“Não teve um único dia em que eu não tenha pensado em me afastar”, diz o influenciador, que usa o seu alcance para combater o radicalismo, as fake news e as ilusões vendidas na internet
Homenageado pelo Prêmio Trip Transformadores 20/21 e escolhido pela Revista Time como uma das 100 personalidades mais influentes do mundo este ano, Felipe Neto entendeu que o que ele saber fazer – se comunicar – pode ser incrivelmente transformador. Ele soma mais de 36 milhões de seguidores no YouTube, 13 milhões no Instagram e 10 milhões no Twitter e é dono de uma trajetória reveladora de como a internet se transformou em um ambiente decisivo não só para a política, mas para a vida em sociedade como um todo.
"Não sou só um menino que faz vídeo para o YouTube, também sou um cidadão brasileiro que lê, estuda, tenta evoluir e que quer ter responsabilidade com o conteúdo que produz", diz. Diante do cenário político atual, marcado por constantes episódios de intolerância, ele passou a usar suas redes para promover debates sobre censura, preconceito, opressão e outros temas cruciais.
"Eu penso em me posicionar menos todos os dias da minha vida desde que comecei essa luta. São quatro anos em que não teve um único dia em que eu não tenha pensado que eu deveria me afastar", confessa. Felipe recebe inúmeras ameaças e tentativas de difamação por conta de sua posição política. Em julho de 2020, gravou um vídeo para o jornal norte-americano The New York Times em que dizia que Jair Bolsonaro é o pior presidente do mundo. Não passou batido. "O preço que paguei foi um dos maiores que alguém poderia pagar por um posicionamento. Foi quando começou toda a campanha de difamação querendo me associar a pedofilia". Trabalhar contra fake news já é uma rotina para Felipe, que é vítima constante desse tipo de ataque e se reúne com legisladores brasileiros para tentar encontrar uma saída. "Vai levar um tempo até existir uma classe política mais digitalizada. Não adianta querer combater fake news com vigilantismo, perseguição e punitivismo contra a tia do churrasco", explica.
Ele também usa toda essa potência de comunicação para dividir com seus seguidores seus erros e suas fragilidades. Fala abertamente sobre depressão, medos e aprendizados. "A verdade é que sou um garoto que veio do nada e conquistou muito mais do que sonhava, mas tem que lidar com a depressão e ser medicado".
Se liga na ideia que trocamos com ele:
Trip. Onde você cresceu?
Felipe Neto. Eu cresci no Engenho Novo, um bairro do subúrbio carioca bastante subdesenvolvido. Morei lá até os meus 20 anos com a minha mãe, minha avó e meu irmão. Um lugar consideravelmente pobre. A gente morava numa região chamada Morro da Laranja, próximo ao Buraco do Padre. Rua de paralelepípedo, cresci brincando na rua, jogando bola e tive uma infância até que bem boa. Quem nasceu no fim da década de 80 teve a última infância antes da invasão digital. Até os meus 10 anos de idade nem se falava em computador.
Você já falou em outras entrevistas de uma presença forte da igreja nessa fase em que você estava crescendo e desenvolvendo a sua visão de mundo. Rolou isso? A igreja teve um papel muito importante até os meus 15 anos. Fui criado dentro da Igreja Católica participando de todo o tipo de coisa, tive grupo de estudo bíblico, lia muito a Bíblia, muito. E aí mais ou menos por volta dos meus 15 anos começou uma fase mais rebelde da minha vida, de questionar tudo e isso fez eu me afastar da igreja. Acho que por eu ter tido essa educação mais conservadora cresci com alguns preceitos um pouco mais preconceituosos, de uma época em que não havia debate a respeito de inclusão, não se falava abertamente sobre homossexualidade, sobre feminismo, sobre nada disso. Na região onde eu cresci não se debatia nada disso, era uma visão ultraconservadora. No desenvolvimento adulto da minha vida comecei a questionar os meus próprios valores e conceitos para poder evoluir.
