A jogadora de vôlei de praia fala sobre a censura que sofreu, a sexualização do corpo das jogadoras e os dilemas da maternidade para as atletas
Não dá pra cravar que foi destino, mas dá pra dizer que não foi uma surpresa que Carol Solberg escolhesse fazer carreira no esporte. Filha da jogadora de vôlei de quadra Isabel Salgado e irmã de dois jogares, ela passou a infância viajando para acompanhar a mãe em torneios, e na adolescência já estava trilhando seu próprio caminho no vôlei de praia.
O que não era esperado nessa trajetória é que, logo após uma vitória que lhe rendeu um lugar no pódio em um campeonato em outubro, duas palavrinhas causariam um rebuliço muito maior do que qualquer medalha: "Fora Bolsonaro". A manifestação espontânea de Carol Solberg lhe rendeu uma denúncia pelo Comitê Disciplinar do Supremo Tribunal de Justiça Desportiva, com sanções e uma advertência, da qual a atleta recorreu e foi absolvida em novembro: "A advertência veio como uma censura. Eu sabia que não tinha feito nada errado".
Mas se o processo no Tribunal foi resolvido, a discussão que essa manifestação e sua represália despertaram está só no começo. O processo no STJD virou assunto em todo o Brasil e tem estimulado o debate sobre liberdade de expressão e desafiado a máxima de que esporte e política não se misturam. "Se você pode dar voz a movimentos tão importantes, você tem que ser estimulado a falar", diz.
Em conversa com a Trip, ela fala sobre os aprendizados que vieram com esse episódio e revela os bastidores do que é ser uma atleta no Brasil. Spoiler: questões como a sexualização do corpo das jogadoras e a falta de segurança financeira na maternidade deixam a certeza de que viver do esporte não tem nada a ver com o glamour dos pódios. Carol questiona, ainda, o conflito entre educação e carreira, que acaba refletido na falta de posicionamento político dentro do esporte. "A realidade do atleta brasileiro é muito dura, a grande maioria está pensando no seu prato de comida. Querer e exigir desse atleta que ele também seja engajado politicamente é um pouco injusto às vezes", afirma.
Trip. Você começou a sua carreira de atleta profissional bem jovem, com 11 anos. Como é tomar a decisão de escolher o esporte como profissão num país como o Brasil, onde faltam investimentos nessa área?
Carol Solberg. Tomar essa decisão é muito difícil. Ainda mais porque normalmente ela é tomada muito jovem. Aos 15 anos, 16 anos você está escolhendo o que você vai fazer da sua vida, e normalmente você tem que abrir mão de estudar. Eu, por exemplo, que sou privilegiada e tive acesso a tudo, tive dificuldade para terminar o segundo grau. Terminei o último ano nas coxas porque eu já estava correndo o Circuito Mundial. Escolher entre tentar entrar na faculdade ou ser atleta profissional é sempre um risco muito grande. E você toma essa decisão no momento em que você não tem apoio, não tem patrocínio, e não tem a menor ideia se conseguirá seguir com aquela profissão. Então tem muitas inseguranças por trás disso. O que acontece nos Estados Unidos é exatamente o oposto, uma atleta jovem, que está em alto nível, imediatamente ganha uma bolsa em uma universidade e pode estudar em uma faculdade bacana mantendo o seu treinamento e continuando em super alto nível. No Brasil é muito difícil ser atleta.
