Ícaro Silva: Eu não tenho medo das minhas verdades

por Ismael dos Anjos

O artista fala sobre sua infância de sonhos, os caminhos que encontrou para contar suas histórias e também sobre a polêmica em que foi envolvido no ano passado: ”Respeita minha trajetória”

Para jovens negros de seus vinte e poucos, trinta anos no Brasil, Ícaro Silva não é só um ator, cantor ou multiartista talentoso. É alguém que cresceu conosco.

Meus caminhos se cruzaram com os dele, ainda que à distância, algumas vezes ao longo desses 34 anos. Primeiro, foi a sensação de representatividade. Compartilhamos a mesma idade, e ao vê-lo lindo, de black power como o Rafa de Malhação, comecei a sentir vontade e coragem de deixar o meu cabelo crescer, depois de anos o raspando de 15 em 15 dias.

Anos mais tarde, tive o prazer de dividir com ele um projeto em comum. Também locutor, Ícaro generosamente cedeu sua voz para narrar o documentário “O Silêncio dos Homens”, projeto sobre a construção das masculinidades no Brasil que coordenei em 2019. Ao final de 2021, um novo encontro virtual, dessa vez para uma live sobre reconstrução das masculinidades. 

Apesar desses contatos, essa entrevista proporcionou a primeira vez em que tive a chance de parar e conversar com ele, com calma e sem pressa. Ícaro é o tipo de pessoa acolhedora, com muitas histórias pra contar mas também com muita agência sobre as palavras que saem de sua boca. O carinho e orgulho com que fala sobre sua família é notável, assim como quando fala sobre seus projetos e trajetória.

Os passos de Ícaro vêm de longe, e a ascensão de seu voo é irrefreável. 

Trip. Começando do seu princípio. Em São Bernardo, com dona Josefa e seu Zedequias. Queria que você falasse um pouco sobre você criança. Como era essa família, esse lugar em que você cresceu?

Ícaro Silva. Bom, a primeira coisa que eu vou te falar é: chame a minha mãe sempre de dona Jô, tá? Ela detesta ser chamada de Josefa. Ela acha esse nome muito quadrado, muito careta. A grande curiosidade da minha infância pré-livros – comecei a escrever e ler com quatro anos de idade e os primeiros livros foram aos seis – é que a minha família passou boa parte da minha infância vivendo no quintal de uma família japonesa, na divisa de Diadema com São Bernardo. A gente era muito nômade, teve que se mudar algumas vezes de comunidade, de favela, ir para outro lugar porque ali era um terreno que não podia ocupar ou era área de risco. Conhecemos uma família japonesa de classe média baixa, também tentando, e a gente alugou a casinha que ficava no quintal deles. As memórias da minha primeira infância, com dois, três ou quatro anos, são de umas coisas japonesas que eles tinham nas paredes. De uma forma ou de outra acho que o meu olhar sempre esteve aberto para outras culturas, para outras formas de ver a vida. 

E te digo tudo isso porque passei uma boa parte da minha infância tentando escapar um pouco da minha própria realidade, sabe? Desde sempre eu queria sair de onde eu estava, sabia que nosso entorno não era muito próspero. Mas sempre fui muito bem amparado. Gosto de falar que eu fui criado igual um reizinho na favela. A minha mãe e o meu pai realmente me deram tudo. Não faltou nada na minha infância.

É da sua mãe que vem esse jeito de se recriar, de se recontar, de se colocar no mundo? Totalmente. Eu gosto de dizer, e digo isso para minha irmã, que nós somos coadjuvantes na história da nossa mãe. Ela é uma retirante nordestina que veio para São Paulo aos 19, 20 anos de idade tentar a vida sem apoio nenhum da família. A minha mãe engravidou da minha irmã Martha em Pernambuco. E quando ela teve a filha, a minha avó materna pegou a criança para ela, não acreditou que minha mãe tivesse responsabilidade suficiente para cuidar. A minha mãe, totalmente sem estrutura, foi para São Paulo. Juntou dinheiro, comprou passagens de avião, foi para Recife de madrugada, chegou na cidadezinha pequena onde minha irmã estava, pegou a Martha e voltou na madrugada para São Paulo. Eu nem era nascido, mas ela só foi visitar a mãe dela de novo 13 anos depois, após ter construído toda a vida dela, já estruturada com a filha ali do lado, crescida.