“A verdade é que sou um garoto que veio do nada e conquistou muito mais do que sonhava, mas tem que lidar com a depressão e ser medicado”
Felipe Neto
Quando você começou a trabalhar? Por eu ter crescido em um lugar muito desprivilegiado, sempre tive essa vontade de ajudar minha família, me desenvolver financeiramente, tirar a gente de lá. Comecei a trabalhar muito cedo e não parei mais. Com 13 anos fui trabalhar numa loja do centro da cidade de venda de apetrechos de metal. Fazia de tudo: almoxarifado, limpava, vendia coisas no balcão. Eu tinha decidido que eu ia abrir a minha primeira empresa, já achava que tinha idade para ser empresário. Na época, tinha um serviço de telemensagem que fazia muito sucesso, quando alguém fazia aniversário recebia uma ligação e era uma mensagem bonita enviada por alguém. Eu vi que podia comprar os aparelhos para montar esse serviço em casa e decidi investir nisso. Trabalhei nessa loja durante dois meses para juntar o dinheiro necessário e aí comprei os equipamentos para montar essa empresinha. Não deu certo. Mas, com 15, decidi que aquele mundo pelo qual eu já tinha me apaixonado – a internet – podia ser o futuro. E aí comecei a fazer trabalhos como designer gráfico. Decidi que aquela seria a minha profissão porque era uma coisa que dava dinheiro. Rodei em empresas, cheguei a ser diretor de arte de uma, fui estagiário de um monte. Criei um site aos 16 anos que se tornou uma febre no Brasil, era de pirataria para baixar seriado, se chamava "It's Free". Esse site foi um grande impulsionador das séries americanas aqui no Brasil, porque o brasileiro não tinha costume de assistir série americana. É um orgulho que eu tenho, porque era uma pirataria que não prejudicava ninguém, não tinha vítimas. Durou quatro anos e acabou fechando quando eu tinha 20 porque era muito caro manter o site, a quantidade de acessos era muito grande e eu não consegui sustentar. Tentei juntar dinheiro para pagar do meu bolso, porque eu amava o site, mas acabou não dando certo. E aí, em 2010, decidi gravar uns vídeos para internet, misturando duas paixões: criar coisas na internet e o teatro. E aí nasceu o Não Faz Sentido, meu canal no YouTube. Comecei a me profissionalizar nisso, estudar e aprender tudo que fosse possível sobre.
E quando você sacou que a política também era um assunto seu? Eu sempre falei sobre política. Um dos meus primeiros vídeos foi o "Não faz Sentido Políticos". Obviamente, eu discordo de muita coisa que foi dita ali, eu interpretava aquele personagem reclamão, exagerado, cheio de palavrão. A política sempre esteve presente na minha vida porque, como vim de uma região muito desfavorecida, a minha família sempre teve interesse em entender, questionar, debater. Eu tive uma influência muito conservadora, principalmente por parte do meu tio. Meus pais se separaram quando eu tinha três meses de idade, fui criado pela minha mãe, meu pai era pai de fim de semana, via de 15 em 15 dias. Meu tio morava nos fundos da nossa casa e ele sempre foi um cara ultraconservador. E é uma coisa que a gente demora a enxergar, principalmente quando jovem. Eu achava que aquela visão de mundo que estava sendo passada por uma pessoa experiente era a correta. Só na minha vida adulta comecei a questionar as ideias de que bandido bom é bandido morto, de que tem que ser tudo no cabresto, tem que armar todo mundo. Fui criado para entender que era isso o que ia melhorar o mundo. Levou um tempo para eu amadurecer. Todo mundo acompanhou esse processo porque eu fazia vídeos, tinha uma vida exposta, os meus erros eram divulgados. Erros de um garoto aprendendo sobre a vida. Tenho vários vídeos antigos contra o PT, xingando para caramba o Lula, a Dilma, "a corja do PT" e tudo com muita agressividade. Não que hoje em dia eu tenha me tornado um fã do partido, não sou e deixo isso muito claro. Mas sei o quanto na época eu estava com uma visão completamente enviesada. Então, desde aquela época, eu já tinha um posicionamento político. O que mudou foi o cenário no Brasil, que se tornou uma loucura polarizada, em que as opiniões políticas passaram a ter muito mais peso e reverberação. Eu