Ativistas no divã
Haters, saúde mental, likes e aprendizados. Quatro mulheres que usam as redes sociais para sua militância dividem o ônus e o bônus de encarar a arena digital
Mesmo sem ter acesso à sua lista de seguidores, podemos afirmar: você provavelmente segue alguma ativista digital ou formadora de opinião que debate questões sensíveis da atualidade no Instagram ou no Twitter. Acertamos?
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Pois bem: convidamos quatro mulheres que estudam assuntos relacionados a gênero, raça, política e outras temas (hoje considerados) polêmicos para refletirem sobre as dores e delícias de dar a cara a tapa nas redes sociais. Vamos nessa?
Stephanie Ribeiro
26 anos, arquiteta e urbanista
“Eu sempre falei sobre gênero, raça e assuntos que se interseccionam com essas questões. Não é que eu queira necessariamente influenciar pessoas, são coisas em que eu acredito e que compartilho. Comecei a ter mais seguidores a partir de 2012, quando estava na universidade e passei a escrever meus primeiros textos em blogs e redes sociais.
“Eu entendo lacração como um comportamento de determinados grupos que precisam de visibilidade para suas reivindicações. ”
Stephanie Ribeiro
De forma geral, rola uma cobrança para que eu corresponda a tudo que imaginam, as pessoas muitas vezes não entendem minha subjetividade. Por exemplo, às vezes posto foto com meu cachorro e questionam por que eu tenho um cão de raça. Elas acham elitista ou incoerente com as minhas pautas, possuem certezas sem ao menos me conhecer.
As pessoas têm estereótipos muito definidos sobre o que é ser uma mulher negra, os quais não me contemplam. A gente tem vontades e interesses múltiplos. Para mim, falar que eu gosto de decorar minha casa, comentar uma peça de teatro ou falar sobre questões de gênero mostra minha humanidade. É importante diversificar temas, até para que outras mulheres negras possam se sentir confortáveis consigo mesmas.
Às vezes, você fala uma coisa num momento de revolta ou porque acha necessário, e não para lacrar. Para muita gente, lacração é vista como um discurso feito para aparecer, para encerrar o diálogo. Eu entendo lacração como um comportamento de determinados grupos que precisam de visibilidade para suas reivindicações. Isso pode passar pelo discurso e modo de falar.
As pessoas negras foram colocadas no lugar de perigosas, que precisam ser controladas porque não sabem o que estão fazendo ou falando. E, se vejo que é hater e não me sinto à vontade com o comentário, bloqueio. Claro que vou errar, acertar, mas busco ser coerente com o que acredito. Isso é muito mais importante do que números.
Fazer terapia me ajuda muito, além de passar momentos fora da internet. O ônus disso tudo é ter que lidar com pessoas que, só porque viram dois posts meus, se sentem no direito de dizer como eu deveria me comportar. O bônus é conseguir me conectar com pessoas que passam por coisas parecidas, com quem posso criar pontes.”
Joice Berth
43 anos, escritora, arquiteta e urbanista
“Comecei com o ativismo on-line entre 2015 e 2016, mas meu trabalho como escritora, arquiteta e urbanista tem uma pegada ativista anterior às redes. Sou feminista, negra, decolonial (uma linha que propõe o rompimento com as dominações eurocêntricas que definiram as relações de poder) e passeio com meu trabalho pela psicanálise, filosofia, sociologia e cultura.
Não escrevo nada porque eu quero ‘causar’ ou ‘lacrar’, escrevo coisas baseadas no que eu estudo. Minha intenção é levar para as pessoas informações que elas não têm oportunidade de acessar pela mídia hegemônica. Existem influenciadores que estão querendo invadir esse território da intelectualidade, mas sem bagagem cultural e intelectual para isso. Às vezes, falam a mesma coisa que você, só que de um jeito mais chocante, para chamar atenção.
Se você quer informar e estimular a reflexão crítica, não pode se iludir com like e popularidade. Não posto e fico vendo quem tá curtindo. Isso sempre me pareceu uma armadilha. A repercussão é legal, mas, acima de tudo, tem o compromisso comigo mesma, de fazer aquilo que acredito.
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Às vezes, você está discutindo alguma coisa e uma pessoa te ofende. Isso já me enlouqueceu muitas vezes, mas hoje consigo abstrair. Pessoas que estão interessadas na morte do seu corpo físico ou sociopolítico são muito bem articuladas com o sistema de retrocesso. O hater é um posicionamento político. Ele quer te infernizar, te desestruturar, quer vencer na política atacando o seu emocional.
“Se você quer informar e estimular a reflexão crítica, não pode se iludir com like e popularidade. Não posto e fico vendo quem tá curtindo.”
Joice Berth
Apesar de ser pressionada a comentar sobre tudo, não me deixo guiar por essa ansiedade das pessoas. Minha prioridade é a saúde mental, senão, começam a colonizar minha vida. Para relaxar, vejo novela, ouço música, corro no parque, fico off-line.
