelo lugar do afeto e não pelo combate, né? Sim. Sou muito mais desse lugar. Entendo que às vezes é necessário brigar, gritar, derrubar estátua, tem horas que não dá para ficar só no afeto, mas tento o máximo possível honrar todos esses ensinamentos que aprendi com os meus ancestrais. Eles falavam muito disso, da revolução através da música, da dança e da arte. Mesmo escravizados eles estavam dançando, cantando, encontrando formas para resistir e sobreviver. E além de ser mais potente, acredito que faz bem tanto para quem se conecta, quanto pra gente. Quanto mais a gente entra nesse lugar de combate, mais se martiriza e se machuca. É muito dolorido pra gente que é mulher negra, mulher indígena, ter que estar sempre gritando as nossas dores. Não aguento mais dores, quero arte, quero amor, quero beleza. 

Como foi contracenar com o Ney Matogrosso nesse clipe em plena pandemia? Gravei a música em um estúdio, no Rio, e para o clipe gravamos todos juntos, presencialmente, eu, ele e Urias. Com todos os protocolos, todo mundo testado, etc. Até por isso só tem nós três no elenco. Antes faria um clipe com elenco gigante. Gravamos algumas cenas separados, mas no momento do ritual da terra estamos todos juntos. Foi uma delícia porque sou uma criança Ney Matogrosso, cresci tendo ele como um ícone. Quando mandei a música que escrevi e ele disse na hora que gostou, foi muito poderoso para mim enquanto compositora.  

Além do Ney, você resgata no disco uma geração antiga e muito poderosa em parcerias com Alcione, Dona Onete e Elza Soares... Como esse álbum levou muito tempo para ser feito, precisava de uma bênção. E para mim foi como: “Ela está de volta, vamos abençoar o caminho dela”. Sempre fui de saudar as pessoas mais velhas, é importante resgatar esses valores porque a gente vive e uma sociedade que valoriza muito a juventude. É lindo se conectar com a galera mais jovem, mas o que que vai ser dos mais velhos? É preciso ter trocas.

O clipe “Amor para Recordar” foi gravado com seu filho, mas tem muito da sua mãe ali também, né? E tem a parte da árvore sagrada em que você chora. Como foram os bastidores disso? Essa samaumeira também é outra árvore que vem desde a minha infância. O meu avô contava histórias dizendo que ela era mágica. Ela é a gigante da floresta, é muito maior que as outras. Há muito tempo eu queria um clipe em que pudesse falar dessa árvore. Nesse lugar em que gravamos existem remanescentes quilombolas e a galera que mora na região desse rio, que chama Piriquitaquara, fez dessa árvore um santuário. Toda vez que uma pessoa parte, eles pegam um objeto pessoal dela e colocam ali dentro, para abençoar a passagem. A gente nem sabia disso quando estava procurando a locação. E pensamos em trazer essa cena para o clipe, que é o momento mais emocionante, né? É um momento de choro, da passagem dessa mãe, que na frente do filho se mantém forte. Quantas vezes a gente faz isso, né? E depois a gente desaba e busca esse lugar para poder ser abraçado. A árvore está abraçando essa mãe naquele momento. Está acalantando, colocando-a no ombro para amenizar a dor. 

O que você estava pensando nesse momento em que chora na árvore? Foi muito natural esse estado, porque sou atriz. Mas pensei muito em me conectar com essas histórias e com tantas pessoas que perderam entes queridos. Não queria que falasse somente com quem perdeu pessoas na pandemia, mas, de certa forma, tem essa conexão com quem foi impedido de ritualizar o seu luto. Pensei muito na minha família, no meu trabalho, no meu filho e na minha mãe, que não está mais aqui. Mas teve também um choro de gratidão. De poder realizar um trabalho tão importante quanto este de mostrar o Brasil. 

A sua mãe morreu do quê? Ela partiu em 2015 após um câncer no pulmão. Foi muito rápido. Ela sempre foi de fazer exames todo mês, se cuidava, ia pra academia, fazia tomografia, raio-X de tudo. De repente, começou a sentir um aperto no peito, não conseguir respirar e foi para a UTI. Ficou internada e entubada e descobrimos que era um tumor no mediastino. Isso foi num sábado e no próximo sábado, quando ia começar a quimioterapia, ela partiu. Em uma semana. Ela tinha 69 anos. Fiquei muito com ela no hospital, cheguei a falar nas redes sociais que ia dar uma pausa na carreira. Fiquei vivendo esse momento. É muito triste ver o que acontece com as pessoas que têm essa doença. Esse pós é bem pesado e ela não precisou a passar por nada disso, sabe? Encarei muito como um merecimento mesmo, porque minha mãe poderia ser canonizada. Ela tinha um trabalho social enorme, era muito altruísta. Ela queria ser freira, né? Só que meu avô disse que se ela fosse freira, iria deserdá-la – como se ele fosse rico (risos). Mas ela conheceu meu pai, amou, se apaixonou, teve uma história de amor linda com ele. 

O clipe fala muito sobre o amor, mas também sobre a morte. Por que é importante falar sobre o fim da vida? Pois é. Entre os trabalhos sociais que minha mãe fazia, tinha o de rezar em velórios. Toda vez que alguém falecia, quase toda semana, alguém ia lá em casa falar: “Dona Elza, fulano de tal faleceu”. Ela pegava o tercinho dela, juntava o grupinho de senhoras e iam lá fazer os sete dias de terço para as pessoas que eram católicas. Eu ia muito com ela em velório. Era quase como uma diversão, era uma parada muito normal. Minha mãe rezava e a gente ficava ali comendo um bolo, tomando um café e ouvindo histórias sobre a pessoa que tinha partido. Minha mãe sempre me levou, então para mim a morte não é um tabu. No “Saia Justa” a gente fala muito dessa pauta, pelo menos duas vezes ao ano, sobre o quanto esse assunto é tabu. Se a gente deve levar crianças no velório, como é que a gente conversa sobre isso. Eu queria tratar isso de uma forma poética também. Para as pessoas poderem se conectar. 