As histórias da minha mãe são muito fortes e minha capacidade de resiliência vem muito dela. Minha mãe é bem esse clichê, que nem é um clichê porque a gente não explora tanto esse lugar, dessa mulher brasileira, mãe coragem, batalhadora mesmo. Que criou os filhos na favela, cercada de muito racismo, de muita violência, de muito machismo. Mas sempre com muita vitalidade, muita disposição. Eu gosto muito de usar minha mãe como exemplo de força de vontade, de persistência e de criatividade também, porque minha mãe sempre solucionou o que precisava ser solucionado.

Quando criança, que possibilidade você via para si? Te conhecendo depois de adulto, faz sentido que Ícaro escreva um livro e publique aos 8 anos de idade. Mas não é o que faz sentido para a maioria da população que vem de onde a gente vem, que passa pelos percalços que a população negra no Brasil passa. Quais eram as suas perspectivas crescendo? Tinha espaço para sonho? Na verdade, só tinha espaço para o sonho. É por isso que as palavras e os livros deram tão certo comigo e com a minha irmã, que era uma leitora voraz. Eu não sei se eu critico isso, não sei o quanto isso é positivo, mas a minha mãe nos criou numa redoma. A gente não brincava com as crianças da rua, não saía muito de casa, porque ela tinha muito esse medo de que a gente fosse influenciado por um caminho tortuoso. A gente viu muitas crianças perdendo a vida. Essas histórias que a gente vê nos jornais do Brasil são histórias de qualquer favela, de qualquer periferia violenta. Crianças que acabam se tornando objetos descartáveis para esse sistema, crianças cheias de potencial e de vida, que foram simplesmente se apagando, se tornando números. Minha mãe nos deixava literalmente trancados.

Hoje quando vejo esses casos de crianças que a mãe deixou trancadas e aconteceu um vazamento de gás ou algum acidente, eu nunca julgo. Era o que acontecia com a gente. Não tinha outra opção. A minha mãe e meu pai tinham que trabalhar, e não tinha dinheiro para pagar babá, nem alguém da família que pudesse cuidar. A minha irmã quando tinha oito anos já ficava sozinha comigo, arrumava a casa, já era muito responsável, mas sempre ficávamos muito dentro do nosso pequeno universo. Eu fui caminhando no sentido lúdico da coisa. É por isso que alguma hora eu precisei de fato transbordar em palavras, nos livros. O mundo todo para a gente era um sonho. A gente via os filmes, os desenhos e a gente sonhava. 

E com o que você sonhava? Eu sonhava muito com Nova Iorque – nos anos 80 e 90, era uma cidade que estava sempre nos filmes, com os táxis amarelos. A gente sonhava muito com viagens, nosso sonho era comer no McDonalds. A gente via aqueles comerciais na TV. Nossa realidade era muito baseada na nossa capacidade de sonhar. A minha mãe sempre trouxe esse filtro de que a gente tinha que sair dali, tinha que melhorar de vida. Hoje eu vejo que esse também é um pensamento um pouco colonizado, porque acredito que a gente possa trazer o centro da cidade para a periferia. Eu acredito hoje nas tecnologias periféricas, na criatividade periférica. Eu acredito no poder de comunicação periférico. 

Foi nessa época que seu pai trazia os livros da biblioteca para casa? Uma coisa muito interessante do seu percurso mais velho é perceber o quão protagonista da sua própria história e dos seus próprios movimentos você é. Como esse lugar de leitor, de quem tinha acesso a esse mundo de sonho, de imaginação, vira o livro "3 historinhas de Ícaro Silva"? Isso demorou na verdade, sabia? Tem uma curiosidade sobre o meu primeiro livro, "3 historinhas de Ícaro Silva", que é o protagonista da história "O menino e o cachorrinho" ser branco. Eu desenhei ele branco porque era assim que eu via na TV, nos desenhos, nos gibis. Eu era viciado em Turma da Mônica, que veio a ter protagonismo negro agora. Então eu nem sempre me via nessas histórias, sabe? Mas ao mesmo tempo eu me via como o Deus de um universo, basicamente. Eu sabia que se eu quisesse, eu poderia criar coisas. Os livros me deram esse aval, essa autorização, de que eu podia mesmo inventar as minhas próprias histórias, mas ainda eram histórias baseadas na vida de outras de outras pessoas, de quem sempre teve o protagonismo.