me tornei uma pessoa progressista e passei a combater esses valores do ultraconservadorismo, desse reacionarismo doentio que o Bolsonaro representa. E aí eu acho que, porque no meio artístico e no meio de influenciadores todo mundo optou pelo silêncio, a minha voz acabou sendo alçada como referência, sem eu realmente ter planejado nada disso. Nunca foi a minha intenção ter qualquer notabilidade ou ser reconhecido como um influenciador político. Hoje sei que carrego essa responsabilidade, mas não me considero um analista ou um entendedor, um intelectual político. Eu estou ali me manifestando como um cidadão, como uma pessoa que estuda, conversa, ouve, como um cidadão brasileiro comum. Acho que se mais influenciadores e artistas tivessem ido nessa mesma onda contra o reacionarismo, eu seria só mais uma voz. Como ninguém veio, de repente eu estava lá na frente gritando, gritando, gritando. E os outros todos tinham ficado para trás, em silêncio. Cheguei até aqui muito mais por ter decidido fazer isso sozinho do que necessariamente por ser um entendedor político.
“Eu não me vejo como um bom político, não sou bom de diplomacia ”
Felipe Neto
Você sempre soube como se comunicar. O que é preciso para ser relevante na internet? A minha especialidade é a produção de conteúdo de entretenimento. No YouTube, sem falsa modéstia, eu respondo com muita convicção porque estudo todos os dias. Antecipo tendências, faço um conteúdo muito diferente e único e me orgulho muito do que faço. Mas no YouTube não tem política, é entretenimento, gameplay, minecraft. No Twitter acho que eu tenho um bom poder de síntese, que é uma coisa difícil, são 280 caracteres. O poder de síntese é fundamental para você conseguir fazer a sua mensagem chegar mais longe.
Mesmo sem se candidatar, você é um player da política brasileira hoje. O que você acha desse contexto dos chamados outsiders ganhando mais peso? Eu acho que esse cenário dos outsiders é uma realidade no mundo inteiro e que vai se tornar cada vez mais forte. Acho fundamental porque democracia é isso, é a participação do povo. Os outsiders nada mais são do que povo. Alguns vão ter mais seguidores, outros menos, mas é todo mundo falando o que pensa, o que sente. A política pra mim não dá ibope. O ibope que eu ganho com a política é muito menor do que o que eu ganho com os vídeos no YouTube, não chega nem perto. E acaba afastando uma parcela significativa da população para o conteúdo que eu faço, porque o pai que é bolsonarista fica irritado querendo que o filho não me assista. Desde que decidi me envolver nessa campanha anti-Bolsonaro, eu perdi muito mais do que eu ganhei em todas as esferas, posso dizer com convicção porque já fiz os cálculos. Eu acho que a única esfera em que poderia dizer que não tive prejuízo foi com a força da minha imagem para um público mais intelectual, que passou a me fortalecer e isso, sem dúvida, é positivo, me dá felicidade, mas é o único cenário onde eu tive ganho. Tive prejuízo no meu ganho de seguidores, no meu ganho de dinheiro. Eu poderia ter potencializado mais, mas o crescimento foi freado em função dessa luta anti-Bolsonarismo. A política hoje dá ibope só se você não tiver ibope e quiser se posicionar. Cria um projeto político que pode ser que dê certo, pode ser que você engaje. O que as pessoas fazem quando decidem por esse caminho? Vão para o radicalismo. Por quê? Porque é o que engaja, há uma sedução pelo radicalismo porque com ele é mais fácil trazer números. Só que de que tipo de público? Dos mesmos radicais. Então vira uma bola de neve e daí surgem esses comunicadores radicais de direita e de esquerda, que também existem. E isso acaba sendo muito ruim para o cenário como um todo, porque a política fica cada vez mais polarizada, os algoritmos favorecem cada vez mais esses conteúdos, porque são os que mais geram engajamento. A gente cria um cenário de guerra. Tudo isso é muito prejudicial. Então, política dá ibope? Dá, em outra esfera. Na minha, prejudica. E é algo que eu estou bastante cansado, muito, muito cansado. Essa eleição municipal foi muito desgastante, eu estou repensando muita coisa.
