Sexy, desbocada, agressiva, reativa, negra. Elza Soares é tudo que não queriam que uma mulher fosse e não abriu mão de ser. Aos 87, ela lança o disco Deus é mulher e celebra a força do feminino
"Eu vim do 'planeta fome', seu Ary [Barroso]". A frase é de Elza Soares, em 1953. Ela começou a cantar samba e ninguém entendia de onde ela vinha com aquela voz rasgada do jazz, cantando como se o mundo fosse acabar. Levou o samba pro tempo dela, que era muito adiante do tempo real.
Era sexy, desbocada, agressiva, reativa, negra. Era tudo que não queriam que uma mulher fosse — e não abria mão de ser. É uma força da natureza. Atravessou a vida em seus infinitos desafios, sem ceder um centímetro. Do casamento com Garrincha, sobrou pra ela todas as cobranças de dois universos machistas, que absolveria sempre o boleiro para condenar a vadia de vestidos curtos.
Venceu como cantora, sumiu, foi quase esquecida. Não aceitou parar, não aceitou os rótulos, não aceitou se entregar. Decidiu não repetir seus clássicos, era sedenta pelo incerto."Eu sempre tive uma linguagem muito própria. Mas quando você é uma menina preta e pobre que entra em uma gravadora querendo cantar, você é obrigada a obedecer. Quando eu pude não obedecer mais, não obedeci. Mostrei o que tinha dentro de mim."
Em 2002, lançou Do cóccix até o pescoço, esbanjou seu samba excêntrico, travou novas parcerias e deu início a um dos períodos mais férteis de sua carreira. "Esse é um disco tão pra frente, uma obra maravilhosa. Esse negócio de cantar com a meninada é muito bom. Eles querem tanto eu, é um encontro do querer", diz.
No fim de 2015, lançou possivelmente o melhor disco daquele ano. A mulher do fim do mundo é um manifesto feminista e de vida, cheio de símbolos e ideias de alguém que viveu sempre no limite, de quem encarou o machismo e o racismo de frente. O disco nasceu clássico e marca o encontro de Elza com Rômulo Fróes, Kiko Donucci e Guilherme Kastrup, artistas que fazem a história da música brasileira atual, e acompanharam a intérprete em seu novo trabalho, Deus é mulher, lançado em maio.
Ela deixou de lado o clima dark de A mulher do fim do mundo e celebra a força do feminino em repertório ensolarado, com participações de Tulipa Ruiz, Pedro Luís e Douglas Germano. Elza se prepara para mostrá-lo ao público, que não para de querer vê-la ao vivo. E ela, aos 87, ainda tem uma violência descomunal no palco. Está hoje tão relevante quanto sempre deveria ter sido. E, no momento da velhice, em que muitos diminuem o ritmo, ela fez o que sempre fez: acelerou.
Tpm. Seus últimos discos dialogam com a música atual, você parece ter se reinventado. Como rolou isso?
Elza Soares. Eu sempre tive uma linguagem muito própria. Mas quando você é uma menina preta e pobre que entra em uma gravadora querendo cantar, você é obrigada a obedecer. Ou canta ou que te dão para cantar ou não é empregada. E eu precisava ser alguém na vida pela minha voz. Quando eu pude não obedecer mais, não obedeci. Mostrei o que tinha dentro de mim. Me libertei para cantar o que a juventude gosta, o que eu gosto, coisas novas. É muito bom cantar com essa meninada, é o encontro do querer.
Em umas das faixas, você canta “eu quero dar para você”. Estamos mais livres sexualmente? Não sei se melhorou, não. Estamos ainda na fogueira e vejo gente fazer cara de que não está acontecendo nada. Temos que poder gritar. Você tem que ser dona de você, do seu querer. Você é o seu poder. Temos que estar abertas. Não tem idade, nem nenhuma limitação, para o desejo.
O título do álbum fala da força do feminino. O machismo segue matando, como nos casos de Marielle e Matheusa. O que fazer? Tá faltando amor, cara, tá faltando ternura. E as mulheres estão sendo vítimas dessa crueldade. Mas não é o mundo que tem que mudar, quem tem que mudar somos nós, mulheres. Vamos dar as mãos, nos proteger. É o único jeito.
Deus é mulher? Está na cabeça da humanidade que Deus é nosso pai, é homem. Mas cadê nossa mãe? Não existe a espírita santa. Mas tem que ter a mulher. Se a gente parar de parir, o mundo é o quê? Nada. Acaba a existência da terra. Então, sim, Deus é mulher. Na faixa que gravei com o Pedro Luís, ele diz que Deus deve ser fêmea, deve ser linda. O título do disco veio daí.
É um disco bem mais solar do que o último, que tinha uma estética bem dark. Como ser leve em tempos tão duros? Se você não for leve, não consegue passar pela vida. Cantar é meu caminho para encontrar a leveza e esse trabalho é como um banho, me jogo nele, com ar, com espaço. É uma delícia.
Créditos
Imagem principal: Daryan Dornelles/Divulgação