Uma reflexão sobre as origens do desejo

por Paola Lins de Oliveira

Como aprender a não ser racista sexual ou classista na cama? Será essa mais uma ansiedade coletiva para a conta de todas as outras que já temos?

Em 2017, aos 34 anos, eu me apaixonei por uma mulher. Até então eu tinha vivido relacionamentos longos e relações casuais com homens. Com essa nova paixão, boa parte do que eu sabia sobre mim entrou em suspenso. Confrontar esses sentimentos com as minhas experiências vividas me levou a uma encruzilhada. Ou aquele encantamento por uma mulher era um engano – de acordo com o meu histórico de desejo por homens –, ou, sendo verdadeiro o desejo por ela, a minha vida afetiva até então se desconjuntava. Durante algum tempo fiquei bem perdida. A partir do momento em que eu percebi o despertar de uma atração por essa mulher, entrei num terreno desconhecido. Pensei ter enlouquecido de leve. 

Hoje sei que a encruzilhada na qual eu me vi pode ter um outro sentido. Como diz Luiz Antonio Simas, a encruzilhada não é um lugar do dilema e do bloqueio, mas do corpo aberto para a surpresa, para os dribles e virações da vida. Uma vez na encruzilhada, o jogo é abrir o corpo para deixar aflorar suas potências e contradições, para ele seguir na direção que quiser. 

Mas até que ponto a gente consegue fazer isso? Será que a gente se ouve tão profundamente assim? O que nos impede de entrar em contato com esse fluxo do desejo? Você que está lendo pode afirmar que conhece todas as forças que agem sobre o seu desejo? 

A força erótica do desconhecido

A psicanálise diz entre tantas coisas que parte considerável do desejo é um mistério para nós mesmas. Filósofos como Georges Bataille discutem a força erótica do desconhecido, do segredo. Porção importante daquilo que nos acende viria do que nos está oculto – que sentimos até como uma certa proibição – e que desejamos desbravar, transgredir. Mas tem uma força que age sobre o nosso desejo que é muito difícil de reconhecer porque ela está carregada de um valor considerado espúrio, que contamina o que entendemos que deveria ser a integridade do sexo como pulsão singular e individual. Essa força é o poder. 

É sobre isso que a filósofa política, feminista e professora da Universidade de Oxford, Amia Srinivasan se debruça em seu livro “O direito ao sexo”, lançado no Brasil pela editora Todavia. 

Amia entra num terreno que muitos consideram espinhoso, mas não titubeia. Para ela, precisamos reconhecer que o poder influencia o desejo, não apenas o dos outros, mas o nosso também. Isso significa que as nossas preferências, nossos gostos sexuais, como tudo o mais, são construídos em um mundo atravessado por relações de poder. Nesse momento você pode estar pensando: mas agora vão querer problematizar até o meu gozo? Se Amia tem alguma razão, e eu acredito que tenha, o problema do poder já está no seu desejo, e em vez de fugir disso, a única forma de torná-lo mais livre é identificando e rompendo essas amarras.

O direito ao sexo

O livro The right to sex é um conjunto de ensaios sobre temas diferentes, como assédio, estupro, pornografia, massacres misóginos, sexo na relação professor-aluna, prostituição, que no fundo têm uma estrutura comum: a identificação de uma hierarquia sexual que distribui status desigualmente, produzindo frustração, sofrimento, exclusão e violência. 

E essa hierarquia sexual fica evidente no caso que motiva a escrita do ensaio, 'O direito ao sexo', que dá nome à obra e se tornou seu terceiro capítulo. Em 2014, um estudante universitário matou sete pessoas e feriu outras treze, suicidando-se em seguida, nos arredores do campus de uma universidade na Califórnia, nos Estados Unidos. Seria mais um episódio que levantaria discussões sobre bullying, saúde mental e o problema da facilidade de acesso a armas, mas o autor do massacre deixou um manifesto explicando seu ato como uma vingança contra a injustiça sexual que entende ter sofrido durante toda a sua vida. Como não teve acesso ao sexo e ao amor de garotas e mulheres que desejou, agora elas morreriam em suas mãos. 

O acontecimento jogou um holofote sobre o fenômeno incel, abreviação para “celibatários involuntários” (em inglês, involuntary celibates). O termo dá nome ao grupo de homens heterossexuais, em sua maioria muito jovens, que gostariam de ter relações sexuais e românticas com mulheres, mas que não conseguem. Eles se reúnem em fóruns virtuais não para discutir as causas do seu sofrimento e exclusão, e como superá-las, mas para destilar ódio contra as mulheres – que eles acusam de serem interesseiras, falsas, putas –, mas principalmente contra o feminismo. 

