Música brasileira abre caminho para Exu

por Kamille Viola

Estigmatizado, o orixá ganha cada vez mais evidência no trabalho de artistas de destaque da atualidade, de Elza Soares a Baco Exu do Blues

Ele está no nome artístico de Baco Exu do Blues e batiza o primeiro álbum do rapper, de 2017. Foi gravado por Elza Soares no disco Deus é mulher (2018). Está no álbum Ascensão (2016), de Serena Assumpção, em uma faixa com participações de Karina Buhr, Luê e Zé Celso Martinez Correa. No disco Metal Metal (2012), do Metá Metá. E inspirou “Pra que me chamas?”, de Xenia França, música do álbum de estreia da cantora, Xenia (2017). Demonizado durante séculos, Exu vem passando por uma mudança no simbolismo em torno de seu nome, sendo cada vez mais cantado por nossos artistas. Sinal dos novos tempos, a hashtag com seu nome no Instagram acumula quase 170 mil citações. Laroyê, a saudação a ele, mais de 85 mil.

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Diogo Moncorvo escolheu o nome artístico de Baco Exu do Blues, homenageando o deus romano do vinho e da embriaguez, o orixá africano e o gênero musical criado pelos negros norte-americanos no século 19. Seu álbum de estreia também se chama Esú (grafia aproximada do nome do orixá no idioma iorubá), assim como a terceira faixa do disco. A que abre, “Intro”, também cita o deus africano: “Senti Exu/Virei Exu”, canta o rapper. “Exu é o dono da rua/foi ele quem veio de lá/seu reinado é do povo da lira/mensageiro, ele vai te ajudar”, diz o ponto que encerra a música. O mesmo acontece na segunda, “Abre caminho”: “Abre caminho, deixa o Exu passar/Dá licença, deixa o karma da cena passar/Não entra na roda punk sem pedir pra Exu/Não entra no mar sem pedir pra Iemanjá/Desrespeite a fé dos pretos, saiba por que eu sou Exu”.

O artista chegou a se lançar somente como Baco, em 2015. Ao incluir Exu em seu nome, no entanto, viu as coisas começarem a avançar em sua carreira. “Exu, para mim, é caminho. É meu guardião, meu protetor. É quem entende e pune os meus erros. E quem comemora e aplaude minhas conquistas, tá ligado? É quem me dá a mão, é quem me ajuda, é quem me rege. Exu, para mim, é meio que tudo”, resume ele.

Adepta do candomblé, a cantora Xenia França foi outra a reverenciar o orixá em seu trabalho. Em suas entrevistas, ela conta que a canção “Pra que me chamas?” foi composta depois que ela esteve em Havana, em 2013. “Foi muito nítida a expressão da cultura da diáspora na cidade, que foi a única que eu visitei em Cuba. Era incontável o número de pessoas iniciadas em Ifá. Você sabia disso porque via as pessoas todas vestidas de branco, do guarda-chuva até o chinelinho: não pode vestir nada que não seja branco. E aí fui eu começando a perceber que aquela religião estava muito ligada ao candomblé no Brasil”, lembra.

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A inspiração veio do Callejon de Hamel, rua turística dedicada a Eleguá, entidade cubana correspondente a Exu. “Tinha um Exu assentado na parede, e embaixo escrito: ‘Pra que tu me llamas si tu no me conoces?’. Isso foi muito forte para mim. Foi um grande soco. A gente voltou para o Brasil e Lucas Cirillo, que é o outro compositor dessa música (integrante da banda Aláfia e companheiro de Xenia), me apresentou a música e a gente foi terminando ela junto. E o que a música se propõe a dizer e a questionar (e não sou eu que questiono, é Exu, porque Eleguá na santeria cubana está correspondentemente ligado a Exu no candomblé brasileiro) é: por que você usa os recursos, a estética, a música, enfim, toda a cultura brasileira é forjada em cima de apropriações (da cultura negra) sem fundamento, sem conhecimento? Pra que tu me chamas se não me conheces? Isso serve para um zilhão de coisas. É muito especial essa canção”, explica a artista.

Quem é ele?

