Das margens às lentes: retratando vivências trans

por Dandara Fonseca

O projeto Afetividades Ordinárias, desenvolvido pelo fotógrafo João Bertholini com curadoria de Neon Cunha, busca humanizar corpos não cisgênêneros 

Mostrar a todos não só que pessoas trans existem, mas contribuir para o reconhecimento da humanidade que foi historicamente negada a elas. No país que mais mata transexuais no mundo, esse é, segundo o fotógrafo João Bertholini, o objetivo do projeto Afetividades Ordinárias. Adaptada para o ambiente virtual por conta da pandemia, a exposição lançada no último dia 20 tem curadoria da artista, ativista e publicitária Neon Cunha e reúne retratos de pessoas não cisgêneras em suas vivências cotidianas. 

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João conta que a ideia do projeto surgiu em 2013 para refletir sobre questões ligadas à imposição de gênero através de fotografias de pessoas LGBTQIA+. Foi no processo de busca dos personagens que ele conheceu Neon. "Focar o projeto nas pessoas não cisgêneros tem muito a ver com o olhar da Neon como curadora, mas também com o fato de entender que esse era o caminho mais urgente", conta o fotógrafo, que entende o retrato, principalmente os cliques mais cotidianos, como uma forma de falar sobre as pessoas. 

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Para Neon, andar pelas ruas e visitar casas de acolhimento para fotografar pessoas fora do campo da cisgeneridade foi um processo muito potente e de extrema sensibilidade. "Fico arrepiada de lembrar quantas vezes eu – e muitas das minhas, da geração que eu pertenço, marcada pela negação da possibilidade – foram rejeitadas para o registro", diz. "E os poucos que existem vejo que tem um lugar da dor. É muito bonito essas pessoas, tratadas muitas vezes como as invisíveis, como não dignas, terem um retrato tão honesto." 

Em meio ao emaranhado de sentimentos que permeiam essa experiência que durou mais de seis anos, Neon também afirma existir uma sensação de celebração. "Ver pessoas trans, principalmente mulheres negras, vivendo na rua, ainda que muitas em situação de extrema pobreza, é muito forte para mim. Ver que elas podem viver e frequentar esse espaço de extrema exposição, que nunca pudemos sequer habitar, é muito tocante. Antes seríamos executadas, teriam sumido com a gente", diz. Para ela, essa possibilidade de coexistir já representa um grande avanço.

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Como forma de ampliar a temática da exposição, João Bertholini também promoveu, nos dias 27 e 29 de janeiro, as oficinas “Olhar o Outro – Retrato e Afetividade”, que falam da importância do retrato e estimulam os participantes a se fotografarem, ensinando técnicas com os materiais que estiverem à disposição. Os próximos passos, ele conta, é criar um formato presencial para a exposição, que hoje é um site com galeria, zine e um vídeo sobre o processo. "Eu fico muito feliz quando as pessoas que estão nas imagens me falam o quanto gostaram, mas não pode-se esquecer que o ambiente online ainda é excludente", diz João. 

"Projetos como esse, principalmente vindos de alguém como o João – homem, branco, cis, que seria o epicentro da escala social só pela aparência –, nos fazem pensar na importância de abrir mão de certos privilégios para que pessoas marginalizadas ocupem um lugar de centralidade na história e possam avançar", diz Neon. "Espero que as pessoas se vejam e revejam a partir dessas celebrações ordinárias do afeto", conclui. 

Créditos

Imagem principal: João Bertholini

João Bertholini

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