Você pensa em dar um passo para trás nesse sentido? Eu penso isso todos os dias da minha vida desde que eu comecei essa luta em 2017, que foi quando comecei a me posicionar de uma maneira anti-Bolsonaro e já comecei a sentir as consequências disso. São quatro anos em que não teve um único dia em que eu não tenha pensado que eu deveria me afastar. Pode ser que eu não venha a me afastar nunca, mas dizer que eu não penso nisso seria uma mentira. O prejuízo é muito grande. Ameaças à minha família, prejudica o meu relacionamento, prejudica tudo. E eu tenho que gastar uma fortuna com segurança só para poder não correr o risco de morrer.
“Eu tenho que gastar uma fortuna com segurança só para não correr o risco de morrer”
Felipe Neto
E isso te afasta da ideia de se candidatar? As pessoas pedem que você se candidate? Eu recebo muitos pedidos, muitos, muitos. Mas eu não tenho qualquer intenção política, zero. Eu não me vejo como um bom político, não sou bom de diplomacia, para dialogar com pessoas extremistas, dialogar com pessoas que cometem atrocidades contra os direitos humanos, eu não seria um bom político. E é um caminho que não me atrai em nenhum âmbito. "Ah, Felipe, você podia se tornar político para ajudar as pessoas". Eu posso ajudar muito mais pessoas não sendo político. Eu posso ganhar muito mais dinheiro, fazer mais doações. Como político eu teria que me privar de milhões de coisas que me proporcionam dinheiro. "Você pode entrar lá para mudar alguma coisa". Isso é uma visão deturpada do brasileiro messiânico, que acredita nessa ideia do político Messias. É óbvio que nós devemos eleger pessoas que representam os nossos interesses, porque coletivamente eles vão fazer diferença, mas um único indivíduo não é o que vai fazer a diferença na política. É uma ilusão achar que você vai entrar numa posição do executivo e vai conseguir transformar tudo.
Você falou abertamente sobre sua depressão na internet. Por quê? Nós vivemos em um ambiente digital em que tem muita coisa positiva, mas que tem muita coisa tóxica. A maior toxicidade do ambiente digital é a propagação de ilusão. Essa ilusão que é criada por influenciadores, comunicadores, blogueiras, blogueiros e que é uma influência extremamente tóxica, principalmente no ambiente dos adolescentes. Dizer a verdade é o primeiro passo pra gente começar a destruir e quebrar essa ilusão. Muita gente ganha dinheiro com a ilusão, a ilusão de que é feliz o tempo inteiro, de que dá para ser magra e estonteante sem esforço. O que não falta é material de pesquisa mostrando que o crescimento exponencial da quantidade de suicídios ou tentativas de suicídio de meninas adolescentes é completamente vinculado ao consumo de ilusões de redes sociais. A grande pandemia do planeta é a pandemia da depressão. Em pouco tempo, essa vai ser a doença que mais mata no mundo. E a gente ainda não está falando sobre isso o suficiente, sobre as consequências das redes sociais. Eu toco nesses assuntos por preocupação social, não para engajamento. Se a minha preocupação for engajamento, eu só faço vídeo de Minecraft, nada vai gerar mais engajamento do que isso. Então qualquer coisa que eu faça fora disso nunca vai ser por engajamento. Eu faço por querer passar adiante a verdade. A verdade sobre como um garoto que veio do nada e conquistou muito mais do que sonhava tem que lidar com a depressão, tem que ser medicado, tem que fazer terapia. A realidade de como eu sou no dia a dia, a realidade de como é o meu corpo, a realidade das minhas imperfeições. Tudo isso faz parte do que eu acredito que um comunicador deva ter como responsabilidade social em função da influência que ele causa, ainda mais um comunicador que fala com jovens. Então quando eu vejo uma menina ou um menino mandando uma mensagem falando que um vídeo ou uma postagem minha o ajudou a sobreviver, e isso acontece bastante, eu percebo o tamanho dessa responsabilidade, que não pode ser subdimensionada. É preciso, sim, que comunicadores tenham responsabilidade sobre a influência que causam na vida de jovens, porque isso pode determinar uma morte. Então é algo que eu levo muito a sério.