No candomblé, Exu é o orixá mensageiro. É o responsável pela comunicação entre os homens e os orixás. “Exu faz o erro virar acerto e o acerto virar erro. Existe um ditado que fala: 'Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou somente hoje'. Para mim, essa frase é memória ancestral, porque, quando você lembra do passado, faz isso a partir das luzes do presente. O seu presente vai colorir, com tons mais fortes ou suaves, a sua memória. E aí você traz esse passado para o presente, porque Exu é a continuidade, é o sempre”, ensina o babalorixá Rodney William Eugênio, o Pai Rodney de Oxóssi, antropólogo e doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Na umbanda, embora haja também o orixá, o culto é feito a entidades, entre elas as chamadas exus (e sua versão feminina, as pombagiras), que já foram espíritos encarnados e que trabalham sob a autoridade dos orixás, atuando como intermediários entre eles e o adepto da religião.

“Exu é o orixá mais próximo dos homens, é aquele que está com as pessoas no dia a dia. Exu gosta da festa, da ferra, da bebida, da boa conversa, de uma intriga. Exu se mete nas coisas humanas, ele tem o elemento fálico como símbolo, então evoca essa coisa da sensualidade”, analisa Pai Rodney. “Essa coisa de ligar Exu ao demônio, de certa forma, foi incorporada pelas religiões de matriz africana, porque as pessoas tinham medo do diabo. Então, muitas vezes, nas entradas dos terreiros, se botava aquela imagem de Exu que lembrava o diabo, era uma forma de evocar esse medo que as pessoas tinham para que os terreiros não fossem invadidos. O sincretismo foi usado muitas vezes como um instrumento de resistência”, analisa.

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Rodney lembra que as religiões de matriz africana foram perseguidas desde a colonização até a década de 1970, quando a situação melhorou um pouco. “Você tinha muitos artistas se aproximando delas, cantando os orixás de uma maneira geral, acho que a gente teve um crescimento muito grande de adeptos, teve uma expansão no Sudeste, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo. Isso trouxe uma mudança para as visões e para a desconstrução de algumas ideias que estavam no imaginário das pessoas. Foi um momento em que essas religiões deram um salto”, diz. “No entanto, o advento das igrejas cristãs neopentecostais, com toda aquela espetacularização, midiática inclusive, em torno dos cultos, onde ter uma figura do diabo era muito importante para o tipo de rito que se fazia ali, trouxe uma nova visão negativa em torno de Exu. Dos anos 1990 para os 2000, foi um momento em que a visão em torno de Exu também piorou e o preconceito aumentou bastante, a intolerância aumentou muito, o desrespeito aumentou de forma drástica”, denuncia.

Edgar, que assina ao lado de Kiko Dinucci e gravou ao lado de Elza Soares a música “Exu nas escolas”, acredita que a principal mudança no simbolismo de Exu esteja acontecendo na visão que a branquitude tem sobre ele. “Porque a galera preta sempre falou sobre Exu, e nunca tratou ele como demônio. Então, se vocês estão vendo essa mudança acontecer, é porque vocês estão sambando na pista”, manda ele. “Eu vou na macumba. Minha família sempre teve o sincretismo, porque a gente mora num bairro bem difícil, sempre teve essa mazela do preconceito. Várias pessoas vinham querer humilhar quando aconteciam os toques de tambor em casa. Mas eu cresci no meio do atabaque rolando. Minha mãe tinha problema de saúde, então, a gente fazia muita coisa. Exu está aí e sempre esteve, ele é a transformação, não é uma energia do mal. Ele foi demonizado pelos colonizadores, pela galera que chegou, não entendeu nada do que estava rolando, viu a estátua com a cabeça de falo, sexualizou a parada, e transformou num demônio. Mas ele nunca foi”, explica ele.