O debate sobre o fenômeno dos incels cresceu principalmente por sua relação com ataques virtuais machistas em bando contra mulheres – no Brasil, a professora universitária e feminista Lola Aronovich foi um alvo preferencial desses grupos de homens e teve que envolver a justiça para se proteger das ameaças. Foram as feministas que mostraram que esses sujeitos se sentem portadores de uma espécie de “direto adquirido” de ter acesso a sexo com mulheres. Amia chama a atenção para algo até então pouco discutido: o fato de que os incels não são pessoas carentes de amor e afeto, que não conseguem se relacionar com nenhuma mulher, mas jovens homens cis heterossexuais que se veem na base de uma hierarquia sexual e que desejam mulheres que estariam no topo: as jovens brancas, loiras, magras, cis, consideradas bonitas e sexys dentro dos padrões sociais. Seu reclame não é um protesto contra uma injustiça, mas contra a perda de um suposto privilégio que eles possuiriam sobre os corpos dessas mulheres simplesmente por serem homens. 

Quem decide quem é desejável?

Contrariando o que incels e muitas pessoas podem imaginar, a desejabilidade sexual – que Amia sintetiza no termo “fuckability”, como uma qualidade de ser “fodível” – não beneficia as mulheres, mesmo as que estão no topo da hierarquia, porque elas continuam sendo vistas como objetos: ter acesso a elas dá status numa transação muito parecida com a compra de um carro ou de um bem de luxo. Aqui fica evidente a conexão fusional entre patriarcado e capitalismo. A ideologia do romance é uma fantasia pré-capitalista na qual as mulheres seriam responsáveis por dar amor, cuidado, sexo e atenção livremente, fora do circuito das relações de troca visando lucro, encobrindo o fato de que elas continuam sendo tratadas como fornecedoras desses “bens” e não como sujeitos do seu desejo.

E em vez de pretender desmantelar o sistema que está na base dessa hierarquia do status sexual, incels (e não somente eles) direcionam seu ódio misógino contra o suposto sujeito do seu desejo: as mulheres. A partir do caso, a autora constrói a pergunta “alguém tem direito ao sexo?”, ou “faz sentido pensar em redistribuição do sexo?”, que ela mesma responde inúmeras vezes com uma negativa: é obvio que ninguém é obrigado a dar sexo, sobretudo porque a gente sabe que isso recairia como obrigação e coerção exclusivamente sobre as mulheres.

Mas ao mesmo tempo a questão ilumina um outro caminho para o pensamento: se existe uma hierarquia do desejo sexual, isso significa que existe uma formatação do nosso desejo para ser despertado de acordo com símbolos de poder e status, criados num ambiente cultural além da nossa subjetividade, daquilo que nos faz pessoas.

Para construir sua crítica política do desejo sexual, Amia defende que precisamos aprofundar a forma com que estamos discutindo sexo. Boa parte da conversa e da luta se concentrou na ideia do consentimento. Nunca é demais dizer que não é não, e o consentimento é sim uma regra que ajuda a orientar comportamentos que são cheios de nuances e mistura de sentimentos. Mas só o consentimento é pouco e não vai nos ajudar com os problemas que estão na base da formação do nosso desejo como seres sociais. 

Sexo e feminismo

Com esse objetivo, a autora retorna à tradição feminista de crítica ao sexo. No feminismo que se produziu a partir dos anos de 1960, afirmar que “o pessoal é político” liberou as mulheres para tornar visível a opressão vivida na intimidade do lar. Além da desigualdade do cuidado, a violência conjugal, o sexo se tornou uma arena de disputas. A discussão sobre a pornografia condensou boa parte desses conflitos, e durante décadas o feminismo estadunidense por exemplo se organizou em duas frentes: anti-porno e pro-sexo. Na base do embate existia uma disputa entre uma visão do sexo como o lugar privilegiado da dominação masculina sobre as mulheres, e de outro, como uma instância de emancipação das mesmas mulheres. Ou seja, sexo como perigo e como prazer, para parafrasear a coletânea organizada por Carole Vance, que foi um marco na discussão do período. 