“Há uma sedução pelo radicalismo porque com ele é mais fácil trazer engajamento”
Felipe Neto
Tem como combater fake news? Eu sou uma vítima constante das fake news há bastante tempo, então é obviamente uma questão pessoal para mim. Livros maravilhosos sobre isso estão sendo lançados, como o da Patrícia Campos Mello e o da Ilona Szabó, e que mostram exatamente a realidade desses ataques. Fake news não vieram para ficar, vieram para ser expurgadas junto com toda essa ala violenta, radical e fundamentalista da internet. As pessoas que cometem esses crimes precisam responder por eles e acredito que irão. A gente teve agora o Oswaldo Eustáquio sendo preso mais uma vez, tendo a sua prisão domiciliar decretada, temos o Allan Terça Livre sendo investigado e vários outros integrantes dessa insanidade, que, aliás, eu nem gosto de chamar de insanidade, porque insanidade dá uma impressão de doença, de algo que a pessoa não tem controle. É um verdadeiro mau caratismo, banditismo, é realmente uma quadrilha que precisa, sim, ser combatida com toda força possível para que as vítimas parem de surgir e as que já são vítimas parem de sofrer. Me engajei por um motivo pessoal, mas também por enxergar o quanto isso é terrível para todo mundo. Fiz uma reunião com vários políticos, fiz reunião com o Angelo Coronel, que foi o relator do processo no Senado, com o Orlando Silva, com o Rodrigo Maia. Sempre no sentido de alertar que o projeto era muito ruim. Não adianta a gente querer combater as fake news com vigilantismo, perseguição e punitivismo contra a tia do churrasco, isso não vai adiantar absolutamente nada. A gente precisa chegar na origem, nos grandes mandatários, nos manda-chuvas desta articulação do ódio. Não são os nossos tios que têm que responder por isso. Eu falo nossos tios porque eu tenho um. Não é ele que tem que ser punido, ele precisa ser educado. A gente não tem educação midiática no Brasil, não tem educação de internet. Educação digital no Brasil nunca existiu, a gente deu a mais poderosa ferramenta já criada pelo ser humano na mão de todo mundo e falou "usa aí, não tem manual" . As pessoas, obviamente, fizeram tudo errado. Elas não foram instruídas a como fazer as coisas certas. No Brasil, em 2017, foi feita uma pesquisa e o resultado foi: "50% da população brasileira considera que a internet é o Facebook". E ninguém fez nada em relação a isso. Tem alguns órgãos do terceiro setor tentando educar pessoas, mas é muito devagar. Não houve nenhum interesse público por parte da política brasileira de fazer qualquer tipo de educação digital no Brasil. Esse tem que ser o norte quando se trata de um projeto contra fake news.