E quando a sua realidade começou a pautar essas histórias? Mais para adolescência, quando comecei a pensar em fazer música, eu e minha irmã tivemos uma dupla de rap. Aí que a nossa realidade começou a fazer um pouco mais de sentido. Ouvíamos Doctor MC's, RZO, Negra Li, Câmbio Negro, um pouco de Racionais, que me assustavam um pouco quando criança porque é algo denso para caramba. Foi aí que começamos a ter um pensamento crítico em relação à nossa realidade. Quando criança a gente acabava sendo meritocrata. Se a gente estudar muito, se for muito bom, muito talentoso, vamos conseguir chegar lá onde a gente quer. Na minha adolescência isso foi se quebrando, fui vendo que a meritocracia era uma falácia e hoje, na vida adulta, entendi que a meritocracia é justamente uma das pernas da estrutura racista. É acreditar que cada um tem o seu lugar ao sol ao se esforçar o suficiente. E fui descobrindo que não.

É por isso que eu fui virando tão protagonista da minha própria história, sempre indo por caminhos alternativos. Eu já quis muito a carreira de vários dos meninos da minha idade, brancos. Mas hoje não. Eu gosto muito da minha carreira, eu gosto muito dos caminhos que trilho, passando por lugares improváveis e fazendo coisas improváveis, indo de narração à novela, passando por dublagem e teatro.  Demorou para eu ver um monte de coisa. Elas realmente ficam escondidas durante o nosso processo de descoberta sobre o que é ser uma pessoa preta no Brasil. Tadinha da minha criança. Entendeu muita coisa errada, sabe? Mas fui corrigindo depois, ao longo da vida. 

Me conta um pouco sobre essa relação com a música? Como foi essa fase do rap? Sempre teve música em casa? Sempre teve música em casa, e uma relação muito engraçada com a música. Meu pai é bastante musical, e teve uma banda nos anos 70 chamada Quinta Dimensão. Ele era um desses caras muito inteligentes, sem a menor oportunidade e com um entorno que só colocava ele para um lugar. Teria sido um engenheiro mecânico, um físico, porque sempre foi muito a onda dele. O nome do meu pai é Zedequias, que é um nome bíblico, pois ele é de família evangélica. Mas ele não achava esse nome comercial. Então o nome artístico dele na Quinta Dimensão era Johnny Bonito, e eu amo isso. Para mim, é quase a projeção do Ícaro no futuro. É muito ousadia o Zedequias, da favela, decidir se chamar Johnny Bonito.

Até entender que isso podia ser um pouco ofensivo, meu pai falava: "você não tem que ser ator, tem que fazer música. Música que dá dinheiro, música que faz sucesso'. E eu demorei para ter uma relação mais forte com a música, apesar de ter sido uma criança muito musical. Eu fugia um pouco, justamente porque eu queria provar para o meu pai que ele estava errado. Eu queria provar que podia dar certo, ganhar dinheiro. Eu, de fato, sonhava em ser ator. Queria muito viver outras vidas, fazer parte de outros mundos, contar histórias de outros lugares, de outras pessoas, de outros tempos. Isso já era e ainda é muito forte para mim.

E o musical conectou a vontade de contar histórias com a música? Virei uma bicha do musical, como gosto de falar, porque fui descobrindo esse lugar de performer, de estar no palco cantando, atuando, dançando, fazendo tudo ao mesmo tempo. Entregando um show com tudo que eu sou, sabe? Entendi que a minha relação com a música também era uma relação de contar histórias. E eu vou te falar, em primeira mão, que devo lançar um projeto musical esse ano. 