Um outro aspecto cruel da vida de atleta é o curto período em que você consegue exercer a profissão. Para um profissional como um psicanalista, por exemplo, a tendência é ficar melhor com o passar dos anos. Mas para o atleta o ápice da carreira é na juventude. Com certeza, a nossa carreira é muito curta. No vôlei de praia, aos 38, 39 anos é mais ou menos quando uma mulher está parando de jogar, isso se não tiver nenhuma lesão no meio do caminho. Aos 40 anos você tem que descobrir uma nova profissão e o que vai fazer na maior parte da sua vida. Eu já tenho 33, e quando penso sobre isso, confesso que ainda quero jogar, mas me dá uma insegurança e eu falo "caramba, o que é que eu vou fazer?" Não tenho a menor ideia, porque eu amo jogar vôlei, sou apaixonada pelo meu esporte, e eu não me preparei para outras coisas, não consegui conciliar uma faculdade junto com isso. Depende muito do que você construiu ao longo da sua carreira, com o que você vai trabalhar posteriormente. Eu acho que a vida de atleta no Brasil é repleta de inseguranças.
“ Aos 40 anos você tem que descobrir uma profissão e o que vai fazer na maior parte da sua vida”
Carol Solberg
E tem o risco das lesões. Você se machuca e ninguém vai te bancar. Não tem um tipo de seguro, um tipo de assistência, você está por sua conta. Eu tive dois filhos, engravidei duas vezes. Os anos seguintes às minhas gravidezes foram muito difíceis. Eu só investi no vôlei, não ganhei um centavo, só botei dinheiro para poder voltar a estar entre as melhores. Você engravida e não tem nenhum benefício. Volta com 80% dos seus pontos, eles tiram 20% dos seus pontos sei lá o porquê. É muito complicado, mas é isso.
A maternidade com frequência é adiada ou se torna um dilema para mulheres de diversas áreas profissionais, mas para as atletas, que como falamos tem a duração da carreira profissional mais estreita, imagino que escolher parar por alguns meses para ter um filho seja uma decisão difícil. Eu sempre tive a certeza de que eu queria ser mãe antes de parar de jogar. Nunca passou pela minha cabeça a ideia de esperar terminar a minha carreira para ser mãe. Esse desejo sempre esteve em mim, e quando eu senti essa vontade, que era uma coisa muito maior, eu não tive dúvida. Não me assustava a ideia de não poder ser uma mãe que estaria o tempo inteiro ao lado dos filhos, porque eu vivenciei muito isso. A minha mãe teve quatro filhos ao longo da carreira e ela sempre carregou a gente para tudo que é lado, mas também perdeu muitas coisas. Claro que ela não estava em todos os aniversários e reuniões de escola, e eu nunca achei que isso era importante, porque o amor, que era o que mais importava, estava sempre ali. Ela curtia muito estar com a gente, isso era evidente. Então eu sempre achei que era totalmente possível conciliar a maternidade com o esporte, e me atraía inclusive a ideia de viajar o mundo com meu filho e ele torcer por mim. Nunca me assustou essa coisa da gravidez. Acho que eu sou privilegiada fisicamente, consegui ter uma gravidez saudável e consegui treinar durante a gestação. Já estava competindo de novo quando meu filho tinha três meses. E me animei até para ter o segundo porque, para mim, apesar de ter sido difícil o ano seguinte, eu curti tanto ser mãe, me realizei tanto e foi tão incrível que eu queria vivenciar aquilo de novo. Eu tenho muito desejo de ter outro filho e muita vontade, mas eu não tenho mais a mesma disposição. Quando eu penso numa gravidez, em voltar fisicamente, agora um pouco mais velha, e viajar com três crianças, eu já não me animo. Vai muito do que a mulher está sentindo. Quando eu decidi engravidar do Salvador e do José eu tinha certeza que era aquilo que eu queria e que, o que viesse pela frente, eu estava pronta para encarar. Agora eu estou com desejo de engravidar de novo, mas não tô afim de encarar o que vem pela frente, que eu já sei o que é. A minha próxima gravidez, porque eu espero ter mais um filho, quero que seja mais para frente, quando eu estiver desacelerando no esporte, parando de jogar. Porque eu quero poder ter uma gravidez diferente, em que eu possa curtir um pouco mais, amamentar até quando eu quiser. José e Salvador eu parei de amamentar quando eu fui para a China, eles tinham dez meses. Os dois, coincidentemente, eu parei de amamentar aos dez meses e coincidiu com esses torneios na Ásia. Eu não quis levá-los por ser uma viagem muito pesada, não queria levar o bebê para uma viagem dessas. Mas eu tenho o desejo de ter uma gravidez em que eu possa fazer as coisas num outro ritmo.
