"Quero outra sociedade"

por Gabriela Borges

A italiana Silvia Federici fala sobre a relação entre feminismo e anticapitalismo, desvalorização do trabalho doméstico e caça às bruxas

Desde o lançamento de Calibã e a Bruxa (2004), seu ensaio mais famoso, Silvia Federici tem feito muita gente pensar na relação do feminismo com o movimento anticapitalista. No livro, lançado em 2017 no Brasil pela editora Elefante, a filósofa e historiadora italiana defende como o fenômeno da caça às bruxas, principalmente na Europa, foi essencial para o desenvolvimento do capitalismo, que ela define como um sistema fundado no trabalho doméstico gratuito das mulheres e no trabalho escravo. Quem lutava contra ia para a fogueira. Como consequência, ao longo da história perdemos nossos direitos e o controle sobre nossos corpos. Ela afirma que as mulheres seguem sendo mortas por bruxaria em países da África, Ásia, América Latina e na Índia, além de serem perseguidas em todo o mundo por encabeçar resistências no campo e na cidade.

A autora, professora emérita da Universidade de Hofstra (Nova York), ajudou a criar o movimento feminista internacional Wages for Housework na década de 1970, nos EUA, que defendeu a valorização e a remuneração do trabalho doméstico e reprodutivo feito pelas mulheres. Este trabalho rendeu livros sobre o tema, como O Ponto Zero da Revolução, lançado este ano no Brasil (também pela ed. Elefante, em parceria com o Coletivo Sycorax, que disponibiliza gratuitamente todas as obras que traduz, em formato digital). 

Aos 77 anos, Federici esteve recentemente no país por cerca de um mês para lançar o livro Mulheres e a Caça às Bruxas (ed. Boitempo) e participar de diversas atividades em São Paulo, Bahia e Maranhão. Assim como as feministas negras Patricia Hill Collins e Angela Davis, participou também do seminário "Democracia em Colapso", no Sesc Pinheiros, em São Paulo.

Ao final de sua estadia, Silvia conversou com a Tpm e afirmou que a disposição para dar tantas entrevistas, ir a diferentes eventos e conversar com muitas mulheres deve-se à necessidade de compartilhar todo o seu conhecimento no momento crítico em que vivemos — e por acreditar na construção de uma sociedade mais justa. “O capitalismo está em crise, econômica e politicamente. Estou velha. O mundo está nas mãos de vocês.”

Tpm. Você viajou muito pelo Brasil, foi ao Maranhão, a Bahia e São Paulo. O que chamou sua atenção no movimento feminista brasileiro? 
Silvia Federici. 
Aqui tem um movimento de mulheres muito forte e variado. Porque há mulheres que estão brigando por todo lado, né? Lutando no campo, nas universidades. E há uma questão fundamental que surgiu em todas as reuniões: como responder à volta e ao avanço da direita, que está ocorrendo não só no Brasil e que acontece por aqui de maneira muito forte. As mulheres estão construindo redes de apoio, organizando protestos. A importância da construção dessas redes foi o que mais me impactou. É uma das forças dos movimentos feministas e de mulheres no Brasil e na América Latina.

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Seu principal tema de pesquisa é o trabalho doméstico. Aqui no Brasil tivemos grandes avanços nas políticas públicas nos últimos governos, principalmente em relação às empregadas domésticas. Mas, por outro lado, vivemos alguns retrocessos. Como você vê essa questão? Vejo que ainda se reproduz formas de escravidão. Por exemplo, se fala muito sobre meninas de famílias pobres, de lugares muito pobres, que vão “ajudar” em casas de famílias, mas que na verdade não podem nem ir a escola e são usadas no trabalho doméstico em uma condição que seria uma nova forma de escravidão. Por outro lado, há no Brasil uma relação com o trabalho doméstico que é mais ampla do que o que acontece na Europa e nos Estados Unidos. Aqui, ele significa também o trabalho no campo [feito pelas agriculturas]. Inclui a relação com a natureza e a problemática da contaminação ambiental, principalmente em áreas de exploração de mineração e desmatamento. Então, o debate vai muito além do que acontece dentro de casa. Passa pela criação dos filhos, a procriação, o trabalho emocional, cozinhar, limpar e também pelo olhar sobre a natureza, a contaminação do meio ambiente. É muito forte essa ligação do ativismo ambiental com o feminismo em relação ao trabalho doméstico. 

