Da vida real de Luisa Marilac a um mundo em que é possível escolher o sexo do dia para a noite, lançamentos biográficos e ficcionais de autores e autoras transgêneros chegam às livrarias do Brasil
Uma nova onda de literatura feita por autores transgêneros vem ganhando destaque, especialmente nos Estados Unidos. Desta vez, não se trata dos tradicionais livros de memórias ou teóricos que discutem e explicam o tema, mas de uma produção ficcional ou que segue a tendência dos romances com toque autobiográfico.
Um dos destaques de 2018 foi Akwaeke Emezi, que lançou Freshwater, um romance sobre uma garota nigeriana que tem o corpo dominado por espíritos malévolos – a tradução chega ao Brasil em julho. Esses seres a fazem ter de lidar com transtornos alimentares, automutilação e crises de identidade. Após o lançamento, Akwaeke – que nasceu mulher na Nigéria, mas se considera não-binária (nem homem nem mulher) – foi assunto para matérias da imprensa americana em que relatou a cirurgia com que, aos 28 anos, retirou útero, ovário, trompas e os seus motivos para essa escolha.
Em outro título, Confessions of the Fox (2018), o personagem central muda seu corpo e orgãos sexuais de acordo com o tipo de atenção que deseja atrair. O autor, Jordy Rosenberg, é professor de literatura e estudos de gênero na Universidade de Massachusetts.
Apesar desses títulos serem categorizados como “literatura transgênero” pela mídia norte-americana, a doutora em crítica literária pela Unicamp e autora do E se eu fosse puta (2016) Amara Moira questiona essa ideia. “Não existe literatura transgênero. Existe literatura de autoria trans – que não necessariamente trata das nossas experiências – e obras que trazem personagens trans. É importante perceber que raramente há apenas pessoas trans numa obra, o que faz com que essa designação se torne também uma exotificação do nosso grupo”, diz à Tpm.
E, embora Freshwater tenha ocupado a lista dos cem livros mais notáveis de 2018 segundo o jornal The New York Times e homenageado pelo 2018 National Book Foundation 5 Under 35, que premia jovens escritores, a figura e as questões de Akwaeke vêm recebendo tanto ou mais audiência do que o título que ela lançou. “A produção autobiográfica de autores transgêneros talvez seja a que chame mais atenção, sobretudo porque a sociedade ainda acredita que é só sobre isso que temos propriedade para falar: sobre nós, nossas vidas sofridas. Mas quando analisamos com mais cuidado vemos que essa produção é bem mais diversa”, defende Amara.
No Brasil, apesar de haver títulos que vão além dos livros de memórias, é especialmente essa categoria que deve ocupar as baias de lançamentos das livrarias no próximo semestre. Para quem achava que Luisa Marilac estava numa pior, ela acaba de lançar Eu, Travesti, autobiografia em que a autora de um dos memes mais icônicos dos últimos anos e também vítima de tráfico sexual, escreveu em parceria com a jornalista Nana Queiroz.
Já a psicanalista mineira Leticia Lanz relata em Ser Mulher Faz de Mim um Homem muito Melhor, que será lançado no segundo semestre, seu processo de readequação de gênero e sua relação com a família. Casada e com três filhos, só aos 50 anos ela assumiu uma nova identidade como mulher. Além de sua trajetória, o livro também vai trazer uma série de poesias produzidas por ela.
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O autor carioca João W. Nery (1950-2018), primeiro transexual masculino a passar pela cirurgia de redesignação sexual no Brasil, em 1977, escreveu um segundo livro, Velhice Transviada – o primeiro foi Viagem Solitária (2011). Desta vez, pesquisa a vida de transgêneros na terceira idade. João faleceu ano passado, aos 68, e o livro chega às livrarias em agosto. “A produção biográfica abre caminhos para que se publique mais literatura de ficção escrita por pessoas trans e para que essa população possa se fazer mais presente socialmente”, diz à Tpm Daniela Duarte, editora do livro de Nery. “Até porque, como o livro do João informa, a expectativa de vida dessas pessoas no Brasil é de 35 anos, o que mostra uma falta de inserção completa na sociedade”, diz sobre o fato de ainda haver poucos títulos de autores trans publicado por grandes editoras.
Amara, que tem uma pesquisa ampla sobre a produção de autores e autoras transgêneros, destaca títulos lançados por editoras independentes na literatura ficcional. Entre os mais recentes está A Revolta dos Feios (2018), da escritora brasiliense Luana Morena, em que um dançarino, vítima de bullying, convoca outras pessoas fora dos padrões para organizar uma revolução social. Apesar de não tratar exatamente da experiência de ser transexual, traz questões que envolvem o tema. “Nossa vida segue sendo pautada por padrões de beleza e de gênero, razão pela qual escrevemos tanto sobre isso. Quanto mais a sociedade se acostumar com a nossa existência, menos teremos que trazer essa temática de forma escancarada em nossas obras”, prevê Amara.