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No ano passado corredoras de elite nos Estados Unidos foram a público expor que perdiam patrocínio quando engravidavam, com bases em cláusulas de contrato que exigiam um determinado desempenho. Uma delas, a Alysa Montaña, chegou a competir até os 8 meses de gestação para poder manter o patrocínio. Esse cenário também acontece aqui no Brasil? Com certeza se a gente tivesse algum tipo de ajuda, se pudéssemos contar com algum tipo de benefício, as mulheres não teriam pressa em voltar a treinar, poderiam esperar um pouquinho mais. No meu caso, eu também quis voltar muito rápido. Óbvio que por conta do ranking, e pensando que eu tinha que voltar logo e fazer grana, estar competindo, mas tinha o desejo também. Eu amo jogar vôlei, adoro estar em quadra, estava morrendo de saudades da adrenalina. Agora, é um absurdo você pensar que uma atleta tenha que voltar por conta de patrocínio. Vamos pensar em como ajudar, uma forma bacana dessas mulheres poderem ter uma gravidez legal e que saibam que podem contar com os patrocínios. Na minha primeira gravidez o meu patrocinador continuou, eu falei que eu queria engravidar e ele foi muito legal. Agora, tem muita a marca que não. Eu vi tudo isso que rolou com a Alysa, vi o vídeo que ela fez falando sobre isso, é revoltante. Não dá mais para ter esse tipo de posicionamento diante de uma gravidez.
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O vôlei de praia não é o esporte mais popular do Brasil, mas está longe de estar entre os menos. De uma maneira geral é um esporte que atrai muito a atenção das pessoas e a audiência na televisão, embora ultimamente não esteja sendo muito televisionado. Como é o aspecto financeiro de uma jogadora profissional? Na verdade não está sendo televisionado mesmo. Os jogos não tem passado, ou passam muito pouco. Muitas vezes está rolando uma final de um Grand Slam, que é um campeonato de alto nível, em lugares lindos, jogos muito legais, finais e semifinais, e não são televisionados. No Brasil só é televisionado a semifinal e a final. Se você ganhar um torneio, por exemplo, não sai uma nota no jornal, não sai nada. O vôlei de praia, apesar de ser o esporte que mais bomba nas Olimpíadas, o esporte que está sempre esgotado de ingressos, no meio tempo não tem essa mídia toda. E é difícil até você vender esse produto ou procurar patrocínio, porque não tem esse feedback, passa pouco. Nesta pandemia eu tive que bancar a minha equipe durante o ano todo sem nenhum patrocínio. Eu tinha um só apoio, de uma marca de isotônico, a Jungle, que me patrocina, mas que não fecha as contas da minha equipe. Uma equipe de vôlei de praia é muito cara. Você tem preparador físico, técnico, auxiliar, fisioterapeuta, tem as pessoas que montam a nossa estrutura na praia, a gente está falando de uma equipe grande. São pessoas que se dedicam diariamente àquilo ali, e no vôlei de praia os atletas são os donos do time, sou eu que monto a minha equipe, eu que faço esses pagamentos, eu que decido os torneios para os quais eu quero viajar, que vou olhar as passagens e ficar em site de pesquisa procurando hotel mais barato. É um esporte que tem uma independência dos atletas, o que para mim é muito importante, eu valorizo muito isso. No vôlei de quadra você vive num formato muito mais exigente de horários. No vôlei de praia, se eu durmo mal, ou se eu to com o bebê, por exemplo, eu falo "Galera vamos atrasar um pouco o treino, botar um pouquinho mais tarde. Rola? Quem pode?". É uma equipe menor, só tem duas atletas envolvidas. Tem uma independência que é muito legal, mas tem um lado ruim disso também, que é complicado você ter que jogar, treinar, administrar uma equipe e essas coisas burocráticas.