Um episódio marcante da sua trajetória foi a compra das HQs que seriam censuradas na Bienal do Rio. Por que decidiu interferir ali? O Crivella tomou aquela atitude nojenta e fundamentalista de censura, de querer classificar um beijo entre dois homens como um material impróprio. O beijo entre um príncipe e uma princesa não tem problema, até se a princesa estiver desacordada, aí tudo bem uma criança de três anos assistir. Mas se dois homens se tocarem tem que ser censurado. Isso nada mais é do que fundamentalismo religioso e é um absurdo. Então quando eu vi que ele iria censurar, pensei: "O que eu posso fazer para impedir que isso aconteça?". Bom, fui fazer o que estava ao meu alcance. A ideia era comprar aquelas HQs e distribuir, só que eu descobri que aquela HQ que tinha causado todo esse problema tinha, sei lá, três unidades na Bienal inteira. Era uma HQ para um público nichado, para maiores de 18 anos. Mas o Crivella tinha se enfurecido tanto que ele ia mandar recolher da Bienal todos os livros que tivessem qualquer flerte com a temática LGBT. Aquilo tinha passado de todos os limites, o que ia acontecer naquela Bienal ia ser um dos episódios mais trágicos da nossa democracia, ia entrar para a história. Mobilizamos a compra de todos os títulos que tivessem alguma temática LGBT e voluntários e pessoas que eu tive que contratar também, porque não teve voluntário suficiente, começaram a ensacar os livros e colocar o adesivo de "este livro é impróprio para pessoas retrógradas, preconceituosas, etc". Foi quando eu decidi fazer a montanha de livro e dar de graça para quem quisesse. A ideia nunca foi ganhar um protagonismo com isso, a ideia foi deixar os autores e os livros como protagonistas. Até por isso eu rejeitei todos os pedidos de entrevista na época. E isso foi um golpe muito duro para o Crivella. Naquele dia a polícia foi lá, só que os livros tinham sido distribuídos antes deles chegarem. Eu tenho muito orgulho do que aconteceu naquele dia porque a gente impediu um dos episódios mais terríveis da nossa democracia. Não fui eu sozinho, não quero esse crédito e nem preciso. Meu mérito foi ter tido a ideia e ter assinado o cheque, mas tudo foi executado por pessoas heróicas que estavam lá, que se colocaram em risco, porque a polícia poderia ter chegado a qualquer momento para impedir a distribuição gratuita dos livros, então todas aquelas pessoas são as verdadeiras heroínas dessa ação.
“A gente ainda não está falando o suficiente sobre como as redes sociais servem de gatilho para eventuais tentativas de suicídio”
Felipe Neto
Quais momentos da sua trajetória foram especiais pra você? Olha, eu acho que quando eu consigo furar a bolha do conteúdo do entretenimento e chegar na massa do povo brasileiro com uma mensagem de inclusão, com uma mensagem de combate à desigualdade, me bate um orgulho muito forte. Não é fácil fazer isso, foram algumas oportunidades em que eu tive essa chance. O episódio da Bienal, sem dúvida, é um dos maiores de todos, o episódio do vídeo para o New York Times foi também muito importante, era um posicionamento muito fundamental e que atingiu muitas milhões de pessoas. A capa do New York Times foi uma grande realização, sensação de dever cívico, de dever social. O preço que eu paguei por aquele vídeo do New York Times foi um dos maiores preços que alguém poderia pagar para fazer um posicionamento. Foi quando começou toda a campanha de difamação querendo me associar com pedofilia. O programa Roda Viva foi especial porque foi uma oportunidade de mostrar que eu não sou só um menino que faz vídeo para o YouTube, eu também sou um cidadão brasileiro que lê, que estuda, que tenta evoluir, que tenta aprender e que quer ter responsabilidade com o o conteúdo que produz.