Me conta mais. Ele tem relação com Ícaro and The Black Stars [show criado e protagonizado pelo ator, que canta e conta sucessos da história da black music], tem relação com esse lugar da performance também, ou vai para outro caminho? Tem relação com isso, mas The Black Stars, é uma obra de palco, totalmente cênica. Fazer um projeto musical para as pessoas escutarem em suas casas, demanda uma pesquisa diferente. Gravar música é mais subjetivo. Já tem uma música pré-produzida que se chama "Menino-sereia", que fala muito da minha relação com a minha sexualidade, com a minha afetividade e com o que há de lúdico em mim. 

As histórias que a gente conta compondo são muito mais subjetivas. Então é isso que me dá medo também. Será que as pessoas vão entender? Elas vão sacar o que eu estou falando? Eu tenho essa pretensão, e talvez um pouco de defesa desde já ao dizer que não é pra todo mundo. E não é mesmo. Nessa música eu estou falando especificamente com meninos pretos, viados ou queer ou bichas. Mas ao mesmo tempo, é claro que a gente quer fazer música para todo mundo, que todo mundo goste.

Pelo que estou ouvindo, tem mais de você? Tem mais de mim, tem mais posição, tem mais dor. Eu não sou muito o cara que compartilha dor, sabe? No Brasil tudo vira circo. E eu não estou vendendo a minha dor para ser um circo, como algumas pessoas topam fazer. Eu acho que estar vulnerável não é um problema. A nossa vulnerabilidade nos ajuda a ser maiores também em algum sentido. E, como homem, tento muito romper com a ideia de ter que ser cada vez mais forte. Ao mesmo tempo, não estou interessado em dividir as minhas dores explicitamente.

Eu não sei se é uma questão de maturidade, de tempo, mas noto que nos últimos anos você tem se colocado mais. Também tem uma conjuntura que nos permite falar isso, nem que seja para os nossos, para a gente ter colo, ser acolhido. Comecei a falar mais porque eu comecei a não ter medo nenhum, sabe? Eu já entendi que não tem a ver só com o meu talento ou  só com as minhas escolhas, ou a minha imagem. Fui entendendo todos esses sistemas e essas estruturas, como funciona esse lobby e como é mais fácil ser um ator branco, fazer um papel e ter destaque. Enfim, é assim que funciona o Brasil. 

No fim do ano eu passei por uma tentativa de silenciamento muito clara desse lugar midiático, branco, supremacista. Mas como o meu caminho é especificamente meu, para o bem e para o mal, entendi que eu não devo nada a ninguém. E também não tenho nada a perder. Eu só consigo fazer as coisas que faço hoje em dia porque eu apostei no talento. O que eu adoro no Show dos Famosos – e eu gosto muito dessa fase, em 2017, em que eu estava fazendo 30 anos – é que ali não tinha o que fazer, precisava ser talentoso. Ele é um reality show, é uma competição, é no horário da família, mas é sobre talento. É por isso que quando ficam associando o meu nome a coisas que não dependem do meu talento, eu fico furioso. Respeita minha trajetória, respeita minha história. Não é que eu sou foda, não é que eu sei fazer mais do que todo mundo, mas eu escolhi fazer um negócio e eu estou fazendo. 

Você fez um post sobre o Ícaro de 16 anos, que interpretava um personagem na Malhação que era amigo de todo mundo, mas não pegava ninguém. Me conta sobre essa fase do Ícaro chegando ao Rio, esses personagens, esse lugar de ter que se adequar. Como foi isso para você? Foi fazendo Malhação que eu entendi que não tem a ver com meritocracia, que não tem a ver com a quantidade de talento que você tem, com as coisas que você faz. O Ícaro de 17 anos sonhava em fazer uma novela depois de outra, mas o Ícaro de 20 anos, quando saiu da Malhação, viu que não tinha papel para fazer. Ninguém estava escrevendo, nenhum diretor estava dirigindo, ninguém estava produzindo coisas para um jovem preto de 20 anos.