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Sua vinda ao Brasil foi muito celebrada, diferentemente do que aconteceu com Judith Butler que, em 2017, foi agredida por algumas pessoas. Como você vê essa diferença em relação ao seu trabalho? Acho que as pessoas que atacaram Judith Butler não ficaram sabendo dos eventos que participei. Também é possível que eu não seja tão famosa quanto ela… A única interpretação que posso fazer é que eu não causo tantos problemas a essas pessoas. As mulheres que estiveram em minhas conferências estava interessadas no meu trabalho, não eram de direita ou de alguma seita religiosa, dessas que hostilizam as problemáticas feministas. 

Talvez essas pessoas não tenham se dado conta da importância da sua presença no Brasil. Sim, a direita me ignorou e estou muito feliz que isso tenha acontecido.

Algumas pessoas dizem que você é uma feminista radical. Você concorda? Não sei dizer, porque não gosto de rótulos. Se ser radical significa que quero uma outra sociedade, então sou radical. Outras pessoas dizem que sou marxista. Bom, uso Marx porque penso que seu trabalho é útil para muitas coisas, mas também já o critiquei muito. Pode-se dizer que sou uma feminista anticapitalista, sem dúvida. Quero outra sociedade. Não quero falar apenas do que rejeito, mas também do que espero que se realize. Me interessa sempre construir. O que espero é contribuir para a construção de uma sociedade em que tenhamos acesso ao que é produzido, aos bens materiais, que se funda sobre o autogoverno, sobre a capacidade de decidir coletivamente sobre nossas vidas. Que a gente possa recuperar o controle sobre as decisões mais importantes de nossas vidas. Criar formas de cooperação, decidir coletivamente e não competir. Esse é o feminismo com o qual me identifico. Não é um feminismo de Estado, da Hillary Clinton e da ONU, que muitas vezes é colocado pela imprensa como hegemônico, infelizmente.

O que é exatamente o feminismo de Estado? Ele foi criado artificialmente, principalmente pelas Nações Unidas, com conferências globais sobre mulheres a partir da metade da década de 70. É um projeto que tem dois objetivos: primeiro, domesticar o feminismo, eliminar seus aspectos mais subversivos, que focam nas mudanças sociais, para manter o mesmo sistema social e econômico. Segundo, vender a emancipação, fazer da mulher uma força de trabalho barata na economia global. Esse tem sido um grande projeto, desde os anos 70, quando o capitalismo enfrentou uma forte crise econômica e política: nos abrir a porta para trabalhos assalariados de níveis mais baixos, precarizados, sem benefícios reais, sem segurança. Isso serviu para passar uma falsa imagem de emancipação às mulheres.

E o que você pensa do feminismo de hoje, com o uso da internet e das redes sociais? Tenho bastante problemas com a celebração da internet como forma de organização. Tem seu lugar, mas existem outras formas mais importantes, como o encontro frente a frente, poder falar sem que todo mundo te escute. Vejo que há uma nova geração de jovens que não têm tantas ilusões como as feministas dos anos 1970 tinham com aquele chamamento das Nações Unidas. De que trabalhar fora de casa significaria buscar verdadeiramente uma nova sociedade. Acho que muitas dessas ilusões se perderam, porque a falta de segurança e a precarização do trabalho são bastante claras hoje. Essas jovens são muito conscientes do aumento da violência contra as mulheres. Toda a vida se converteu em trabalho, porque elas continuam fazendo também o trabalho não remunerado dentro de casa, à noite, aos domingos. E, muitas vezes, se endividando.

O que é a caça às bruxas do mundo de hoje? É muito mais ampla. Em muitos países há mulheres sendo acusadas de serem bruxas. Na África, na Índia, na Ásia, assim na América Latina. Principalmente pelo aumento de seitas religiosas que usam essa linguagem do demônio, do pecado, da bruxaria. E há também uma caça às bruxas mais informal, que não usa o conceito de bruxaria, mas que é um forte ataque contra as mulheres. Porque hoje são elas que encabeçam a resistência no campo e na cidade, que tentam construir formas de defesa da vida, que têm o conhecimento das ervas e das plantas, que estão recuperando seus saberes ancestrais. Mulheres que pedem autonomia, que não querem ser submetidas aos homens nem à igreja, que querem ter controle sobre o próprio corpo, como a luta pelo direito ao aborto. Que ocupam territórios, constroem casas, comedores populares, criam uma forma de vida comunitária. Juntas, se fortalecem e, por isso, são vistas como suspeitas.