Vou continuar fazendo esse trabalho enquanto tiver força e meus orixás me guiarem. Um dia você toma pedrada de um hater e, no outro, recebe uma mensagem no direct de uma mãe falando que foi numa palestra sua com as filhas e elas disseram que querem ser como você. Eu fico muito emocionada.”
52 anos, escritora, roteirista e jornalista
“Em 2008, um amigo fez um perfil no Twitter pra mim porque acreditava que eu precisava espalhar as coisas que falava. Em pouco tempo, minhas publicações, que eram principalmente sobre futebol, começaram a ecoar. Hoje, tem sido muito difícil falar sobre outra coisa que não o protofascismo brasileiro, que consome as 15 horas que eu fico acordada. Além disso, falo sobre o que me mobiliza: política, Corinthians, temas ligados à mulher, ao feminismo. É realmente o que faz meu coração bater mais rápido.
“A verdadeira revolução agora é a paz de espírito. É isso que a gente tem que buscar, já que as coisas não vão melhorar imediatamente.”
Milly Lacombe
Ao falar de política na internet, é comum atrair muitos haters. No começo, eu dava retweet, mas entendi que o que eu queria era apenas uma torcida que viesse em minha defesa. Hoje, só bloqueio; se contém machismo ou algum tipo de preconceito, não quero dialogar. A menos que seja uma noite de lua cheia e eu esteja de TPM. Aí saio dando voadora.
Tem coisas que escrevo e, antes de postar, penso que, embora realmente acredite naquilo, o post é puro ódio. E elas acabam indo para o universo dos tweets não postados. Mas se for apenas por medo de xingamentos, eu posto. E não leio as reações. Perco os elogios, mas me protejo do ódio. A verdadeira revolução agora é a paz de espírito. É isso que a gente tem que buscar, já que as coisas não vão melhorar imediatamente.
Se eu fosse dar um conselho para alguém que começa nesse caminho, diria para ler muito, porque qualquer opinião que não seja fundamentada em conhecimento vai fazer você apanhar. Ainda mais sendo mulher. Para qualquer brecha que der, vai vir uma horda de machistas lunáticos xingar você, e, às vezes, com alguma razão. Mas, mesmo quando eventualmente estão certos no conteúdo, nunca estão na agressividade covarde.
Continuo porque gosto de compartilhar o que leio e estudo, causar afeto empático, unir as pessoas em uma teia de carinho e de respeito. E, ao contrário de quando comecei, agora é preciso gritar contra tantos absurdos. Ficar calada é tomar partido.”
31 anos, estilista e youtuber
“No início de 2018, viralizou um vídeo em que, a partir de um relato da minha filha, falei sobre como a solidão da mulher negra começa na infância. Foi o embrião para o meu canal. Hoje, proponho conversas gostosinhas para falar com leveza e responsabilidade sobre temas urgentes e importantes para que todo mundo junto construa um mundo mais justo, sobretudo para as mulheres negras.
Por ser uma delas, muitas vezes me sinto pressionada a ter opinião para tudo relacionado ao racismo. Nessas situações, costumo dizer que esse é um problema de toda a sociedade. Logo, qualquer pessoa tem que se posicionar. Por isso, dependendo da situação, relevo a pressão e falo: ‘Galera, não vai rolar. Tchau, beijo, até amanhã’.
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Já quis apenas vencer uma discussão nas redes sociais, mas hoje quero que meu conteúdo estimule novas conversas. Quando uma pessoa passa a fazer ativismo na internet, fica mega fervorosa, faz textão e deseja que todos sejam iguais a ela. Depois, passa a querer dialogar com a tia que fala coisas preconceituosas. Hoje, o ápice da alegria e do reconhecimento é ver meu conteúdo na sala de aula, seja em turmas de alunos fazendo stories seja com professoras usando como material didático.
“Já quis apenas vencer uma discussão nas redes sociais, mas hoje quero que meu conteúdo estimule novas conversas.”
Ana Paula Xongani
Um fato inusitado é que não tenho haters. Suponho que, como proponho uma discussão em que cada um pode falar o que sente, fica difícil odiar. Meu vídeo é quase uma isca para o hater, porque sou capaz de falar sobre racismo sorrindo. Chamo meu conteúdo de ativismo afetivo. Mesmo assim, para lidar com as pressões, faço terapia e fico com meus amigos da época anterior à exposição. Também me fortaleço com a minha família e minha comunidade negra, nos meus espaços de introspecção, os quais chamo de quilombos urbanos. O maior e melhor processo de cura é quando estou entre mulheres negras.
Para mim, este trabalho é uma continuidade. Sou fruto de mulheres que lutaram para eu ser o que sou hoje e preciso continuar esse legado, no qual a internet é apenas um meio. Meu objetivo é um mundo melhor para as próximas gerações. Mais de um ano após começar a produzir conteúdo na internet, aprendi que é importante ter um objetivo fora das redes sociais e acreditar no conhecimento empírico. Só você sabe o que sabe, só você viveu o que viveu. Isso vale muito.”
Créditos
Imagem principal: Alex Batista
Alex Batista