O que é que te assusta? O perigo da violência física é real, é óbvio, não dá para negar. A violência digital eu temo muito menos porque eu sei que eu tenho armas para lutar contra. A extrema direita tentou de todas as formas me vincular com pedofilia, criaram um plano e executaram. Quando veio a polêmica do PC Siqueira, para eles foi perfeito. Eu tinha fotos de dez anos atrás com o PC de dez anos, então falaram: "Porra, perfeito, a gente já está na campanha, vamos vincular a imagem dele com a do PC, vamos botar a foto deles juntos e criar uma teoria de que ele teria um envolvimento com pedofilia". E não colou nem por dez minutos, porque a minha força de resposta é muito maior do que a força de ataque deles. Foi a primeira vez que eles tentaram destruir a imagem de alguém que tinha essa força de resposta. E óbvio que dói, óbvio que machuca, mesmo não tendo colado. Mas eu tenho força para destruir essas fake news a meu respeito. Mas quando vejo acontecer com outras pessoas que não tem essa condição, aí sim é que realmente bate desespero. Durante um tempo eu perdi a admiração pelo Jean Wyllys porque eu achei que ele tinha se radicalizado muito. Falei: "Pô, agora o cara cospe, grita"'. Até eu sentir na pele o que ele passou, só que com uma diferença: eu tinha armas, ele não tinha. Ali eu entendi que uma cuspida não foi nada, porque eu não sei como ele conseguiu se segurar, se aguentar para não partir para cima de verdade. Eu considero o Jean Wyllys um herói. Não concordo 100% com as coisas que ele diz ou faz, mas considero ele um herói só por ter sobrevivido. Essas vítimas que não tem condições de lutar com as armas que eu tenho são muito preocupantes, porque em qualquer momento alguém vai perder a vida.
“A extrema direita tentou de todas as formas me vincular com pedofilia”
Felipe Neto
Você tem um objetivo traçado, uma meta? Não. Todos os objetivos que tracei, eu atingi. Eu falo isso sem querer me gabar, é simplesmente porque é uma realidade. Eu lido com isso na minha terapia, porque chega um momento em que não há novos objetivos a serem traçados. Ser considerado uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela maior revista de todos os tempos talvez seja o ápice que alguém da minha posição pode atingir. Eu tenho muita felicidade com coisas pequenas. Quando eu saí na lista da Time, foi um choque. Mas eu não senti felicidade, é difícil de explicar. Foi tão surreal. Tem um antes e depois dessa revista Time na minha carreira, para sempre vai ter, mas o máximo que eu senti foi massagem de ego. Agora, quando eu vejo meu nome sendo citado em uma pesquisa, aquilo me dá uma sensação diferente. Quando eu vejo o meu trabalho sendo citado em um trabalho de doutorado, analisando a mudança da internet, isso me dá uma felicidade grande. Por exemplo, a vida inteira eu joguei o jogo Perfil. E aí, nessa última edição, eu virei uma carta do jogo. Aquilo me deu dez vezes a felicidade que a revista Time deu. Foi um dia em que sorri o dia inteiro pela felicidade de estar no jogo que eu joguei a minha vida toda. Sair nas palavras cruzadas me dá felicidade. Eu acho que, no fim de tudo, é o maior sonho de qualquer pessoa é deixar seu nome em algum lugar, deixar um legado. E sinto que eu sou capaz de fazer isso. Ainda não deixei, mas quero muito poder deixar um legado que seja de luta por uma sociedade mais justa, por mais pessoas incluídas e por mais pessoas com condições de disputar dentro de um mundo tão desigual.
