A política pelas lentes do feminino

por Denise Meira do Amaral

Diretoras de cinema rompem o machismo e preparam filmes sobre temas como o impeachment de Dilma e a eleição de Bolsonaro

Cinema e política. Uma dobradinha historicamente regida por homens – brancos, na maioria das vezes. Enquanto nos sets nacionais menos de 20% dos filmes são dirigidos por mulheres, segundo dados da Ancine, o cenário político consegue ser ainda mais desolador: dos 513 deputados federais eleitos e reeleitos, 77 são mulheres, o que representa 15% da Câmara dos Deputados; e, dos 22 ministros do presidente Jair Bolsonaro, apenas duas são do sexo feminino.

Parece desnecessário explicar o dano que essa falta de representatividade exerce sobre as mulheres, tanto nas pautas políticas quanto no poderoso, e muitas vezes silencioso, discurso simbólico do cinema. Mas a boa-nova é que, pelo menos nas telas, as coisas começam a mudar. As diretoras Tata Amaral, Sandra Kogut, 53, Petra Costa, 35, Anna Muylaert, 54, e Carolina Jabor, 44, se preparam para lançar filmes que retratam o cenário político em que estamos mergulhados.

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“A mulher tem um limite por ser mulher. Na Europa, isso se chama teto de cristal. Você pode subir até determinado ponto, mas, se passar, você se corta. Por isso, elas têm lugares que são permitidos no cinema, como produtoras, que cuidam da casa, mas não na direção. É um costume milenar achar que a mulher vale menos. No mercado de trabalho, somos tratadas como café com leite”, dispara Anna Muylaert, diretora do premiado Que horas ela volta?.

Petra Costa, diretora do documentário ainda inédito Democracia em vertigem, sobre o impeachment e a eleição de Jair Bolsonaro (PSL), entoa o coro e acredita que as oportunidades no cinema são dadas por produtores – homens brancos – que procuram homens brancos para trabalhar com eles. 

Quem já viveu isso é Sandra Kogut, que está em fase de montagem do seu longa Três verões, inspirado na Lava-Jato. “Quando comecei, era muito pior. Chegava ao set e tinha que comandar um monte de homens. Algumas mulheres tentavam falar grosso, para se impor. Eu me lembro de decidir que não ia fingir ser alguém para dirigir”, lembra. “Mas as coisas estão mudando. O cinema fica mais rico quando os olhares são múltiplos.”

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As cotas para filmes dirigidos por mulheres, anunciadas no ano passado, são uma solução defendida por Tata Amaral, que prepara o documentário Democracia, em que mescla sua vida pessoal com os acontecimentos políticos recentes do país, como as manifestações públicas e a derrota do PT. “Acho muito bom que existam políticas para corrigir essa desigualdade de gênero no setor”, afirma. “Se somos 19% fazendo filmes e a sociedade brasileira é composta por mais de 50% de mulheres, o audiovisual não está representando a sociedade brasileira.”

Confira a seguir a lista de filmes que estarão em breve nos cinemas (com exceção de O processo, de Maria Augusta Ramos, que estreou no ano passado).

Democracia, de Tata Amaral  

“Desde o impeachment, em que não ficou provada a responsabilidade fiscal de Dilma, fiquei insegura em relação à democracia. Lembrei quando minha filha [a também cineasta Caru] nasceu, em 1979 [já no período de abertura política do regime militar], e eu e o pai dela fizemos uma promessa para que ela sempre vivesse em um país democrático. Por isso, resolvi fazer esse filme, um documentário de caráter pessoal. É um filme de observação do que está acontecendo, das manifestações públicas e das convenções, mas, principalmente, das últimas eleições, que trouxeram um componente dramático muito forte, já que o candidato mais votado [nas primeiras pesquisas de intenção eleitoral], que governou o Brasil por oito anos e saiu com mais de 75% de aprovação, estava preso [o ex-presidente Lula], e, o segundo colocado, era um deputado de extrema direita. Foi uma eleição ultra polarizada”, diz Tata.
Estreia: sem previsão

