Com mais de 20 anos de carreira, a atriz que dá vida à Maria Navalha, na novela Fuzuê, precisou se tornar produtora para romper os estereótipos e poder contar suas histórias no palco
Quando foi questionada por uma amiga sobre qual papel gostaria de fazer, Olívia Araújo não soube responder. "Eu nunca pensei nisso. Eu quero ser Ofélia? Julieta? Desdêmona? Nunca houve a possibilidade de escolher quem quero viver. Era o personagem que aparecia", conta. No ar como Maria Navalha, personagem central da novela Fuzuê, da TV Globo, Olívia demorou para conseguir mudar a narrativa e contar novas histórias, mas se orgulha de todos os papeis que assumiu até aqui. "Vivi muitas empregadas domésticas com orgulho. Adoro ter dado vida a todas elas, aprendi muito", diz a atriz, que representou uma personagem com o mesmo ofício de sua mãe em produções como "I Love Paraisópolis", da Globo, e no filme "Domésticas", pelo qual levou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cinema do Recife e no Cine Ceará.
Em mais de 20 anos de carreira, a atriz passou pela televisão, pelo cinema e pelo teatro, mas foi ao se entender também produtora que ela se viu podendo contar as histórias que queria. "Essa vontade surge de tanto ouvir 'não tem papel para você'. O teatro não estava conseguindo me absorver enquanto corpo pra contar histórias, ele não se encaixava nos perfis. Eu tinha que me produzir pra estar no palco. A gente ainda está começando a mudar isso", afirma. "É um lugar de sobrevivência. De não ser calada, silenciada dentro de sua potencialidade. Se não permitem que eu fale, eu vou criar uma forma de falar, mesmo que seja para uma única pessoa".
Numa conversa com a Tpm, Olívia falou sobre a representação da mulher nos palcos, o sonho de ser atriz, família e os desafios de viver de arte enquanto mulher negra: "Quando a gente se reconhece e entende as nossas potencialidades, descobre o tamanho do nosso poder. Que a gente tem uma história muito digna, muito honesta e que merece ser contada e colocada à vista, admirada e aplaudida".
Tpm. Você ganhou notoriedade e prêmios importantes com Quitéria, no filme Domésticas (2001), uma personagem com uma carga cômica muito forte. Como foi viver esse papel?
Olívia Araújo. Eu fui sendo levada para a comédia. Nunca me entendi uma pessoa engraçada, digo que não sei nem contar piada. Mas sempre contei com um texto muito bem estruturado. Era o caso de "Domésticas", que foi primeiro para o teatro, e depois o Fernando Meirelles achou que tinha potencial de virar um filme. Todas as histórias partem de relatos reais, de mulheres que têm o serviço doméstico como ofício em busca de dignidade, de sonhos, e como elas lutam pela família e para se manter íntegras em um trabalho tão pouco valorizado e tão discriminado. As protagonistas são elas. Muitas vezes, quando existe a presença do patrão, o protagonismo acaba sendo não da empregada, mas sim dele, porque é o dono da casa. Neste filme não tem o patrão.
Durante muito tempo, atores e atrizes negras foram limitados a papeis secundários, estereotipados, tanto na TV quanto no cinema e no teatro. Você enxerga mudanças neste cenário? É um avanço diário que vem acontecendo há muito tempo. Cada ator e atriz negra que veio antes de mim calçou essa estrada. E agora vários estão calçando a estrada para quem está chegando. Dona Ruth de Souza é a minha grande inspiração, como atriz e em vários sentidos da vida. Quando eu penso nela, penso também em Grande Otelo, Léa Garcia, Chica Xavier, Abdias do Nascimento, Tiago Neves e tantos outros que fizeram história, criaram essa narrativa para que hoje a gente enxergue mudanças de forma mais consistente. Mas ainda há um tanto a avançar. Eu me reconheço tendo um privilégio, porque vivi muitas empregadas com muito orgulho. Adoro ter dado vida a todas elas, aprendi muito. E também tive oportunidade de fazer outras personagens, como a ativista norte-americana Harriet Tubman, uma peregrina como Nossa Senhora Aparecida... Me sinto privilegiada graças a essas pessoas todas, que vêm se mantendo firme para eu poder chegar aqui.
Qual é o maior impacto de levar diversidade para esse mercado? Quando a gente se reconhece e entende as nossas potencialidades, descobrimos qual é o tamanho do nosso poder. Que a gente tem uma história muito digna, muito honesta e que merece ser contada e colocada à vista, admirada e aplaudida. E o resultado disso é ver personagens como a Maria Navalha, na novela Fuzuê (TV Globo), com um papel importante na história.