Muita gente fala "eu só vi você na Malhação, depois nunca mais vi". Bom, fui criar o meu próprio caminho, e o caminho de um artista que não está no mainstream é com o público, no palco. E embora isso tenha sido muito doloroso para o jovem que eu fui, isso é maravilhoso, um prazer gigante, para o adulto que eu sou. É dolorido, mas é melhor o caminho da verdade. Eu estou lotando o teatro todo fim de semana com Ícaro and The Black Stars, e as pessoas saem de lá entendendo exatamente o que eu faço. É sobre isso também. Às vezes prefiro falar com 1.500 pessoas no fim de semana do que com 80 milhões todos os dias. 

Como foi esse caminho? Que pedras você encontrou, que coisas você aprendeu e está trazendo para essa fase em que já é mais showrunner, mais autoral? Eu acho que esse foi um percurso de perdão e de autoaceitação. Porque cheguei numa realidade muito diferente da minha e que queria muito viver. Eu tenho dó do Ícaro criança, que valorizava tanto a classe média e hoje vê que a classe média, coitada, é toda equilibrada sobre mentiras, contas e ideologias políticas rasas ou infundadas. Mas eu queria muito fazer parte desse mundo. Queria besteiras como poder pegar um táxi, sabe? Ter um videogame, poder ir no fliperama... Eu sinto que deixei muito a minha criança e o meu jovem fluírem por mim nos meus 20 e poucos anos. E fui muito feliz também conhecendo pessoas, indo a festas, descobrindo e enlouquecendo com a minha sexualidade. Querendo ou não, eu arrumei muitos caminhos para ser eu, para me expressar. 

Nunca fiquei num lugar de autodepreciação, depressão, tristeza ou pessimismo com a minha própria carreira. Meu caminho foi de muito teste, de muito erro. Eu tinha vivido aquela coisa da televisão com toda a intensidade do mundo, da mídia, de participar dos bailes de 15 anos. Ao mesmo tempo, era sempre meio dolorido ver que eu era um grande sucesso, mas era preterido quando o assunto era dinheiro, fama ou status. Eu fiquei contratado na Globo um tempo depois da Malhação, mas não tinha o que fazer. Quando acabou esse contrato, simplesmente saí de lá e passei por fases muito difíceis, completamente sem dinheiro. Já morei de favor, com amigos, já fiquei sem ter o que comer. Mas tudo isso sem deixar de investigar quem eu era, sem deixar de mergulhar nas minhas dores e nos meus aprendizados. Então saí dali e fui buscar: o que é o básico do ator? Fiz faculdade de teatro, fui entendendo e desenvolvendo o meu talento. Lapidando mesmo, no sentido de me tornar mais um profissional.

Você chegou a pensar em desistir dos trabalhos mais massificados? Teve uma época em que eu desisti de fazer televisão. Fiz uma novela chamada "Joia Rara", em 2014. Estava fazendo um musical ao mesmo tempo, que era Elis, e essa novela foi muito dolorida pra mim. Eu ia fazer um personagem que vivia um romance gay nos anos 40, fiz o teste para isso, mas essa história caiu porque os grupos de discussão da novela desaprovaram a história. Eu fiquei completamente sem função nessa novela, e com essa homofobia brasileira literalmente atravessada no meu trabalho. Decidi que não queria mais fazer TV, até porque eu estava cada vez mais me desenvolvendo nos palcos.

Comecei a fazer muito musical, e em 2017 surgiu o convite para o Show dos Famosos. Junto com isso, surgiu uma outra novela e eu falei “tá bom, vou lá fazer”. É nessa fase em que eu comecei a aparecer mais e me tornei muito calculista em relação ao meu trabalho. Eu já entendia a efemeridade da fama. Desde então não consigo mais começar um ano sem saber exatamente o que vou estar fazendo no início do outro. Tenho no mínimo um ano planejado na minha frente, justamente porque não quero viver esses lugares que o Ícaro jovem teve que viver. Acho que já tenho terreno suficiente para construir o meu próprio castelo e estou fazendo coisas nesse sentido.