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O aborto é perigoso para o capitalismo, porque não mantém a produção de futuros trabalhadoras? Eu digo que, em geral, a sociedade capitalista sempre esteve interessada que a mulher procrie. Porque uma população que cresce é muito importante para haver força de trabalho barata, mais consumidores, exércitos etc. Mas, por outro lado, o capitalismo também sempre buscou proibir a reprodução de partes da sociedade que o ameaçam, que possam reproduzir rebeldes. Muitas mulheres negras nos Estados Unidos foram esterilizadas. Nos anos 1980, houve uma campanha internacional pelo controle da população, principalmente na África e na América Latina. Minha teoria é que isso aconteceu como resposta à luta anticolonial, que teve adesão de jovens que queriam recuperar a riqueza que os colonizadores haviam roubado de seus países. Nessa época, foi criado o movimento de mulheres afrodescendentes nos EUA pela justiça reprodutiva, que pede para que o direito sobre o corpo não seja separado da luta por recursos econômicos. Há um medo de que cresça a população que luta. Por isso, acredito que a luta pelo direito ao aborto sempre deve estar junto da luta pelo direito à maternidade.

Você acha que acontece o mesmo com as mulheres lésbicas, e pessoas LGBT, que em muitos países não têm o direito de registrar filhos com o nome de duas pessoas do mesmo sexo? Sim, é a mesma lógica. De que não se pode ter filhos sem papai, mamãe e a família tradicional. Sendo que o importante para a infância é crescer em um lugar seguro e com amor. Isso é o que importa. 

Muitas mulheres dizem que depois de se entenderem feministas, questionarem o patriarcado e o machismo, passa a ser mais difícil se relacionar com homens. Isso aconteceu com você? Entendo perfeitamente. Estou em um relacionamento há muitos anos com meu companheiro, mas sempre vivemos em casas separadas. Só agora, que estamos "velhinhos" é que moramos juntos. Por um lado, é verdade que é mais difícil aceitar viver relações que são sempre complicadas. Mas, se você tem o feminismo, você também tem o poder de impor suas condições. Você se torna parte de um grupo, de uma comunidade, o que te permite se relacionar de uma forma muito diferente com os homens. Inclusive, pode também ter momentos em que vocês estejam lutando juntos pelas mesmas coisas. Mas a verdade é que as relações de poder e de desigualdade também acontecem nas relações entre mulheres, porque vivemos em uma sociedade capitalista. É um perigo achar que quando você entra em um espaço feminista todos os problemas estão resolvidos.

Você teve filho? Não, não, não [risos]!

Nunca teve vontade? Nunca tive esse desejo e admiro muito as mulheres que têm filhos, porque não sei como elas fazem… Para mim, é um trabalho muito grande, de muita responsabilidade. 

Qual é o papel do homem no feminismo? É possível homem se dizer feminista? Sim, eu acho que é possível. Existem homens que se dizem antipatriarcais e feministas.  Mas não basta que o digam, eles precisam se mobilizar, educar outros homens. Sempre digo às minhas companheiras que quando os homens se comportam de forma machista é preciso sinalizar isso muito bem, principalmente dentro dos movimentos políticos e sociais. Devemos dizer que eles estão sabotando a luta. 

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O que é ser anticapitalista, na prática? O capitalismo não é um slogan. É um sistema que desvaloriza a vida humana, dos animais, a natureza. É um sistema que nos vê como uma energia para se usar, manipular, explorar, para construir um poder privado. É antivida, com uma visão distorcida do que é a riqueza. É um sistema triste, feio, perverso, que tem causado a morte de milhões de pessoas nos últimos séculos. Acredito que ser anticapitalista significa o caminho para nos libertar dessa opressão. Mas percebo que essa temática não é presente o bastante no feminismo. Não se fala da liberdade de uma forma mais ampla para recuperar o controle sobre o que tem sido monopolizado e privatizado. Para isso, é preciso conectar mulheres com experiências diferentes, que vivem em lugares diferentes. Conectar diferentes forças. Precisamos recuperar a capacidade de trabalhar juntas, no coletivo e no cooperativo. Os espaços comuns não se constroem ignorando as diferenças, as desigualdades, mas com medidas organizadas para superá-las. 

Qual é o ponto zero da revolução? É o ponto em que se perde a ilusão. É o caminho em que buscamos nos libertar. É a morte simbólica, é deixar esse mundo para fazer revolução, para nascer uma nova sociedade.

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