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por Luara Calvi Anic

Conceição Evaristo transforma sua trajetória em referência e impulso para toda uma geração de jovens escritores negros que, como ela, buscam transformar a sociedade

Aos 72 anos, Conceição Evaristo está escrevendo um rap. A ideia surgiu quando a escritora foi convidada para assinar o prefácio de um livro que traz textos de jovens autoras integrantes do Slam das Minas, um coletivo que recita poesias que tratam especialmente sobre racismo, machismo e desigualdade social. “Quando ficar pronto, quero dar para elas declamarem”, conta, sobre “O rap da experiência”, como ela nomeou. “Ao mesmo tempo que temos uma juventude negra que está sendo dizimada, temos uma outra que tem um papel muito importante na mudança da sociedade brasileira.”

Referência na literatura, tendo sido protagonista de uma grande campanha, em 2018, por sua nomeação à Academia Brasileira de Letras, é na produção dos mais jovens que ela anda realmente interessada. “Quero ler essas novas vozes, textos de meninas que têm idade para serem minhas filhas, minhas netas. Hoje, estou numa posição que, se eu falar para você ler alguma jovem escritora, você vai ter essa curiosidade.”

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Além de ser uma maneira de apoiar as mulheres, é também uma forma de retribuir o apoio que sempre recebeu do movimento negro, a quem atribui o seu primeiro reconhecimento na literatura. “É uma maneira meio simbólica de devolver essa sustentação que o grupo me dá”, diz. “De que me vale toda essa experiência se ela não for oferecida aos mais jovens?”

Semeando e colhendo

Mineira, nascida e criada em uma comunidade periférica de Belo Horizonte, Conceição é filha de uma mãe que lavava, limpava e catava papelão para sustentar os nove filhos. A trajetória de vida é longa e ela escreve desde a infância, mas o reconhecimento do meio literário foi tardio – seu primeiro livro, Ponciá Vicêncio (2003), foi publicado aos 44 anos. “Eu cheguei ao cenário de uma forma muito tardia. Estou muito grata, muito feliz, tenho dito que estou lacrando, mas aos 72 anos”, diz. “Será que, se eu fosse uma escritora branca, vinda de uma situação financeira não tão dolorosa como a de que eu vim, teria tido tanta dificuldade para publicar? Será que já não estaria nessas feiras literárias muito antes?”, questiona, enquanto faz uma visita à Escola Estadual Barão de Rio Branco, em Belo Horizonte, onde estudou durante o ensino fundamental.

Após lançar seis livros, a maioria deles com mulheres negras como protagonistas, ela roda o Brasil falando sobre o seu trabalho e trajetória. “À medida que vou tomando mais conhecimento crítico da própria literatura, conscientemente quero colocar as mulheres negras como protagonistas nos textos que escrevo.”

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Conceição desfruta agora de um momento de colheita. Esteve em Portugal para uma palestra na Universidade de Coimbra, em setembro. Em 2017, foi tema da Ocupação Itaú Cultural, em São Paulo, exposição que relembrou sua trajetória. Na próxima edição do prêmio Jabuti, no dia 28 de novembro, será homenageada com o título de Personalidade Literária do Ano.

Mas passou bastante tempo semeando. Nessa mesma escola, em Minas Gerais, para onde ela voltou mais de 50 anos depois como uma prestigiada escritora, a menina que vivia na favela teve que lidar com o preconceito praticado por professores e alunos. Aos 8 anos, em um período de miséria na sua vida, ela começou a trabalhar. Aos 10, ajudava na limpeza da casa de uma de suas professoras, muitas vezes em troca de livros. “Isso acontecia de forma muito natural. Eu saía correndo da aula, punha minha roupinha, um aventalzinho e gorrinho brancos e ia trabalhar. Havia uma herança de famílias escravocratas”, diz. A segregação, ela conta, era escancarada. Nas salas do subsolo, menos iluminadas, estudava a maioria das crianças negras, enquanto os andares mais altos eram frequentados pelas crianças brancas.

Origens

“Nessa época, eu sabia que queria alguma coisa, já trazia uma insatisfação com a vida, com a pobreza, com a dificuldade que minha família passava. E tinha certa expectativa, achava que alguma coisa iria acontecer”, conta. Nessa época, ela se recorda de um grande momento, quando venceu um concurso de redação com o título Por que me orgulho de ser brasileira?.  “Os anos 50 eram um momento em que um dos princípios da educação era cultivar o espírito ufanista brasileiro”, lembra. Foi aplaudida ao ler o texto em voz alta e, de presente, ganhou um missal [livro usado em missas] em que escreveu “Lembrança do meu segundo passo para glória”. “O primeiro [passo] era a minha formatura e o segundo, o fato de eu ter recebido o prêmio de literatura.”

Depois de terminar o colégio, em 1973, a mineira se mudou para o Rio de Janeiro, onde deu aulas para a rede pública após cursar o magistério e começou a estudar Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1996, concluiu o mestrado e, em 2011, o doutorado. Atualmente, é professora visitante da Universidade Federal de Minas Gerais.

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Conceição costuma dizer que sua literatura é baseada na ‘escrevivência’, ou em uma escrita baseada na tradição oral, que lhe foi transmitida pela família. “Meu avô foi escravizado. Minha mãe e minha tia sabiam essas histórias e contavam para mim”, lembra. “E, mesmo que as escritas sejam em primeira pessoa, é o enunciado de uma coletividade.”

Durante a visita da Trip à casa de sua mãe, em Belo Horizonte, Conceição declamou alguns poemas escritos pela matriarca em uma época de desfavelamento de sua família na comunidade de Pindura Saia, onde ela nasceu e cresceu. “Quando vejo essa poesia da minha mãe, concluo que Becos da memória [lançado em 2006] é uma espécie de reescrita desse poema”, explica. “Essa literatura oral me deu a competência para a escrita. É muito digno reconhecer que todos os espaços produzem encantamento, produzem arte, produzem esse indagar do mundo através de histórias.”

 

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Créditos

Imagem principal: Mario Ladeira

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