Como é a relação com essa dupla na quadra? Tem uma atleta que é a líder, meio a capitã assim?Tem muitos times que têm esse formato, e eu acho que funciona pra caramba. No vôlei de praia, só no Brasil é permitido ter o técnico sentado no banco, no Mundial não pode. Então é importante ter uma pessoa que dá o rumo dentro da quadra, acho que isso facilita. Muitas vezes o time tem uma química tão grande e sei lá, as duas estão abertas a esse tipo de comando. Tem dia que você está um pouco mais forte, e tem dia que você está pior e embarca na da sua parceira. Eu me considero um pouco assim, quando eu vejo que eu preciso ser a líder naquele jogo eu tomo as rédeas, e quando eu acho que a minha parceira está com o feeling melhor que o meu e que aquele dia ela tá sacando melhor, eu vou na dela. Muitas vezes eu olho para a cara da minha parceira e falo "Cara, o que você está sentindo? Vamos na tua". É de cada time. No meu caso, diante das parcerias que eu tive até hoje, eu tento jogar nesse ritmo do dia, falando e pensando junto.
O público se encanta com o corpo dos atletas de alto nível, por ser muito bonito, muito saudável e capaz de coisas que as demais pessoas, não atletas, não são capazes. Existe essa admiração e essa projeção no corpo do atleta. Mas a realidade é que esse corpo é submetido a um desgaste intenso e, por mais que ele se prepare, sofre muita dor e muita lesão. Como é a sua relação com o corpo, nesse aspecto dele como sua ferramenta de trabalho também? É totalmente isso. É engraçado porque eu também acho que não é nada saudável o que a gente faz, a gente passa do ponto do que seria saudável para um ser humano. Eu estou sempre economizando o meu corpo quando eu não estou em quadra, quando não estou treinando. Meu marido vive me sacaneando, ele fala "vamos de bicicleta até sei lá onde", e eu falo "não vou fazer isso com a minha perna, tô com a perna queimando aqui". A gente mora no alto de uma ladeira, e eu nunca subo a ladeira pedalando, eu sempre vou empurrando e me arrastando, e ele fala "cara, não é possível, você é atleta!" Exatamente porque eu sou atleta que eu não vou subir a ladeira pedalando, não posso fazer isso com o meu joelho. Tem várias coisas que eu não faço. Agora estou de férias, e o meu punho está arrebentado, eu machuquei no último campeonato, então não consigo fazer várias coisas. Aí eu tenho que pedir "pega isso aqui pra mim". Estou sempre com alguma lesão. O meu ombro é ferrado, então para pegar meus filhos no colo, quando eles dormem no sofá e precisam ser carregados para a cama, não rola, porque acaba com o meu ombro mais ainda. Eu tenho que estar sempre me preservando, ter sempre esse cuidado a mais com o corpo porque está sempre tudo doendo.
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Te preocupa a possibilidade de você estar com 50 e poucos anos e com problemas ou consequências desse uso exagerado do corpo? Eu confesso que ainda não me preocupa não. Eu me vejo fazendo exercício para sempre, porque eu adoro suar, meu corpo funciona muito melhor quando eu faço atividade física. Mas eu vejo a minha mãe, que é uma pessoa muito dependente também desse exercício físico, ela tem um joelho ferrado por conta do vôlei. Uma coisa que ela adora fazer é caminhar na praia todos os dias, é a terapia dela, e ela não está conseguindo fazer agora porque está com o joelho doendo para caramba, o tornozelo ruim. Eu não penso nisso agora porque eu considero que ainda está um pouco longe, mas vendo a minha mãe às vezes me dá esse estalo "Caramba, não é saudável mesmo o que a gente faz". Quando eu parar de jogar, eu vou saber quais foram os danos. E cada um funciona de um jeito, a história da minha mãe é uma e a minha é outra, pode ser que eu tenha outros tipos de lesões. Mas acho que, por eu ser uma pessoa muito dependente do exercício físico, que para mim é fundamental, eu pretendo fazer exercício pra sempre. Espero muito que eu chegue nos meus 50, 60 anos, podendo nadar, surfar e andar na praia.