Como você atravessou a pandemia? Teve algum surto em algum momento? Claro, como todo mundo, né? Mas comecei a fazer terapia no comecinho da pandemia. Pensei: “Opa, acho que é uma boa hora”. Além de ter várias ferramentas. Graças a Deus estou num lugar que consigo ter uma certa estrutura. Estava com um trabalho fixo e nesse momento me deu uma tranquilidade. Para mim, foi um momento de imersão criativa. Nesse período consegui realmente parar para fazer o “Purakê”. Acho que consegui fazer uma coisa boa desse limão. Mas tive vários surtos, vários momentos de revolta, vários momentos de indignação, de achar que não ia acabar. 

E o casamento? Como ele atravessou a quarentena? Nossa, foi uma prova, né? Digo que quem passou da pandemia vai ficar junto para sempre. A gente se compreendeu bem, respirou. E a gente trabalha juntos. Ele é meu diretor criativo, então todo esse trabalho do disco foi feito em parceria. A arte e a criatividade ajudaram muito a gente a se divertir e a passar bem. 

Li em uma entrevista em que você dizia que o amor não era feito para você. Menina, mas não é que eu mudei de ideia (risos)? O Gareth é uma coisa assim, que realmente... Queria que isso fosse o normal, para quem quer ter um relacionamento – porque a gente não precisa de um relacionamento para ser feliz.  Acho que quando cheguei nesse lugar de entender isso, quando estava feliz, realizada, pensei: “Agora eu quero”. Precisa ter alguém para somar. Em todos os trabalhos que a gente faz junto, desde a família até a casa, as plantas e os nossos clipes, a gente faz com muito amor, se divertindo – tretando às vezes porque a gente não é casal perfeito, não, não faço essa linha. Mas ele é o meu encontro de alma. Antes da minha mãe partir, ela o conheceu. Quando olhou para mim, falou: “É ele”. Ela sabia que meu parceiro vinha de muito longe, porque tinha ido numa senhora que lia em um copo d'água o futuro, essas coisas das bruxarias da minha mãe, e essa senhora tinha dito para ela que meu amor estava muito distante, em outro país, que ia demorar muito para chegar. Mas que quando chegasse ia ser meu parceiro de vida. Lembro da minha mãe falando isso para mim quando o apresentei. Ela disse que estava esperando conhecer a pessoa certa para me dizer isso. Eu falei: “Opa! Recebo e agradeço”. Nosso amor está abençoado por dona Elza também. 

Antes dele, você passou pela solidão da mulher negra? Olha, durante muito tempo. O Gareth foi meu segundo relacionamento da vida, de pessoas que andavam comigo de mão dada e que me apresentavam como namorada, esposa ou companheira. Todos os outros relacionamentos foram escondidos, com pessoas que não queriam me assumir. Levei muito tempo para me relacionar, perdi a virgindade com uns vinte e poucos anos. Já sofri muito por isso. Não tinha namoradinho na escola, na festa junina os meninos não queriam dançar comigo. 

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Você entendia por que isso acontecia na época? Não. Só fui tomar consciência dessa parada quando comecei a fazer o “Saia Justa”. Tem até um discurso meu bem forte falando sobre a solidão da mulher negra. Foi quando passei a usar turbante. O turbante foi uma grande mudança. Através dele passei a estudar sobre a minha ancestralidade, fiz um teste de DNA, descobri minhas origens e fui entender a minha negritude de uma forma mais política. É muito importante termos consciência enquanto mulher para criamos ferramentas para não passarmos por essa solidão. Por isso é importante a gente ter mulheres negras, mulheres indígenas e mulheres que passam por opressão colocadas em lugar de beleza, em lugar de seres humanos para serem amados, sabe? Desde capa da revista a uma protagonista na novela, a uma deputada. 

Esses espaços vêm sendo ocupados, mas ainda de uma forma muito tímida, né? Tem melhorado nos últimos anos, mas ainda temos muito a avançar, mesmo porque é uma discussão recente. Eu tenho um relacionamento interracial. Mas acho superimportante esse amor entre pessoas negras, de criar famílias que se amam e que troquem afetos, que tem orgulho. 

Conta um pouco sobre a novela que vai participar? Ainda sei muito pouco. Só recebi o convite e fiquei muito feliz porque queria muito atuar. Sei que minha personagem é a Emília, e estou muito feliz em poder ir para esse outro lugar. Sempre fui atriz, tenho carteirinha de atriz e queria poder trabalhar mais com isso. Estou descobrindo um outro universo com uma galera que está sendo muito afetuosa. Estou em êxtase e no céu com essa nova família. 

Você tem algum grande sonho que gostaria de realizar? Nossa... Acho que tenho muita coisa a agradecer, não preciso pedir mais nada, de verdade. Só agradecer ao universo, a Deus, a tudo que eu acredito, a minha família, aos meus fãs que sempre esperaram, à minha equipe, ao meu marido, à minha irmã, a todo mundo que acredita no meu trabalho. 

Créditos

Imagem principal: Estúdio Tereza e Aryane

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