Democracia em vertigem, de Petra Costa  

“Comecei o filme em março de 2016, quando surgiram as grandes manifestações – primeiro a favor e, depois, contra o impeachment. Acho que este está sendo o momento histórico mais forte que vivi, desde a eleição de 1989. Coisas que estavam fermentando explodiram em 2016 e as contradições sociais ficaram muito evidentes. Foi o momento em que me conectei com tudo isso e tive um impulso de ir às ruas filmar. Achei muito forte acompanhar todo esse processo, que parecia ter sido escrito por um roteirista ‘thrilleresco’, e, sem dúvida, revelou muitas coisas sobre a sociedade brasileira. Os conflitos de classe que estavam enterrados ficaram evidentes e ódios antigos ressurgiram. Fiz o filme também porque eu e a democracia [brasileira] temos a mesma idade e pensava que nos nossos 30 e poucos anos estaríamos pisando em terra firme. Ele surge da vertigem constante dos últimos mil dias”, conta Petra.
Previsão de estreia: foi exibido pela primeira vez na noite de abertura do festival de Sundance, no dia 24 de janeiro.

Três verões, de Sandra Kogut  

“Nestes últimos anos, passei a acompanhar, como muitos brasileiros, os escândalos e as prisões que vimos se suceder. Muito se falou sobre os protagonistas dessas histórias. Mas o que acontece com quem está em torno deles? A família próxima, os empregados, as pessoas de confiança? Foi a vontade de falar deles que me levou a esse filme. Três verões se passa ao longo de três anos consecutivos [2015, 2016 e 2017], entre o Natal e o réveillon, em uma casa de praia em um condomínio de luxo no Rio de Janeiro. A protagonista do filme, a governanta Madá, vivida por Regina Casé, é a verdadeira dona da casa. Ela está entre dois mundos: manda nos empregados, mas obedece aos patrões. Até que a vida na casa começa a se desfazer com a prisão do patrão, Edgar [Otávio Muller]. O que acontece com aqueles que estão em volta quando os poderosos e corruptos são presos?”, pergunta Sandra.
Previsão de estreia: segundo semestre


Vertigem, de Carolina Jabor e Anne Guimarães

“Sempre tive vontade de fazer um filme sobre jovens e o olhar deles sobre o amor, as relações e os gêneros. No dia da primeira manifestação do #elenão [contra Bolsonaro], eu tinha uma festa meio surrealista e carnavalesca, de música eletrônica. Foi um paralelo muito doido ver as pessoas migrando do #elenão para a festa. Uma mistura da realidade, mas, ao mesmo tempo, de querer sair dela, transcender. Foi ali que pensei em filmar aquilo. Acompanhei a [atriz] Luisa Arraes, que estava no protesto e também foi à festa. O [ator] Johnny Massaro entrou no filme também. Foi tudo muito orgânico. É uma ficção a partir dos acontecimentos reais, sob a ótica de três jovens artistas impactados pela política. Um filme feito com muito improviso, com diálogos criados na hora. É um filme meu, da Luisa, do Johnny, do Ravel [Andrade], da Anne Guimarães [que também assina a direção]... E surgiu como uma necessidade de dar uma voz neste momento tão angustiante.”
Previsão de estreia: neste semestre 

Alvorada, de Anna Muylaert e Lô Politi 
“O filme é um retrato do período do afastamento da Dilma. Ele se passa no Alvorada e é um registro do que aconteceu no período até ela sair, passando pela Câmera e pelo Senado. Um filme de registro.”
Para Muylaert, o impeachment de Dilma, a primeira presidente mulher do Brasil, despertou nas cineastas o desejo de abordar política. “O machismo é, entre outras coisas, um clube de favores, e isso está exposto em todos segmentos da sociedade, inclusive no Congresso. Vimos uma mulher ser derrubada por um motivo duvidoso. As mulheres ficaram revoltadas, porque isso espelha o que elas vivem.”
Previsão de estreia: fim de 2019

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