O corpo das mulheres está sempre sendo assunto. E no caso do vôlei de praia, o corpo das jogadoras está exposto pelo próprio traje da prática, e acaba atraindo olhares e comentários que não se limitam ao esporte, sendo erotizado. Nas Olimpíadas de Londres rolou uma discussão sobre se o mau tempo impediria que as atletas jogassem de biquíni, deixando implícito que, se elas estivessem mais cobertas, o jogo perdia parte do seu atrativo. Como isso te afeta? Eu vivencio isso o tempo inteiro. Quando a gente tá na quadra de biquíni, sendo mulher, a gente está muito exposta e muitas vezes a gente joga em arenas que são bem pequenas. Você chega num torneio e tem a arena principal e arenas laterais, pequenininhas. Às vezes você está ali para sacar e fica com a bunda literalmente na cara de uma pessoa com uma câmera, sabe? É muito desagradável. Eu já vivi vários episódios, inclusive o meu irmão uma vez partiu pra cima de um cara que estava fazendo fotos com uma conotação totalmente sexual ali. Isso é muito chato. Tem zilhões de sites com bunda de jogadora de vôlei, em posições que você está ali de biquíni para pegar a bola de manchete, bota a perna pro alto... E essa questão das roupas rola muito no Circuito Mundial. Muitas vezes a gente joga em lugares tipo a Noruega, e às vezes entra uma frente fria que é um gelo, e rola esse assunto até hoje "Mas vai jogar de roupa? É ruim para a televisão!" Porque? Se estou morrendo de frio não tenho a menor condição de jogar sem roupa, de jogar de biquíni numa temperatura dessa. É triste pensar que um esporte está ligado à pessoa ligar a televisão e ver um monte de mulher de biquíni, não é isso o jogo, de jeito nenhum. Claro, é bonito ver corpos bonitos. Legal ver atletas, corpo de atleta é bonito, tudo bem. Mas acho que tem que ter um respeito, o que muitas vezes não rola, como em várias áreas. Tem uma mulher ali exposta dentro de uma quadra fazendo o trabalho dela.
“É triste pensar que um esporte está ligado à ligar a televisão e ver um monte de uma mulher de biquíni, não é isso o jogo”
Carol Solberg
Você acha que seria melhor mudar um pouco o uniforme? Não acho não. Eu me sinto bem de biquíni. É um traje ótimo para jogar vôlei de praia. Normalmente faz o maior calor, a gente joga em praias no Brasil todo, tá tudo certo. O que tem que mudar são essas pessoas que têm esse olhar. A gente não. A gente tem que ter o direito de usar o que quiser. Estar com frio e não poder botar uma calça porque vai tirar a audiência do jogo, pelo amor de Deus, não existe.