Para Srinivasan, hoje o feminismo pende mais para uma visão pró-sexo, valorizando a autonomia da mulher para desfrutar do seu desejo desde que haja consentimento, embora a pornografia traga memórias anti-sexo. Com uma distância de quarenta anos, com o tamanho e o alcance que a pornografia alcançou hoje, não faz mais sentido falar em fim do pornô, como se discutia. Apesar de alguns países adotarem medidas legais proibindo certas práticas – como cenas de estupro, asfixia, sadomasoquismo etc – consideradas violentas, a crítica feminista de Srinivasan mostra que a estratégia legalista é problemática em pelo menos dois sentidos. Primeiro, ela tende a criminalizar minorias sexuais, que historicamente se associaram a práticas de liberação sexual fora do padrão heteronormativo dominante, como é o caso das lésbicas adeptas do sadomasoquismo ou dos grupos de dominação e fetiches. Segundo, ela deixa de fora a pornografia mainstream e mais consumida, que como descreve a autora mostra as “loiras magras chupando paus, sendo fodidas pesado, gemendo e com porra na cara no final”. Ou seja, o pornô que reforça a misoginia dominante. Essa pornografia considerada “normal” se torna a voz de autoridade para dizer o que é sexo para as novas gerações que nasceram e cresceram com internet. Amia mostra que, ao mesmo tempo em que a proibição não é a solução, o discurso de defesa da pornografia como uma maneira de estimular a imaginação erótica é ingênuo. A pornografia feminista e queer, que rompe os padrões da sexualidade dominante e instiga uma maior pluralidade do desejo, é uma gota paga no oceano de sexo misógino, de enredo limitado e gratuito. Esse sexo é aquele que reforça padrões de beleza e de suposto prazer, que contribui para a conformidade do gosto sexual, e não para ampliar e subverter esse gosto.  

Se tem um repertório que a pornografia alimenta é o da hierarquia sexual. Com pouca margem para fuga, os corpos desejáveis e desejantes no pornô são na maior parte das vezes os mesmos, que ocupam o topo da hierarquia sexual. Corpos brancos, magros, jovens, sem deficiência. Assim como acontece com a relação entre o sexo real e o sexo na pornografia, é em relação a esses corpos que os demais serão comparados, excluídos, desprezados no mundo afetivo-sexual. Um exemplo é o que acontece nos aplicativos de encontros. A autora menciona que tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra existem fortes tendências na escolha de parceiras e parceiros. A hipersexualização das mulheres negras e a solidão das mulheres negras retintas ignoradas são duas delas. É impossível não lembrar dos debates sobre a solidão da mulher negra que há alguns anos ganha corpo no Brasil. Da mesma forma, a sexualização sem compromisso romântico que marca a vida amorosa de muitas mulheres gordas, ou a dessexualização e a infantilização de pessoas com deficiência e idosas. 

Como libertar o desejo?

Racismo, gordofobia, misoginia, transfobia, classismo, xenofobia, ageísmo, capacitismo estão em todos os espaços porque são opressões estruturais. Por que estariam fora da cama? Mas se dar conta disso coloca um problema diferente, difícil de abordar até para quem gostaria. Não reforçar opressões na vida é o mínimo de civilidade e algo que seguimos aprendendo a fazer. Mas como aprender a não ser racista sexual ou classista na cama? Como mudar um comportamento que está relacionado a uma conexão numa dimensão tão íntima? Será essa mais uma ansiedade coletiva para a conta de todas as outras que já temos? Será que a pergunta é essa? 

No capítulo quatro, Amia afirma “Liberar o sexo das distorções da opressão não é apenas dizer que todos podem desejar o que ou quem quiserem”. A libertação da opressão é uma exigência radical, liberar os indivíduos para desejar “o que bem quiserem” é uma exigência liberal. O perigo dessa última é que o ponto de vista individualista nos leva a temer a crítica como um controle externo do desejo, um tipo de coerção. A autora continua:

“A exigência radical de que libertemos o sexo das distorções da opressão não tem nada a ver com disciplinar o desejo. Quando escrevi que 'o desejo pode ir contra o que a política escolheu para nós e escolher por si mesmo', não estava imaginando um desejo regulado pelas demandas da justiça, mas um desejo libertado das amarras da injustiça. Estou perguntando o que aconteceria se olhássemos para os corpos, nossos e dos outros, e nos permitíssemos sentir admiração, apreço, desejo, onde a política nos diz que não devemos”. 

Em alguns podcasts em que apresentou o livro, Amia lembrou do exemplo dos relacionamentos longos. Nessas relações, é preciso renegociar as bases da atração constantemente, trabalhando para reativar um erotismo que tende a minguar. Se pensarmos como parceiros e parceiras mudam ao longo do tempo, não é difícil entender a importância de não se deixar capturar pelas garras do ageísmo, por exemplo.    