Como sente a responsabilidade de falar sobre a sua vivência e servir de exemplo para outros jovens? Quando eu falo de mim ou da minha vivência, não quero ser visto como militante. Para ser militante você tem que estudar muito, tem que ter muita experiência de campo, política e social. Até tenho, mas não é a minha área de estudo. Estou basicamente tentando dividir as minhas experiências porque sei que elas vão colar com as experiências de várias outras pessoas. Estou falando sempre para uma juventude preta.

Você é uma pessoa LGBTQIA+, mas durante muito tempo se colocava sem dizer “sou isso, sou aquilo”. Tenho a impressão que, ao mesmo tempo em que você toma todo o cuidado de não permitir que as dores contem sua história, hoje você talvez não precise deixá-las na porta. Você enxerga isso? Enxergo. Hoje eu venho com tudo que eu sou, né? Eu não tenho medo das minhas verdades. Não estou mais tentando provar nada pra ninguém. Eu já estive, mas hoje acho que nem preciso. Existe uma narrativa da nossa história sendo contada a partir das dores, porque a mídia quer nos manipular nesse sentido. Eu vejo que isso teve uma repercussão muito grande, né? A história da violência policial [em 2018, o carro em que Ícaro estava foi alvejado por tiros depois de passar por um bloqueio policial e ele foi atingido com estilhaços de bala], essa história agora do Big Brother também teve uma repercussão muito grande. E não é sobre isso que eu estou falando, não é isso que eu tô vendendo. Eu tô vendendo coisas, se vocês quiserem comprar eu tô vendendo. Mas é o ingresso lá no teatro, entendeu? 

No final do ano passado, ao negar o boato de que seria um dos participantes do Big Brother Brasil 22, você tuitou pedindo respeito por sua história e escrevendo que tinha "ódio por entretenimento medíocre". O ex-apresentador Tiago Leifert respondeu dizendo, entre outras coisas com teor racista, que era isso que "pagava o seu salário". Na ocasião, me veio à mente a música “Ismália”, do Emicida. Tem um trecho que não só cita a mitologia de Ícaro, mas tem duas frasezinhas que representavam bem o que estava acontecendo: "Cuidado, não voa tão perto do Sol / Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei". Eu queria entender se você, Ícaro, se você se entende assim depois de ter passado por esse lugar? As pessoas tentam te colocar "no seu lugar" quando você é preto. Elas ficam desesperadas quando você não cumpre as expectativas delas. Não conseguem nem entender o próprio racismo que há em seu sentimentalismo. As pessoas não suportaram ver uma pessoa da TV Globo falando mal de um produto da TV Globo. "Como assim? Você deve a eles". Aí vem uma figura pública, influente, com milhões de fãs e seguidores, se aproveitar de alguém que já estava sendo linchado para linchar mais. Eu tento não me importar com o que pensam ou dizem de mim. Às vezes dói, às vezes atravessa. Mas quando vem um ataque público, supremacista, senhorial, patriarcal me usando não tem como ficar quieto, né?

“Eu fui muito chamado de arrogante, soberbo. O brasileiro tem um fetiche com humildade”
Ícaro Silva, ator e cantor

Essas coisas, essas histórias, só vão me confirmando: segue o teu caminho, Ícaro. Não adianta querer participar desse lugar. Não tenho a menor pretensão de ser um pilar da alta cultura, de ser visto como culto. Eu consumo todo tipo de entretenimento, mas tenho uma história. Então eu sinto totalmente isso que você trouxe. Eles não guenta te ver livre, imagina te ver rei. As pessoas não querem ver você dono do seu próprio discurso, sabe? Eu fui muito chamado de arrogante, soberbo. O brasileiro tem um fetiche com humildade. É por isso que o Big Brother funciona tão bem. No Brasil, quando você vê uma pessoa sendo humilhada e aceitando a humilhação, essa pessoa tem que ser exaltada. O brasileiro é um povo tão humilhado, tão achacado, que tem tantas dores a espiar, que quando tem alguém ali sendo humilhado em praça pública, é o melhor lugar para espiar as dores. 