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Me fala um pouco desse episódio que gerou tanta chateação para você, quando, numa entrevista no final de uma partida você exclamou um "Fora Bolsonaro". Isso gerou uma grande repercussão e uma punição para você, que foi advertida pela Comissão Disciplinar do Supremo Tribunal de Justiça Desportiva. O que estava passando pela sua cabeça na hora, e que te levou a se manifestar nesse momento? Você imaginava que isso pudesse ter consequências tão agudas? Foi um episódio que acabou tomando proporções muito maiores do que eu esperava. Eu estava indo para esse campeonato em Saquarema, que era o primeiro campeonato depois de tanto tempo sem jogar por conta da pandemia, e eu estava muito muito feliz de estar voltando às quadras. Estava disputando uma medalha de bronze e tinha acabado de ganhar esse jogo, tava pura alegria por ter ganhado aquela medalha, por estar de volta no pódio. E aí na hora de dar entrevista, apesar de toda a minha alegria, eu não podia não pensar em tudo que estava rolando, de estarmos vivenciando esta pandemia do jeito que estamos. Pensar em todas as mortes pela Covid-19 que eu acredito que poderiam ter sido evitadas se tivesse um mínimo de respeito à ciência. Durante o campeonato acho que era o pior momento do Pantanal, estavam rolando as queimadas e sem nenhum plano emergencial do governo. Então eu não posso dizer que foi por uma coisa, foram tantas coisas, sabe? Se a gente pensar nesse desmonte da cultura, nossos maiores artistas sendo totalmente menosprezados, a Educação indo para o ralo, nenhum investimento, só tirando o orçamento da Educação. O ministro do Meio Ambiente falando em "passar a boiada" naquela emblemática reunião ministerial e nada ter acontecido. Foi um misto, e eu estava ali dando aquela entrevista, muito feliz por ter ganhado uma medalha, e ao mesmo tempo eu pensei "eu tô aqui feliz por causa de um jogo de vôlei e o país nesse lugar". Me pareceu tão esquisito, e aquele sentimento brotou, veio um grito espontâneo de indignação, de raiva de estar vivendo isso. Eu, como cidadã, me sinto totalmente no direito de manifestar minha opinião ali. Mas foi isso, uma coisa totalmente espontânea que saiu por tudo que está acontecendo nesse governo.
Você acha que você acha que a reação desproporcional teve a ver com o fato de você ser mulher? Eu acho que, em primeiro lugar, qualquer pessoa que se manifeste contra esse governo está sujeita a vivenciar isso que eu vivi, as ameaças e tudo mais. Quando se trata de uma mulher, muito mais, porque esse é um governo extremamente machista. Eu acho que para eles, ter uma mulher, uma atleta, falando de política ali é tipo "Quem é você garota? O que você tá pensando?" Acho que o fato de eu ser mulher fez com que isso tomasse essas proporções, que a coisa virasse o que virou mesmo.
Qual foi o momento que você se sentiu mais ofendida nessa história? Eu me senti muito ofendida durante o primeiro julgamento, quando o presidente do STJD falou para mim que eu não estava ali numa entrevista para falar o que eu pensava, que eu só estava ali para dizer o que tinha acontecido nas quatro linhas, e me tratou de uma forma muito desrespeitosa e machista. Ele deu o último voto dessa forma, o último voto do julgamento e eu não podia falar nada. Eu fiquei muito engasgada, fui dormir com raiva daquele sujeito. Mas ao mesmo tempo foi bom, porque ali eu tive certeza de que eu ia recorrer. Muita gente falou: "você recorreu a uma advertência, não estava bom tomar só uma advertência?" Não estava, porque a advertência veio como uma censura. Para mim aquele momento foi decisivo, quando aquele homem me tratou daquela forma eu tive certeza de que eu queria recorrer. Eu sabia que eu não tinha feito nada de errado e não ia aceitar nenhum tipo de advertência, muito menos dele.
