Toru Muranishi, o imperador do pornô no Japão

por Juliana Sayuri
Trip #286

O diretor peitou o puritanismo japonês, ajudou a florescer a indústria pornográfica no país, ficou rico, faliu e foi preso diversas vezes

Em fins de 1986, a jovem universitária Megumi Sahara e o diretor Toru Muranishi se encontraram em um galpão no centro de Tóquio. Eles se acariciaram, se beijaram e se engalfinharam euforicamente ao longo de 81 minutos, minuciosamente registrados por uma câmera VHS. Deste encontro nasceram uma atriz, um filme e uma lenda.

A atriz é Kaoru Kuroki, nome artístico adotado por Megumi, que se tornaria o rosto da revolução da indústria pornográfica no Japão: famosa por não depilar as axilas – um tipo de protesto contra a censura japonesa à exposição de pelos pubianos à época –, a garota de 21 anos se tornou a voz feminina nas discussões de liberação sexual na imprensa. O filme é SM Poi No Suki (1986), ou “gosto é no estilo sadomasoquista”, em tradução literal. Já a lenda é Toru Muranishi, o diretor pioneiro que inaugurou a tendência “documental” nos filmes pornô, posicionando a câmera nas mãos de um dos atores, a fim de dar ao espectador uma perspectiva, digamos, privilegiada das estripulias sexuais – até hoje, o gênero é um dos mais populares no país.

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Fragmentos desta história se desenrolam nos dez episódios de O diretor nu (2019), série da Netflix inspirada no livro Zenra Kantoku (2016), do jornalista Nobuhiro Motohashi, e com segunda temporada confirmada. Outros estão no documentário Nice Desune: Muranishi Tôru (2014), de Akira Takatsuki. Deste lado do mundo, Muranishi é conhecido como “o imperador do pornô”, título que lhe atiça a vaidade. “Nós todos estamos em uma jornada. Às vezes, podemos rodar o mundo inteiro e talvez não encontrar a resposta sobre quem somos ou o que nos define. Eu sei quem eu sou”, diz à Trip o diretor, que já conta 71 anos, 3 mil filmes rodados e 7 mil atrizes no seu histórico sexual.

“Sim, eu sou o imperador do pornô”, diz. “Três décadas atrás, era proibido mostrar mais do que três pelos pubianos nas revistas e nos filmes nipônicos. Precisei desafiar essas regras conservadoras para fazer a minha arte. Se não tivesse desafiado, a indústria pornô não teria florescido como aconteceu no Japão”, diz Muranishi, durante uma longa conversa por Skype. Hoje, o Japão é o segundo maior público-alvo no PornHub, o maior site de compartilhamento de conteúdo adulto do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Estima-se que a indústria pornográfica japonesa movimente US$ 20 bilhões ao ano.

“Sexualidade é parte do viver, vestir, comer, beber.”
Toru Muranishi

Muranishi é um homem controverso. É considerado um artista visionário que peitou puritanismos da sociedade japonesa e intimidações de mafiosos da Yakuza, que monopolizavam a indústria do sexo no país. Por outro lado, já foi preso no Japão por incluir duas atrizes menores de 18 anos nas suas produções (inadvertidamente, diz) e, após gravar 30 vídeos durante 30 dias no Havaí, foi preso pelo FBI, sob acusação de irregularidades no passaporte. Ficou detido por meses. “Fui condenado a 370 anos de prisão, isto é, poderia morrer três vezes e ainda continuaria preso.” Só foi liberado graças ao pagamento de fiança milionária, impulsionado pelas vendas de SM Poi No Suki.

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Império em declínio

Na década de 90, apesar da popularidade de seus filmes mirabolantes e, logo, custosos (ele chegou a fretar um avião para gravar cenas de sexo no ar, uma “sessão lendária”, diz), o império começou a ruir: sua produtora faliu e o diretor se afundou em uma dívida de 5 bilhões de ienes (US$ 40 milhões à época). Com o advento da internet e a invenção do DVD, os anos dourados do VHS foram ficando para trás: Muranishi se despediu das festas regadas a champanhe e, pouco a pouco, se afastou dos holofotes. Embora não grave mais como ator, não se aposentou: dirige pornôs, faz conferências, participa de festas e vende edições de seus primeiros filmes.