Tentando ser muito empático com esse senhorzinho que me escreveu a carta, a última coisa que eu consigo pensar é que ele estava realmente vivendo com essa dor muito grande [recentemente, Leifert e a esposa, Diana Garbin, vieram à publico contar sobre um câncer que a filha de um ano tem enfrentado] e decidiu linchar uma pessoa em praça pública. Eu acho um absurdo, mas ao mesmo tempo é isso. Cada um tem suas dores e tal. 

Por que acha que um posicionamento assertivo como o seu gerou tanto incômodo? As pessoas, com você sendo um corpo dissidente, não conseguem te ver fora da narrativa que elas imaginaram para você. Quando eu fazia o Show dos Famosos, um amigo meu me ligou dando um recado da mãe dele. Mineira, lá de Belo Horizonte, ela estava me achando muito arrogante, porque eu mostrava muita intimidade com o Faustão. Eu tinha 30 anos, e já conhecia e ia no programa do Faustão há 14 anos. Já fui na casa do Faustão, Faustão já me deu presente, já me deu caneta, relógio. Conheço a casa dele, a mulher dele. Ele não é meu amigo íntimo, mas tenho alguma intimidade. 

“As pessoas, com você sendo um corpo dissidente, não conseguem te ver fora da narrativa que elas imaginaram para você”
Ícaro Silva, ator e cantor

Essa pessoa não gostou de ver a minha imagem tendo intimidade com um homem branco, poderoso, rico, milionário da televisão. Isso fez tão mal para o Imaginário dela que ela precisou fazer chegar a mim. Eu digeri isso e depois falei para o amigo; "olha, isso que sua mãe fez é extremamente racista. Ela está construindo a minha relação com o Faustão baseada na racialização que ela faz de mim e não suporta me ver grande. Ela não suporta me ver do tamanho do Faustão a ponto de falar de igual para igual com ele”. Eu acho que é isso que acontece, em todas as esferas. Quando alguém me chama de arrogante, soberbo, é um pouco isso. Eu não posso falar que eu acho uma parada uma bosta porque o outro diz que está pagando as minhas contas.

Essa história é horrorosa em vários aspectos, mas no geral me diverte porque você vê que o entendimento ainda está muito distante para várias pessoas. Por isso que a minha mãe sempre falou: a Deus você pede sabedoria e entendimento. Para ter paciência também com as pessoas, esperar o tempo delas, e não baixar a cabeça. Não abaixo mesmo, e não estou nem aí para o que vão pensar de mim. Ao mesmo tempo que eu dei um passo em direção a esse circo quando eu decidi fazer um textão como resposta, não é isso que eu estou vendendo. Vai ser difícil conseguir esse produto aqui. 

Eu queria te fazer uma última pergunta, por mais clichê que deva ser para alguém que tem o seu nome. Você sente que tem um Sol ao qual você quer chegar mais perto, ainda?  É super interessante esse arquétipo do Ícaro. Ele voa perto demais do Sol e as asas dele derretem. Eu sempre pensei muito nisso, tentando tomar cuidado para não ser arrogante, não achar que eu posso mais do que eu posso, que eu sou mais do que eu sou e nem ficar em uma autoexaltação. Quando a gente é preto, entra numa linha muito complicada que é a linha da autoexaltação e do amor próprio. Temos que buscar amor próprio com muita intensidade. Temos que reafirmar nossa beleza, temos que reafirmar nossa inteligência. Temos que nos reafirmar o tempo todo, e sempre fico tentando fugir disso.

Eu adoro pensar nesse arquétipo de que Ícaro se via maior do que o Sol. Adoro pensar que existe de fato uma estrela chamada Ícaro, que é milhares de vezes mais potente do que o nosso Sol e que brilha azul. Porque é isso. Eu acho que tem muita gente que quer ser Sol para cima de mim, tem muita gente que se considera o meu Sol, acha que vai derreter minhas asas. Mas tem duas coisas: essa é uma estrela também. Essa é uma estrela com asas, e essas asas aqui são feitas de sonhos. Não é um material que derreta muito fácil, não é?

Créditos

Imagem principal: Beá / Divulgação

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