O que mudou na internet nos últimos 10 anos? Para onde você acha que estamos indo? A tendência do ser humano é sair do ambiente real e se tornar digital. No ambiente digital a gente não precisa de corpo, a gente pode viver para sempre. E as pessoas vão querer viver para sempre. A partir do momento em que conseguirem fazer o nosso cérebro passar para dentro de uma máquina, nosso corpo vai se tornar inútil e a gente vai passar a viver em um ambiente digital, sem morte. É óbvio que eu estou falando de futuro que nós não vamos ver, mas é a tendência. A internet é um ambiente em transformação. Em um ano, muda tudo. Fazer uma previsão do que vai acontecer daqui a dez anos é tecnicamente impossível, porque a gente não sabe o que vai acontecer ano que vem. Eu não tenho a menor dúvida que a virtualização é o futuro e quem apostar nisso vai ganhar dinheiro. Há uma tendência do resgate das lives. Quem estiver fazendo streaming tem um potencial muito maior. Se eu tivesse que apostar em 2021, apostaria em streaming, lives e games.
“Não houve nenhum interesse público por parte da política brasileira para fazer qualquer tipo de educação digital no Brasil”
Felipe Neto
Mas e no aspecto social, como a internet vai impactar a política, a vida das pessoas? Quando a internet surgiu a gente viu um futuro muito lindo, quando veio a Primavera Árabe, começaram as manifestações organizadas pelo Facebook, pelo Orkut, as pessoas começaram a reivindicar direitos. Todo mundo falou: 'Puta merda, achamos a arma que vai combater a desigualdade no mundo'. E aí, quando a gente piscou e abriu o olho de novo, estava tudo cagado. O que foi a grande transformação do ambiente digital que pegou um potencial de futuro brilhante e transformou num gigantesco saco de lixo? As plataformas monopolizaram a comunicação, num oligopólio. Oligoporizaram a comunicação em ambientes fechados que priorizavam o lucro e o tempo de permanência dentro de uma plataforma e botaram isso na mão de robôs. Máquinas estão cagando se o que vai deixar a pessoa mais tempo na plataforma é um vídeo divulgando o amor ou um vídeo de uma decapitação. O robô não está vendo o vídeo, o robô está vendo o número. A prioridade algorítmica começou a priorizar aquilo que deixava as pessoas mais engajadas, e nada engaja mais do que o radicalismo, do que a polarização, do que o ódio. O amor nunca vai conseguir engajar tanto. A gente tem uma tendência de compartilhamento de tudo que nos gera angústia, raiva e que abastece as nossas necessidades de teorias conspiratórias, de explicações inexplicáveis, isso está super documentado em pesquisas. As plataformas já sabem do problema que causaram, mas elas não têm um incentivo necessário para causar grandes e profundas mudanças. Os governos estão desesperadamente tentando entender o que acontece, com políticos que vem da era analógica e que não entendem esse ambiente. Então a gente está numa fase de transição que vai levar um tempo até existir uma classe política mais digitalizada, com um entendimento maior disso tudo. O terceiro setor precisa ser mais convidado a participar pra gente ver reais mudanças. Enquanto isso, a minha previsão é pessimista, mas ela se tornou consideravelmente menos pessimista com a derrota do Trump. A derrota do Trump gritou ao mundo uma resistência da humanidade que eu não achei que a gente fosse ter precocemente. Eu tinha certeza que o Trump ia ganhar porque não deu tempo da gente corrigir os algoritmos, não deu tempo da gente corrigir o ambiente virtual. E aí a humanidade me surpreendeu de uma maneira que eu fiquei sem palavras, derrotaram o Trump. E ali eu vi que, embora a previsão seja pessimista, há de se ter esperança, porque o ser humano ainda é capaz de surpreender. A gente ainda é capaz de façanhas que sobrepõe as previsões frias. Acho que a gente vai piorar para melhorar, ainda vai ficar muito ruim, vão existir conflitos, vai ter luta armada, vai ter gente querendo resolver as coisas na bala. Mas eu acho que a gente vai sair dessa, a internet vai ser regulamentada, as coisas vão passar a ser mais controladas. E por controle eu digo coleta de dados, quantos cookies são usados, como eles usam os nossos dados, de que forma eles usam tagueamento dos nossos interesses para fazer publicidade e recomendação. Quando tudo isso estiver bem amarrado, talvez a gente possa ter um ambiente virtual seguro.