Os roteiros de Luh Maza

por Letícia Ferreira

Primeira transexual a escrever roteiro para uma série de TV, ela fala sobre ”Sessão de terapia”, sua transição tardia e o mercado de cinema

Há 20 anos, a dramaturgia é a casa da roteirista e diretora Luh Maza. A carioca começou como atriz aos 12, mas as nuances da linguagem, da voz e das expressões dos personagens que ela interpretava logo a seduziram para descer do palco e assumir outro papel. Aos 16, já escrevia e criava suas próprias peças. Entre São Paulo e Rio de Janeiro, a carreira na dramaturgia cresceu nos roteiros e direções de obras para o teatro. 

Hoje, aos 32, Luh é autora de mais de 15 peças de teatro como “Três T3mpos”, “Restos”, “A Memória dos Meninos” e “Carne Viva”, dirigidas por ela. Algumas das suas obras estão na Coleção Primeiras Obras da Imprensa Oficial, indicada ao Prêmio Jabuti de Literatura 2010.

O tema da transexualidade, que permeia alguns de seus trabalhos, vem da sua própria vivência. Seu processo de transição de gênero começou em 2017 e aprofundou as pesquisas da jovem dramaturga sobre raça e gênero, questões que sempre fizeram parte dos seus trabalhos. "Se por um lado algumas coisas que eu fazia antes eu deixei de fazer, por outro surgiram convites muito positivos, para falar e para trabalhar em cima desses temas", conta a roteirista.

LEIA TAMBÉM: Ouça o Trip FM com Selton Mello, protagonista de Sessão de Terapia

Este ano, Luh republicou o texto da peça "Carne Viva" na antologia Dramaturgia Negra, da Funarte. O texto está em outros livros no Brasil e na Europa, mas foi a primeira vez que assinou esta peça com seu nome após a transição.

A convite do diretor artístico Hugo Possolo, a roteirista também escreveu e dirigiu a peça "Transtopia" no Theatro Municipal de São Paulo para o festival Brasil Cena Aberta. Em meio a tantos trabalhos, Luh fez seu primeiro roteiro para a publicidade no projeto 35, que conta a história de um casal trans negro e tem a interpretação da cantora Liniker na música Forever Young.

Agora, ela estreia como primeira roteirista trans da televisão brasileira na 4ª temporada da série Sessão de Terapia – que estreia nesta sexta-feira, 30, na GloboPlay depois de cinco anos de hiato –, escrevendo a história de um homem negro, interpretado pelo ator David Junior,  que vive em conflito com a sua identidade ao ser questionado pela mulher que ama, uma ativista da causa negra.

play

Para ela, este papel pioneiro não é um lugar de conforto. "Por que demorou tanto? O que afastou tantas artistas trans maravilhosas desse espaços? É tempo de celebrar a conquista e de questionar a estrutura que fez esta conquista chegar só agora".

Aqui, ela fala sobre o começo da sua carreira na dramaturgia, seu interesse por questões de gênero e raça, a transição tardia – e o seu trabalho em Sessão de Terapia:

LEIA TAMBÉM: Como é ser uma atriz pornô trans no Brasil?

Tpm. Qual o papel da dramaturgia na sua vida? 

Luh Maza. Entrei em contato a dramaturgia muito cedo e ela se tornou minha válvula de escape. Eu comecei a escrever ainda no Rio, parei de atuar e  fiquei totalmente focada na escrita e na direção. Depois da transição, recebi um convite de um grupo de São Paulo chamado Satyos para voltar a atuar em um espetáculo que justamente discutia as questões de gênero. De alguma forma, sentia que o teatro ia me ajudar neste processo de reconhecimento, de afirmação – e foi o que aconteceu. 

Como foi seu processo de transiçãoEu soube desde muito cedo. Desde criança, tinha uma percepção de que eu não me identificava neste universo. Na minha juventude, eu comecei a vivenciar a minha questão por meio da prática do crossdressing, quando que você usa roupas como uma expressão artística. Mas, depois de 10 anos nessa prática, eu percebi que isso não me bastava, a minha essência estava em como eu estou hoje e não como eu estava dissimulando antes. E, nesse momento, entendi que não dava mais. Com 30 para 31 anos, decidi me colocar publicamente nesse lugar, nessa questão de gênero. Durante o processo, eu também estava entendendo qual seria essa identidade. Primeiro me entendi como um gênero fluído ou como não-binária. Foi justamente o contato com os colegas de cena do espetáculo em São Paulo que me fez perceber que, na verdade, eu me identificava como uma mulher trans. 