Além de ser uma personagem central, a Maria Navalha fura a bolha dos estereótipos de gênero ao não se enquadrar nas expectativas dos outros sobre ela. Ela é uma figura muito dinâmica e difícil de ser classificada como boa ou má. A Maria é uma mulher humana. Ela é uma pessoa com valores, absurdamente amorosa, mas, ao mesmo tempo, tem rompantes, atitudes controversas. A gente tem tendência a olhar as pessoas por um quadrado, por um retrato, e não somos apenas aquilo. Não somos só aquela foto bonita no Instagram, aquele bom dia alegre, aquela viagem maravilhosa, a pose falando que a vida é linda. Há momentos em que a gente não está tão bem, e precisamos valorizar esses momentos de tristeza porque eles são os de maior aprendizado. É a partir desse momento de dificuldade que criamos as possibilidades de vitória. A Maria Navalha traz tudo isso.
O que já mudou na maneira como as mulheres são retratadas? A forma com que a mulher, sobretudo a mulher negra, é retratada na mídia tem mudado bastante nos últimos anos. Acho que estamos todos aprendendo a criar e contar essas narrativas. É tudo muito novo. Até muito pouco tempo atrás, isso não era nem pensado. Que bom que hoje estamos trabalhando para que as pessoas – os autores, os produtores – olhem de forma mais ampla para a sociedade brasileira, nos reconhecendo e reconhecendo a complexidade de ser mulher. Existe também a questão étnica. Estamos acostumados com o retrato de mulheres brancas. As mulheres asiáticas, as mulheres indígenas ainda não foram retratadas em sua amplitude na dramaturgia. E até mesmo entre as mulheres brancas, entendemos a narrativa através da dicotomia do que é bom ou ruim. E enxergamos aqui o que é ruim. A gente sempre julga, mas o ser humano é complexo.
O que surge quando essa complexidade entra em cena? Quando você cria um personagem como a Maria Navalha, que não se apega a essas dicotomias, ela carregará suas fragilidades ali muito latentes. O receio do julgamento público é uma delas. E ela vai em busca dessa melhora, de uma transformação que também é física. São várias coisas que ultrapassam o nosso universo feminino: a idade, o perfil de beleza, o quanto ela é ativa. A sociedade entende uma mulher como ativa ou não conforme a idade que tem. Se você tem a pele mais escura, aparece a questão do quanto isso é considerado bonito ou exótico. Minha personagem não trata diretamente desses assuntos, mas sua presença física ressuscita todas essas conversas e amplia essas discussões.
Você sempre sentiu essa liberdade de se expressar com o seu corpo? Quando me vi caracterizada, pensei: "Nossa, que demais, existe um corpo". O corpo feminino sempre esteve a serviço do outro, seja pelo viés da sensualidade, da feminilidade, ou de todos os julgamentos sobre o corpo da mulher. Você fica correndo atrás de perfis que, às vezes, seu corpo físico, sua estrutura óssea, não comporta. Mas a gente quer correr atrás desse corpo porque falaram que era incrível – e isso causa um sofrimento muito grande. Quando eu vejo mulheres vivendo a sua plenitude sinto uma admiração absurda. Porque a gente reconhece quando a outra está de fato plena, sendo ela mesma. O julgamento externo mexe até com as nossas certezas. Às vezes você está muito bem, mas há tanta gente falando o contrário que você se questiona. Se estão vendo que eu não estou bem, estou louca com a minha certeza?
Você já se sentiu assim? O cabelo curto para mim foi isso. Com uns 15 anos fui lá, cortei, e nunca mais deixei crescer. Agora existe a peruca e a liberdade do rabo de cavalo. De vez em quando, quando você quer fazer uma coisa diferente, pode colocar um aplique sem vergonha de falar que está usando. Hoje estou me sentindo bonita com esse rabão e no outro dia vai estar curtinho. Isso não tira o meu feminino, não tira o que acho bonito em mim, não tira potencialidade nenhuma. É como eu me entendo, eu sou essa figura. Isso para mim é empoderamento, a liberdade de olhar e falar: eu me sinto bem assim. Nós, mulheres, independentemente da idade e identidade, precisamos nos olhar com mais afeto. Fomos criadas para estar a serviço do outro, então a nossa vontade é a última. Primeiro a gente atende os pais, os amigos, o parceiro, a parceira, e depois a gente se atende. Mas precisa ser o contrário. Aí dá pra ser legal, divertido. E é muito mais possível que o outro ame a gente de verdade, porque a gente também está se curtindo. Quem gostar de mim vai gostar com meu cabelinho curto.
E transparece, né? Quando a gente se entende, se reconhece, escuta aquela voz interior que fala muito conosco, tem uma possibilidade bem maior de ser feliz.
