As mulheres respondem por 85% dos afazeres da casa. Se fossem pagas por esse trabalho, produziriam o equivalente a 11% do PIB, revela estudo da UFMG
Cozinhar para a família, lavar louça, lavar roupa, arrumar a casa toda, fazer a feira e o mercado do mês, pagar os boletos, levar no colégio, no futebol, no hospital, tirar o lixo, trocar a luz, cuidar das crianças, dos avós, do cachorro, da horta, de tudo. A labuta faz lembrar os versos de Cotidiano, de Chico Buarque: “Todo dia ela faz tudo sempre igual...”
A música é da década de 1970. Mas o cotidiano de cuidar do lar, essencial para manter uma casa de pé, ainda é uma responsabilidade rotineira que recai principalmente sobre os ombros da mulher – vide a recente hashtag #porramaridos, que reuniu queixas diversas de mulheres sobre a ausência de seus companheiros na dinâmica domiciliar: da preguiça de uns para lavar uma simples tigela à absoluta incompreensão de outros sobre o funcionamento da residência ao seu redor (por exemplo, jogar a roupa na máquina, mas não ligá-la pois a companheira “não pediu” ou “não avisou”...)
As mulheres respondem por 85% dos afazeres domésticos, com dedicação diária de até 6 horas, enquanto a participação dos homens chega a 60 minutos. Se fossem remuneradas pelo trabalho feito dentro da própria casa (equivalente ao rendimento médio de uma empregada doméstica com carteira assinada), as mulheres responderiam por quase 11% do PIB nacional, indica o estudo da demógrafa Jordana Cristina de Jesus, 27, autora da tese Trabalho doméstico não remunerado no Brasil: uma análise de produção, consumo e transferência, defendida recentemente no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Todas as mulheres realizam trabalho doméstico, não só as chamadas ‘donas de casa’. O estudo considera mulheres de todos estratos de renda e escolaridade, trabalhando fora ou não”, diz Jordana. Na faixa dos 20 anos, mulheres de níveis de renda baixa dedicam uma média de 4 horas de trabalho doméstico não remunerado por dia – mulheres de níveis de renda alta, 1 hora. Na casa dos 30, mulheres mais pobres têm uma jornada média de 5,8 horas – mais ricas, 2 horas. Esta diferença se dá pela probabilidade mais alta de contratação de uma empregada e/ou aquisição de determinados equipamentos e eletrodomésticos, diminuindo a carga horária para tais tarefas.
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Mas a diferença de gênero nas horas destinadas ao trabalho doméstico é sensível a todos os níveis de renda e instrução. “Os homens fazem o mínimo do mínimo. Na média, eles fazem atividades que atendem apenas a demanda de seu próprio consumo”, assinala a autora.
Questão de tempo
Tais diferenças vêm sendo investigadas em uma série de países. A tese cita, por exemplo, o estudo dos sociólogos britânicos Evrim Altintas e Oriel Sullivan que, a partir da análise de dados de 19 países, sinaliza uma tendência de maior igualdade de gênero no tempo do trabalho doméstico entre 1961 e 2011. Ao lado de Sullivan, Jonathan Gershuny e John Robinson encontraram conclusões similares na pesquisa do Conselho de Famílias Contemporâneas, referente a 14 países: se nos anos 1960 mulheres passavam mais de 4 horas no trabalho doméstico, nas décadas seguintes o número cai para cerca de 2,5 horas por dia. Mas, em todos os países analisados, os homens dedicaram menos de 60 minutos a seus lares na década de 1960 – nos anos 2000, os americanos chegaram a 1 hora e os noruegueses a 1,5 hora por dia.
“É preciso cuidado na leitura desses estudos: há países europeus exemplos de equidade, onde há igualdade de gênero dentro e fora de casa, como Noruega e Suécia; e outros marcados por sociedades ainda muito machistas, como a Itália. Na verdade, a tendência indica mais a redução do tempo das mulheres nessas atividades – e não o aumento de participação dos homens”, analisa Jordana.