 

“Três décadas atrás, era proibido mostrar mais do que três pelos pubianos nas revistas e nos filmes nipônicos. Precisei desafiar essas regras”
Toru Muranishi

Septuagenário galanteador (“É um prazer conversar com uma linda jovem imigrante” foram suas primeiras palavras para mim, levantando uma das sobrancelhas com maliciosa ênfase na expressão “prazer”), Muranishi posta fotos no Instagram ao lado de jovens modelos turbinadas, tal qual o americano Hugh Hefner e suas coelhinhas da Playboy. Na maior parte dos posts, inclusive, o diretor faz uma pose com o polegar, o que é um gesto obsceno que faz referência a pênis no Japão.

Muranishi está fora da curva japonesa: a julgar por ele, o país transpira sexo, é tolerante e liberal. Estatisticamente, não é bem assim: 70% dos millennials japoneses estão solteiros, 40% deles são virgens, os relacionamentos românticos seguem uma série de pudores e protocolos e há tempos o movimento LGBT batalha pela legalização do casamento gay. Entretanto, no universo do diretor, o Japão é um “paraíso” para dar vazão a fetiches e fantasias eróticas, incluindo tabus.

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“Uma amiga, uma superstar de 84 anos, faz um sucesso tremendo, pois, por não ter mais dentes, dá mordidas suaves no pênis. Outro amigo, ator, gosta de levar chutes nas bolas por mulheres de salto alto. Outro gosta de passar aspirador de pó no pinto. O que quero dizer é que todo mundo tem preferências. Um tipo de sexo pode ser considerado ‘normal’ para uns, ‘anormal’ para outros, mas, no fim, quem é que vai ditar o que é a ‘norma’? Sexualidade é parte do viver, vestir, comer, beber”, pondera.

“Na indústria pornográfica, as atrizes são as estrelas: um ator recebe uns 40 mil ienes por gravação; uma atriz, a partir de 500 mil de ienes”
Toru Muranishi

“E os tempos mudaram: ninguém precisa mais namorar para transar, como era antigamente. Hoje é legalizado inclusive o delivery fuzoku: você liga, diz suas preferências e uma ou um jovem elegante é entregue na sua casa. Isso só acontece direito em um país como o Japão, onde todo mundo se sente seguro para andar sozinho na rua de madrugada”, conta. De fato, o deriheru (abreviação japonesa da expressão delivery health e, neste contexto, health é compreendido como serviço sexual) é permitido, pois não é enquadrado como prostituição – esta, sim, teoricamente ilegal, mas definida apenas por relações sexuais vaginais. “Se você tem amigos jovens japoneses, aposto que eles já ouviram falar desse delivery. Mas, se você perguntar se já usaram, tenho certeza que todos dirão ‘nunca’. Tente desculpá-los: não é que nós somos mentirosos, somos tímidos”, brinca.

Histórias de prazer

Nascido na província de Fukushima, Muranishi foi vendedor de enciclopédias estilo Barsa, na ilha de Hokkaido. Um dia, demitido após a falência da companhia na década de 80, o vendedor voltou para casa e flagrou a mulher transando com outro: ele não era um bom amante e nunca a fizera gozar, revelou ela na discussão que culminaria no fim do casamento. A busca por ver mulheres sentindo prazer marcou a trajetória do diretor desde então. Tempos depois, ele se casou com a atriz Mariko Nogi, com quem vive até hoje.

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“Na minha visão, vídeos adultos devem contar histórias de prazer. Mulheres merecem prazer tanto quanto homens, obviamente. É uma questão de liberdade sexual para elas. Inclusive, na indústria, elas são as estrelas: um ator recebe uns 40 mil ienes por gravação; uma atriz, a partir de 500 mil de ienes”, diz.

Muranishi é um insider de um Japão underground, libertino e tão inusitado à primeira vista que é tentador pensar se tudo não passa de uma mise-en-scène do diretor. “Sou sortudo, de verdade. A certo ponto, a sociedade japonesa acolheu minha arte, minhas ideias”, disse, no fim de nossa conversa. “A vida tem altos e baixos. A minha, 10% de alto e os outros 90%, ladeira abaixo. Não sou vencedor, fiz escolhas erradas, fali. Olha pra mim: 71 anos, sete prisões, 370 anos de sentença que quase me deixam trancado para o resto da vida. Mas se você está num barco, naufragando, e sente que nada vale neste mundo, olhe para o lado e vai me ver agarrado a um graveto de pau tentando nadar contra a corrente, desesperado para não afundar”, suspirou, com os olhos marejados. “Não quero morrer. Quero gozar a vida até a última gota.”

Créditos

Imagem principal: TORU MURANISHI - WILD PASSIONATE DAYS/DIVULGAÇÃO

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