Um livro de fotografias amadoras revela um lado B da história oficial do exército alemão durante a Segunda Guerra
Com vestidos, bustiês, sutiãs com enchimento e maquiagem, homens travestidos de mulheres posam para câmeras amadoras fazendo caras e bocas numa suposta encenação descontraída. O clima que se vê registrado nessas fotografias em preto e branco, algumas já embaçadas pelo tempo, é de refúgio e libertação contra preconceitos e julgamentos de uma época passada – fato que por si só já despertaria a curiosidade de um observador.
Quando e onde essas fotos teriam sido tiradas? Ao examiná-las detalhadamente, é possível ver o emblema nazista no uniforme de um dos atores ou até mesmo o símbolo da suástica ao fundo em um dos cenários. Assim, essa história vai ganhando contornos surreais: no exército de um regime que perseguia, punia e até assassinava cruelmente homossexuais, havia soldados nazistas em abraços íntimos com outros camaradas travestidos de mulheres. As fotografias históricas desse fenômeno oculto nos registros oficiais foram reunidas por Martin Dammann no livro Soldier Studies: Cross-dressing nas Forças Armadas.
Publicado este ano na Alemanha, Soldier Studies é resultado de quase duas décadas de trabalho de Martin Dammann, que é colecionador de fotografias e também fotógrafo. A serviço do Arquivo de Conflito Moderno de Londres, ele viaja pelo mundo em busca de álbuns particulares de fotos de guerras. Entre diversos temas banais registrados por lentes amadoras que encontrou, um em especial lhe chamou a atenção. “A primeira foto crossdressing de um soldado alemão que vi considerei como algo louco, uma exceção. Mas a medida que iam aparecendo cada vez mais fotos desse tipo, ficou claro que isso foi um fenômeno comum nos álbuns de soldados alemães e ilustra uma parte desconhecida da Segunda Guerra”, diz o autor.
Das quase 300 fotos que reuniu, Martin selecionou 118 para compor uma obra que desconstrói qualquer imagem formada previamente pela história oficial daqueles que deveriam ser símbolo de uma masculinidade imaculada, severa e rígida a serviço de um regime de extermínio. O que as lentes oficiais desse regime decidiram não registrar para não arranhar a imagem de seus “mitos”, as amadoras capturaram e agora revelam uma nova narrativa possível sobre as relações entre os soldados.
Tais fotos foram tiradas em encenações teatrais organizadas pelas próprias tropas em seu momento de lazer e retratam muito mais que um simples exercício jocoso. “Todo um caleidoscópio de estados emocionais é encontrado nessas fotos: desejos por mulheres, por homens, por ser mulher, de estar em outro lugar, de ser outra pessoa. Parecem ficar de lado, ainda que por momentos curtos, medos não somente do próprio e incerto destino, mas também medos e convenções sociais”. No entanto, Dammann observa que o crossdressing (termo em inglês que indica o ato de alguém se vestir com roupa ou acessórios típicos do sexo oposto) não foi uma prática exclusiva das tropas nazistas. “O fenômeno de soldados que se exibem com roupas de mulher é encontrado em registros fotográficos de todas as nações e conflitos”, escreve o autor no prefácio do livro.
Na Segunda Guerra Mundial, assim como na Primeira Guerra, havia grandes esforços para distrair e aliviar a pressão existencial dos soldados em combate através de todo tipo de entretenimento, como peças de teatro. A finalidade disso era restabelecer a força de combate desses homens. Mas, nessas encenações oficiais, não há registro de crossdressing dos personagens. No entanto, havia um outro tipo teatro do front, organizado e encenado pelas próprias tropas das Forças Armadas. Eram nesses espetáculos que soldados trocavam suas fardas por roupas, adereços e maquiagens femininos para dar vida a personagens femininas.
Eram naqueles momentos teatralizados que soldados homossexuais podiam se mostrar sem medo. Ali, deixavam sua função de algozes para compartilhar saudades, anseios e desejos reprimidos. Nessas teatralizações das relações humanas, podiam incorporar o papel que quisessem em jogos homoafetivos e, sobretudo, podiam cruzar os limites do “proibido” pela ideologia do Nacional-Socialismo que condenava e punia tudo o que colocasse em questão a masculinidade de seus soldados.
Depois de quase 80 anos, o livro revela um lado B da história oficial do período e traça ligações com o nosso tempo. Nenhum mito é indestrutível e a história não perdoa. Pode tardar o tempo que for, mas haverá sempre outra versão da narrativa da “história oficial” a ser contada por olhares amadores. Um regime autoritário ou exterminador pode até conseguir reprimir por um tempo as paixões humanas, mas não consegue eliminar a sua essência. Elas resistem e, num lapso de descuido, vêm à tona. Além disso, essas fotos abarcam uma discussão maior sobre o papel dos gêneros, combate à homofobia e respeito à orientação sexual.
“Pode-se simplesmente encontrar nas fotos a verdade que todos já sabemos. Mais interessante é, no entanto, estarmos preparados para nos deixarmos surpreender quando as observamos”, segundo Dammann. Cabe a cada observador tirar suas próprias conclusões dessa sutil rebelião àquilo que não tem governo e nem nunca terá, àquilo que não tem vergonha e pelo qual nenhuma pessoa deveria ser julgada.