LEIA TAMBÉM: Aplicativos de terapia on-line funcionam? Testamos dois, vem ler!

Como foi o convite para escrever para Sessão de TerapiaA Jaqueline Vargas, que é autora da série e criadora da versão brasileira, me convidou para escrever. Não por eu ser trans, mas pelo meu histórico como dramaturga. Venho do teatro, tenho quatro livros publicados, tenho uma história antes que eu consegui construir porque eu tive uma transição tardia. Isso me possibilitou ter acesso a muitos lugares, mesmo com alguma resistência por eu ser uma pessoa negra

O que esse trabalho trouxe para a sua vida? Poder levar para a série a discussão racial, para mim, foi muito forte e poderoso. Trabalhar essa questão pelo viés de gênero, primeiro falando sobre uma masculinidade negra, com um complemento ao feminismo negro, foi muito poderoso. É um personagem que transita um pouco nessa discussão. É levar o conteúdo que nós trabalhamos no movimento negro, na produção intelectual sobre negritude na universidade, transformando esses conceitos em drama, em ação, em personagem. E faltam esses personagens negros com complexidade. É um olhar que a televisão ainda está em dívida. 

LEIA TAMBÉM: Angela Davis no Brasil

Como foi a experiência de escrever a peça Transtopia para o Teatro Municipal de São Paulo? Eu escrevi e dirigi, convidei 10 artistas trans de São Paulo para atuarem. É um trabalho que me orgulha muito porque pela primeira vez uma produção, mesmo que uma produção pequena, encomenda uma peça de uma escritora trans para o Teatro Municipal de São Paulo.  Foi muito legal poder levar esta discussão para dentro do palco e mais legal ainda foi ver a plateia tomada por nós, pessoas trans, queers. Uma obra que falava sobre o futuro distópico onde a nossa identidade que hoje em dia nós celebramos tanto seria perseguida. De alguma forma, parece que esse fantasma da repressão do conservadorismo está nos rondando institucionalmente neste momento do país, então eu queria falar sobre isso e construir essa obra com atrizes trans e uma compositora trans escrevendo a música. 

Você vê este seu interesse por questões de gênero após a transição e, principalmente,  esses convites específicos com um olhar de gênero como algo que te limita? Eu acho que não me limita. Sessão de Terapia, pra mim, é o melhor exemplo disso. Eu não fui convidada para escrever uma personagem trans – mas adoraria e espero ainda ter essa oportunidade. Eu não estou falando sobre a minha identidade, eu estou falando sobre a identidade em que eu não existo, que é a masculina. Essa especialização, digamos assim, nas discussões de gênero, não me limita. Quero falar sobre outras coisas, claro, mas hoje em dia é tão importante. Nós temos tanto a discutir, a naturalizar, a compartilhar as nossas vivências, a mudar o imaginário das pessoas a respeito de nós mesmas, eu acho necessário. Quando surge algum convite com a questão trans, eu tento olhar com essa positividade. 

LEIA TAMBÉM: Amara Moira – mulher trans, doutora em literatura e ex-prostituta

Como você vê este lugar de ser a única mulher trans em vários momentos da sua vida? Eu acho que é necessário abrir esses espaços, é necessário abrir essa frente para que outras e outros venham na sequência. Muitas vezes é um processo solitário, é um processo pedagógico de ensinar o outro já que eu estou em espaços que a presença de corpos trans não é comum. É sempre um processo realmente de educar as pessoas sobre essas questões. Nunca é fácil, não é uma conquista que cai do céu, mas eu sempre penso que é necessário. Vai ser difícil agora, mas não será tão difícil para as outras que vierem depois de mim. Falar que sou a primeira não é só para celebrar, é pra lembrar criticamente o quanto demorou para isso acontecer.

Créditos

Imagem principal: Vitor Rosa/Divulgação

fechar