Para o estudo no Brasil, a demógrafa usou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013 a 2016, cujo questionário inclui uma pergunta sobre o número de horas dedicadas a afazeres domésticos, mas deixa de fora outras atividades, como o cuidado com crianças.
Atualmente, 18 países latino-americanos coletam “dados de tempo”, que envolvem produção, consumo e transferência. O Brasil é o único deles que não detalha os indicadores. Diante desta limitação, a fim de fazer projeções, a pesquisadora combinou os dados disponíveis do Brasil com estatísticas da Colômbia, pois os vizinhos sul-americanos compartilham características sócio-demográficas, econômicas e culturais.
A partir dos cálculos, diz Jordana, a contribuição feminina para a economia através do trabalho doméstico teria representado cerca de R$ 580 bilhões, segundo a estimativa a partir de dados de 2013. “É importante pensar esse número a partir da produção e do consumo. Quanto custa, afinal, ter uma casa limpa, uma criança educada, um uniforme lavado e passado? Há todo um trabalho dentro do lar que, apesar de ‘invisível’ para o mercado, tem valor econômico”, destaca.
Visibilidade
A ideia de Jordana foi destacar uma produção que, muitas vezes, é invisibilizada no cotidiano – e nas contas nacionais. A autora partiu do pressuposto que tempo é recurso, isto é, dedicar horas a tarefas domésticas também conta como atividade produtiva, mesmo que não envolva fluxo monetário, pois os outros moradores se beneficiam delas.
“Foi preciso olhar para a questão a partir de uma perspectiva de gênero, para dar visibilidade ao assunto. Valoriza-se muito o trabalho remunerado feito fora de casa, no mercado, e se esquece as longas jornadas dentro do lar, que garante o bem-estar da família como um todo. É o que faz funcionar uma casa”, diz a autora, feminista interseccional.
“Ao levantar esses números, não temos a inocência de dizer que o trabalho doméstico deveria ser remunerado, pois não será. O que queremos é mostrar que o trabalho doméstico importa e deve ser reconhecido. É um fator importante quando discutimos licença-maternidade, previdência, diferença de salário, divisão de tarefas, tempo de lazer etc.”, considera a demógrafa. “Cada vez mais o que acontece dentro de casa precisa ser incorporado às discussões sobre o que acontece fora de casa. A questão do trabalho doméstico está pesando, inclusive, nas decisões das mulheres hoje sobre casar ou não, ter filhos ou não”, acrescenta.
Na dedicatória da tese, a autora conta um pouco de sua trajetória até o atual cargo de professora universitária: beneficiária da Bolsa Escola na infância e do Bolsa Família, a pesquisadora também teve incentivo para estudar inglês, para o colegial e, finalmente, investimento para iniciação científica, mestrado e doutorado. “Transitei de objeto de estudo de tantos demógrafos, economistas e sociólogos que tentam entender os resultados de políticas públicas, para pesquisadora, observadora e, dentro de um mês, professora de uma universidade”, relata Jordana, que atualmente integra o quadro docente na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Antes de se tornar tema de seu estudo, o trabalho doméstico foi uma realidade vivenciada desde a infância. Criados pela mãe e pela avó, Jordana e seus irmãos aprenderam os que fazeres caseiros no cotidiano. “Às vezes a gente pensa que só o nível de instrução conta para dar mais consciência aos homens para a atividade doméstica, o que não é verdade. A gente precisa de uma educação que questione padrões de gênero e quebre a ideia de que cuidar da casa é ‘naturalmente’ para as meninas. Os meninos precisam aprender desde cedo a lavar louça, ajudar na cozinha, arrumar a própria cama. Alguém vai dizer: ah, mas os meninos não ‘levam jeito’. Não leva jeito? Aprenda. E isso se aprende dentro de casa.”
Créditos
Imagem principal: Susan O’Doherty
Ilustrações: Susan O’Doherty