 “embora não possamos alterar o que nos excita e o que não nos excita, podemos, por um lado, deslocar o que pode estar atrapalhando a excitação erótica e, por outro, aprender a erotizar o que está acontecendo à nossa frente durante o sexo. Isso é disciplina ou amor?”, se pergunta Srinivasan. 

A essa altura, é preciso contornar um risco. Discutir as transformações do desejo não é endosso para terapias de “conversão sexual”, ou “cura gay”. Reconhecer a singularidade do desejo foi e é uma ferramenta política para proteger pessoas que têm sexualidades fora do que é reconhecido como a norma. Não é voltar ao armário fingindo desejar algo que não se deseja. Identificar a mudança do desejo não é antídoto para “curar” um desejo socialmente repudiado, como o desejo LGBTQIA+.

Não se trata de forçar, escolher, optar por um desejo em relação a outro. Também não é propor um desejo “politicamente correto”. Srinivasan não defende nossa agência voluntária para orientar nosso desejo. A motivação que conduziria o desejo para a heterossexualidade é a mesma que o conduz em direção ao topo da hierarquia sexual, que produz racismo sexual, ageísmo, gordofobia, entre outras desigualdades. Questionar as amarras sociais que aprisionam o desejo faz parte do mesmo projeto de libertação sexual LGBTQIA+.

O desejo está em constante transformação 

Nossa agência provavelmente é restrita, mas o desejo está o tempo todo mudando. Talvez não caiba falar em mudança do desejo, se entendermos que essas pulsões estão dentro de nós. Mas como não fazemos contato com elas, são desconhecidas para nós, e portanto novas.

À medida que crescemos e envelhecemos, que circulamos em novos redes (de trabalho, de formação, de lazer), sentimos nossos desejos se revelando, seguindo caminhos mais ou menos inesperados. Mas essas novas manifestações do desejo passam pelo filtro da hierarquia sexual; mesmo nessas novas rodas, nossos desejos circulam muito referidos, norteados e aprisionados pelo status sexual. A crítica política proposta por Amia dessacraliza o desejo como esse mini-altar individual onde louvamos somente a nossa interioridade intocada. Apesar de não trazer respostas definitivas, coloca perguntas que nos sacodem da paralisia e do medo de lidar com o que existe de político, econômico e cultural nos nossos desejos.   

Ela ajuda a ver a prostituição como trabalho sexual, que precisa ser tratado de modo a diminuir a opressão por que passam suas trabalhadoras. Ajuda a ver o assédio/estupro não como problema que se resolve somente com regulamentação de etiquetas de consentimento, mas com mudança das estruturas profundas e coletivas que formam o desejo masculino a querer fazer sexo com mulheres que não querem (de quem antes não ouviam o não e agora têm que tirar um sim). Ajuda a entender que o pornô molda os desejos, gestos, e o imaginário dos jovens sobre sexo, criando mais do que um repertório único, uma “pedagogia do sexo”, mas a voz autorizada a dizer o que é sexo, que em seu limite e violência, cria frustração nos rapazes e insatisfação nas garotas. Ajuda a entender que sexo na relação professor-aluna (que é a maioria dos arranjos) não é uma questão de amor versus burocracia ou apenas de consentimento, mas de apropriação equivocada da libido que nasce com o desejo de conhecimento que a aluna projeta no professor. Ajuda a entender que proibir a prostituição não é o caminho para a libertação das mulheres do futuro, mas ignorar as demandas de proteção e garantia de condições de trabalho para as prostitutas do presente, mulheres que estão na base de todas as hierarquias sociais e que são as que mais precisam do feminismo. Ajuda a entender que o patriarcado inculca nos homens uma ideia de “direito adquirido” sobre o sexo com as mulheres, em várias dimensões do acesso aos seus corpos: seja a gozar neles, engravidá-los ou forçá-los a abortar. 

O desejo pode mudar e surpreender, como aconteceu comigo. Essa mudança pode ser de objeto de desejo, de intensidade ao longo das fases da vida, ou do enredo da história que provoca prazer. Se, como nos ensina a psicanálise, o desejo é uma pulsão que não é intrinsecamente boa ou bonita, Srinivasan nos convida a olhar para seus atravessamentos sociais e políticos. Na minha vida, caiu como um mapa. Me ajudou a compreender que não só não conheço meu desejo completamente, como ele é direcionado por forças estranhas a mim, que muitas vezes eu desprezo, contra as quais eu luto, e que também me oprimem. Mas que, ao mesmo tempo, ele pode ser experimentado fora dessas amarras, não para seguir um roteiro “politicamente correto”, mas para fluir e transbordar para além das suas margens.

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