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Acho que a reação desmedida à sua fala se deve, ao menos em parte, ao fato de que sejam raros os atletas se colocando politicamente, falando com clareza aquilo que eles pensam sobre sobre o país de uma forma geral. Porque você acha isso acontece? Eu pensei pra caramba sobre tudo isso, essa máxima de política e esporte não se misturarem que tanta gente prega, e eu acho que são várias coisas. Primeiro, claro que essas regras todas que existem em cada modalidade fazem com que os atletas fiquem com medo, porque muita gente não está disposta a passar pelo que eu passei, a sofrer sanções. A gente sabe que muitos atletas que se manifestaram foram punidos. Muitos ficaram sem time durante muito tempo mesmo. Eu acho que a primeira coisa é que essas regras precisam ser revistas, porque não dá para a gente estar em 2020 com regras que foram foram feitas no início do século passado. O esporte tem que evoluir com o mundo, com as demandas da sociedade, do que está acontecendo. E o atleta, na minha opinião, tem um papel muito grande. Se você influencia crianças e jovens você tem que falar o que pensa, tem que sair um pouco do seu mundinho e ter um olhar maior. Se você pode dar voz a movimentos tão importantes, você tem que ser estimulado a falar, a se engajar em causas em defesa dos direitos humanos, do meio ambiente, da luta anti racista. Eu acho que todos os atletas deveriam se colocar. Os que quiserem, obviamente, porque eu respeito também os que os que não querem, que não querem se meter com política, que gostam deste lugar de neutralidade. Tudo bem, eu não estou aqui dizendo que todo mundo tem que falar, de jeito nenhum. Só acho que, quem quer falar, tem que poder falar. Mas tem outros aspectos também, tem gente que realmente só pensa no seu próprio umbigo e não está nem aí para o que está acontecendo no resto do mundo. A gente também não pode deixar de falar que muitos atletas pararam de estudar muito cedo, vivenciam pouco um ambiente de troca, de estímulo que tem esse tipo de debate, e muitas vezes acabam ficando por fora mesmo do que está rolando e não são instigados. Quando você está numa faculdade, por exemplo, é um ambiente que naturalmente te estimula a ter esse tipo de troca. O esporte é um ambiente muito pouco enriquecedor nesse aspecto. São poucos os ambientes esportivos que estimulam essa troca. Se você não tem uma família, ou amigos com os quais você tenha esse papo, que saia ali do mundo do esporte, você acaba ficando um pouco alienado a tudo. Não dá para comparar um atleta americano, que está lá nos Estados Unidos podendo fazer uma faculdade, e o do Brasil, que com 16 anos está tendo que pensar em como vai manter a sua estrutura de treinamento. A realidade do atleta brasileiro é muito dura, a grande maioria está pensando no seu prato de comida. Querer e exigir também desse atleta que ele seja engajado politicamente é um pouco injusto às vezes. Agora, temos grandes atletas que não têm medo e não precisam ter medo de nada, que sabem da força que eles teriam se se manifestassem por causas bacanas e não falam nada. E também tem os que apoiam esse tipo de governo. São várias coisas, não dá para falar uma coisa só.
“Acho que o esporte e a política tem que andar juntos, como tudo. A política tá em tudo na nossa vida.”
Carol Solberg
Você foi muito atacada e até ameaçada por causa da sua manifestação. Mas teve um lado positivo de toda essa reviravolta que você viveu? Eu fui muito acolhida e abraçada, muito mais do que atacada. Eu recebi muito apoio de todos, inclusive de pessoas que admiro. Tudo isso que eu vivi, claro que teve um lado chato de ver a vida exposta e receber ataques, mas a onda de coisa boa foi muito maior. Todo mundo bacana estava do meu lado. Foi uma experiência muito legal para ter certeza de quanto é importante a gente se colocar, usar a nossa voz no que a gente acredita e poder ampliar esse debate. Essa história pra mim é só o começo, de falar "é tão bom poder falar sobre isso". Acho que o esporte e política tem que andar juntos, como tudo. A política tá em tudo na nossa vida. Está sendo muito legal vivenciar tudo isso e poder debater com tanta gente inteligente, tenho aprendido pra caramba. Assim como eu estou aqui com você, eu estive com vários jornalistas legais. E eu pude aprender e pesquisar mais sobre a história do esporte, muita coisa que eu não sabia, que eu aprendi e isso também está sendo muito importante para mim.
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Imagem principal: Fernando Young/ Divulgação