Nesses mais de 20 anos de carreira, qual foi a experiência mais marcante para você? Sinceramente, é difícil dizer isso. Eu não venho de uma família artística, venho de uma família de uma ex-empregada doméstica que se tornou dona de casa quando se casou e de um bancário. Uma família que queria que a gente tivesse uma formação acadêmica, porque eles não tiveram. Eles queriam que a gente fizesse um concurso público porque isso era garantia de estabilidade financeira, e também porque ali a gente é um número, não é analisado pela estética. Ninguém está com a sua foto para dizer se você pertence ou não àquele lugar. Então, quando eu me entendo artista, existe esse chamado que eu nem sabia, que era me entender. O fato de eu poder viver da minha profissão é o mais genial de tudo.
Como surgiu o desejo de ser atriz? Quando eu era criança, assisti a um filme franco-brasileiro com meus pais chamado Orfeu do Carnaval. Fiquei muito fascinada com a imagem e senti uma identificação que eu não sei muito como se deu, mas se deu. Durante anos fiquei com uma lembrança muito firme na minha cabeça de quando Eurídice ia atrás de Orfeu. Uma cena trágica, mas ficou comigo, eu queria fazer aquilo. A ideia de poder contar histórias brotou ali.
Quais histórias você ainda quer contar? Há pouco tempo, uma amiga me perguntou: "Qual é o personagem que você quer fazer?". Eu respondi para ela: "Não sei". Porque eu nunca tive a possibilidade de pensar em qual personagem eu queria. Eu quero ser Ofélia? Eu quero ser Julieta? Eu quero ser Desdêmona? Nunca houve a possibilidade de escolher quem quero viver. Era o personagem que aparecia. Eu nunca pensei nisso. Então, estar em cena, seja lá qual história for, é sensacional. Todas as vezes em que estou trabalhando é emocionante para mim. Porque eu conheço uma infinidade de atores talentosíssimos que não conseguiram, não tiveram oportunidade. E nem estou falando de uma questão racial. O mercado é muito estreito, é um buraco de agulha. Então, cada trabalho significa que você conseguiu passar pelo funil, já é vitorioso. Seja lá se você tem uma fala ou se é o protagonista de uma novela inteira.
E agora, você pensa em algum personagem que gostaria de fazer? Eu quero fazer todos os papéis que me derem na mão. Não tem mais nem menos. Quando decidi ser produtora, a minha questão foi: que história eu vou contar? Quando eu pedia a colaboração de um autor que eu gostava muito, muitos traziam um relato triste, doído, de negritude. Poxa, não é possível que o meu relato só possa ser triste e doído. Cadê a parte feliz? Cadê a parte da poesia? Elas existem. Como produtora, eu poderia montar Desdêmona, Julieta. Todos nós podemos. Mas a maneira como essas figuras são retratadas faz com que a gente não se enxergue nelas. Hoje a gente vê releituras como de Rei Lear, de textos que a gente considera clássicos, com a ideia de falar com o povo, desmistificar. Talvez esse seja o meu interesse, respondendo sua pergunta. Desmistificar esses grandes clássicos, trazer para nós, porque eles se tornaram clássicos porque eram extremamente populares. E o popular ali é universal, não é? Ele comunica com o povo. Desmistificar esse lugar pomposo da arte, que é só para entendedores. A ideia de que nós, artistas, nos sentimos diferente, somos mais sensíveis, também é uma falácia. Adoraria me surpreender nesse lugar.
Foi daí que surgiu o desejo de produzir teatro? A produção surgiu a partir de uma necessidade mesmo, porque o teatro não estava conseguindo me absorver enquanto corpo pra contar histórias. Eu tinha que criar as minhas histórias e levá-las para o palco. A produtora surgiu daí. Eu tinha que me produzir pra estar no palco, outras produções não iam me contratar porque a minha potencialidade como atriz, o meu corpo não se encaixava dentro dos perfis. A gente ainda está começando a mudar isso. As pessoas pensam o teatro de forma muito caucasiana. Se você vai montar Shakespeare, todas as pessoas têm que ter cara de inglesa. Aí ficava me perguntando: será que no Japão ninguém monta Shakespeare? Será que em países negros, africanos, ninguém monta Shakespeare? Agora estão chegando autores que são de outros lugares, de outras etnias, de outras culturas, mas bebemos basicamente da cultura europeia. Dona Ruth de Souza, minha fonte de inspiração, contava que ouvia: "Ah, você é uma atriz incrível, queria tanto fazer uma peça com você, mas não tem papel para você". A produtora surge de tanto ouvir "não tem papel para você". É um lugar de sobrevivência. De não ser calada, silenciada dentro de sua potencialidade. Se não permitem que eu fale, eu vou criar uma forma de falar, mesmo que seja para uma única pessoa.