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Xenia França conta que, em sua infância, chegou a temer o orixá, de tão arraigada que estava a imagem negativa, mesmo na Bahia. Hoje, ela reverencia esse divindade com forma de afirmar sua cultura. “Ando com uma conta de Exu no meu pescoço, frequento terreiro de candomblé. Eu tento compreender Exu, para desmistificar dentro da minha cabeça o que esse orixá significa. Ele é o que mais entende o humano. É um orixá extremamente tecnológico, inteligente. E é nosso amigo. Dentro de um contexto em que eu sou uma artista que reverencia a minha ancestralidade, eu não poderia deixar de falar e de colocar na primeira faixa do meu disco, como se faz numa casa de candomblé, uma reverência a Exu”, afirma. “Vejo outros artistas também falando dele de uma maneira muito natural e eu acredito que é a nossa escolha de transformar Exu, dizer para a sociedade que a gente não tem medo dele, que ele não é uma entidade negativa. Exu estar relacionado ao diabo é um projeto de demonização de uma cultura”, denuncia.

O babalorixá aponta que a intolerância das últimas décadas fez com que a classe artística, que se sempre foi de certa forma próxima às religiões de matriz africana, se sentisse obrigada a se posicionar. A isso, soma-se o crescimento do movimento de descolonização do pensamento no país. “Tem a ver com o engajamento das pessoas na luta antirracista, entendendo a intolerância como uma face do racismo, e tendo isso combatido com a força da lei. Porque 21 de janeiro foi instituído como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa por causa de uma mãe de santo que morreu na Bahia após ser atacada por adeptos da Igreja Universal do Reino de Deus”, recorda. “Esses governos mais progressistas que nós tivemos também se engajaram na luta, teve a lei que obrigou o ensino de cultura da África e afro-brasileira e indígena nas escolas, as visões foram mudando. E os adeptos das religiões de matriz africana, percebendo esse movimento, tomaram de alguma forma posse da lei, fizeram com que ela agisse e começaram a reivindicar o que é direito deles”, argumenta Pai Rodney.

Ele observa, no entanto, que a aproximação da música das religiões de matriz africana hoje é diferente da que ocorreu nos anos 70. “Quando você tinha artistas gravando pontos de terreiro, inserindo como música incidental nas suas gravações as músicas dos orixás e outras homenagens, era algo de registro de uma cultura, sem dúvida, mas que estava mais para algo folclórico do que para aquilo que eu acho que é hoje, que tem a ver com engajamento político. Por exemplo, quando você vê Xenia França cantando Exu, evocando Eleguá, 'por que tu me chamas se não me conheces?', isso é política. Quando você vê Elza Soares dizendo 'Exu nas escolas', isso é política. Tem a ver com um movimento que sai do terreiro e vai para as universidades, para as escolas — porque tem um grande número de professores adeptos das religiões de matriz africana e engajados nos movimentos sociais do negro, do índio, de moradia. Então, quando se canta hoje para Exu, esse canto é político, uma música de protesto até, para que você devolva àquele orixá a sua humanidade que foi roubada, porque é o mesmo que devolver ao negro a humanidade que foi roubada dele”, compara.

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Rodney faz questão de frisar que, se é errado associar Exu ao diabo, ele também não pode ser considerado santo — nenhum orixá é. Todos eles têm aspectos, que se forem vistos pelo ponto de vista cristão, vão causar choque. “A gente tem que partir do pressuposto de que a ética nagô, negra, iorubá, africana de maneira geral não é uma ética cristã. Se você pegar um orixá como Ogum, que é um guerreiro que, tendo água em casa, se lava de sangue, vai saber que ele vai para a guerra para matar. E, que se você for à casa de Ogum para matá-lo, ele vai te matar. Isso tem que ser entendido dentro da nossa tradição, de pessoas que têm a resistência, a necessidade de lutar pela sua própria sobrevivência. Tem que ser compreendido dentro dessa lógica. Agora, o que está mais próximo da realidade: o cristianismo ou o candomblé? As pessoas são como? Será que são todas pudicas, santas, que não têm um lado bom e um lado ruim? E aí tem toda essa questão da gente falar de hipocrisia, de pregar uma coisa e fazer outra, né? Porque como é que eu posso pregar o amor e apedrejar uma pessoa que tem uma religião diferente da minha? Como é que eu posso pregar o amor, invadir um terreiro e depredar?”, argumenta o babalorixá.

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