Logo Trip

As bruxas estão vivíssimas

Fundadora da escola de bruxaria La Reina, Camila Eiroa revela os mistérios da bruxaria moderna

Foto Yan Phelippe

Foto Yan Phelippe


Por Camille Mello

em 31 de outubro de 2025

COMPARTILHE facebook share icon whatsapp share icon Twitter X share icon email share icon

Hoje é Dia das Bruxas. E, entre chapéus pontudos e maquiagens de Halloween, vale lembrar: as bruxas existem e não estão só nas fantasias ou nos filmes de terror. Há quem não as leve a sério, pero que las hay, las hay, como diz o ditado espanhol.

Por muito tempo, a imagem da bruxa foi distorcida, associada a práticas demoníacas – não a toa, muitas mulheres foram perseguidas, torturadas e assassinadas na Idade Média sob esse rótulo. Mas as fogueiras da Inquisição não conseguiram apagar essa tradição e hoje há quem reivindique a bruxaria como prática política e social, uma ferramenta de emancipação e acolhimento para quem historicamente foi deixado à margem. “A bruxaria moderna é diversa e reúne diferentes vertentes. Ela valida nossa existência, nosso corpo e nossos desejos como sagrados. Muitas bruxas fazem um ativismo mágico, ajudando pessoas a se libertarem de lugares de opressão. A bruxaria não crucifica ninguém”, diz a jornalista e bruxa Camila Eiroa.

As Bruxas estão vivíssimas, por Camila Eiroa, La Reina / Foto Yan Phelippe
Desde 2015, a jornalista e terapeuta holística Camila Eiroa ensina e pratica uma bruxaria feminista, anticapitalista e inclusiva na escola La Reina / Foto Yan Phelippe

Em 2015, ela criou a La Reina, escola de bruxaria que desde 2020 tem sede no bairro de Pinheiros, em São Paulo (SP). Lá, a terapeuta holística ensina e pratica uma bruxaria feminista, anticapitalista e inclusiva que não se contenta em queimar incensos, mas queima estruturas. “Temos um coletivo interno formado majoritariamente por mulheres, mas há também pessoas não binárias e de diversas idades, dos 20 aos 60 anos. Prezamos por uma bruxaria feminista, inclusiva, com consciência de classe, gênero e raça”, diz.

As Bruxas estão vivíssimas, por Camila Eiroa, La Reina / Foto Yan Phelippe
A escola de bruxaria La Reina em São Paulo atrai pessoas de diversas faixas etárias / Foto Yan Phelippe

Desde pequena, Camila percebeu a potência de uma conexão com o mundo além do visível. “Quando eu tinha seis anos, meu pai morreu e fui morar com minha mãe e minha avó. Ela cuidava do jardim, tinha uma relação com a terra e, embora fosse católica, mantinha contato com a tradição da Galícia, de onde veio a família materna. É de lá o ditado: No creo en brujas, pero que las hay, las hay.” Foi na adolescência que se entendeu como bruxa, guiada por revistas, lojas esotéricas e personagens como a Bruxa Keka e a Cuca. Comprou seu primeiro tarô, estudou e juntou espiritualidade e militância política.

As Bruxas estão vivíssimas, por Camila Eiroa, La Reina / Foto Yan Phelippe
“Qualquer pessoa que treina, estuda e se dedica pode ser uma bruxa”, diz Camila Eiroa / Foto Yan Phelippe

Para Camila, ser bruxa não tem relação com dons sobrenaturais: “A bruxaria é um caminho de dedicação e estudo, se você seguir nele, você está pronta para descobrir os mistérios e ser uma bruxa”. Mas, no fim, a essência da bruxaria continua a mesma desde a Idade Média: reconectar-se com a natureza, compreender seus ciclos e viver em harmonia com eles. Esse é o elo entre as bruxas de ontem e as de hoje. “Somos parte da natureza e seguimos seus ciclos: o recolhimento do inverno, o florescer da primavera, a força do verão. Honrar esses movimentos nos faz repensar consumo, hábitos e posicionamentos políticos”, diz Camila.

As Bruxas estão vivíssimas, por Camila Eiroa, La Reina / Foto Yan Phelippe
“A visão cristã distorceu completamente o que era a verdadeira prática das bruxas”, diz Camila Eiroa, La Reina / Foto Yan Phelippe

Na conversa com a Tpm, Camila explica que, apesar de valorizar o feminino como algo sagrado, a bruxaria não deve ser confundida com o conceito de sagrado feminino. “Na minha opinião, o sagrado feminino acabou virando um mercado elitizado e higienista, que celebra os ciclos da mulher sem olhar para os aspectos marginalizados. A bruxaria, por outro lado, sempre ocupou as margens. Desde a Idade Média, quando mulheres pobres eram alvo da caça às bruxas, a bruxaria segue sendo um espaço espiritual de acolhimento: das mulheres cis e trans, da população negra e LGBTQIA+”

TpmComo você se interessou pela bruxaria e passou a trabalhar com ela?
Camila Eiroa. Quando eu tinha seis anos, meu pai morreu e fui morar com a minha mãe e minha avó, com quem eu passava a maior parte do tempo. Ela cuidava do jardim, tinha uma relação com a terra e embora fosse católica não praticante, mantinha contato com o sacerdote da Galícia, uma comunidade autônoma da Espanha, de onde veio a minha família materna. É também de lá o ditado popular: No creo en brujas, pero que las hay, las hay. Foi na adolescência que eu comecei a me entender como bruxa. Nessa época, aconteceu um boom de lojas e revistas esotéricas como a Witch e personagens como a Bruxa Keka, no programa da Xuxa e a Cuca do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Estudei o tema mais a fundo, comprei meu primeiro tarô e fui desenvolvendo minha espiritualidade junto com com militância política

A gente pode falar em “bruxaria contemporânea”? O termo que a gente usa hoje é bruxaria moderna. No Brasil, há diversas práticas espirituais confundidas com a bruxaria, como tomar banho de ervas, acender velas. Mas é importante entender a bruxaria como uma prática autônoma, que não está ligada a uma religião. Na verdade, a bruxaria se contrapõe às religiões dominantes, porque ela não é patriarcal. A bruxaria é diversa e reúne algumas vertentes. Uma delas é a da baixa magia, termo criado na Idade Média para perseguir mulheres que eram parteiras, benzedeiras, curandeiras e viviam sozinhas, preparando seus remédios com ervas. É essa prática, ligada ao cotidiano e à natureza, que mais se aproxima da bruxaria exercida hoje. Há também a bruxaria natural, baseada nos elementos e nos ciclos da natureza, como solstícios, equinócios e os ápices das estações do ano e a bruxaria verde, centrada no uso de ervas. Ela também pode ser pagã, resgatando deuses antigos dos panteões celta, nórdico ou helênico, compreendidos como personificações dos elementos naturais. A bruxaria tradicional, por sua vez, é mais folclórica e pode dialogar com a chamada alta magia – a astrologia e a alquimia, práticas aceitas pela Igreja e pelos estudiosos medievais. É daí que surge a distinção entre alta e baixa magia. A bruxaria moderna, que é a que pratico, resgata saberes naturais e baseia a passagem do tempo nos ciclos da natureza. Nós cultuamos a terra, deuses pagãos e praticamos a baixa magia. Acima de todas as diferenças, há um ponto comum: o culto ao feminino enquanto divino, à deusa que é a terra, a grande mãe de onde tudo vem.

Quais as diferenças entre a bruxaria atual e aquela praticada na Idade Média? O aspecto de comunhão com a natureza, de compreender seus ciclos e viver em harmonia com eles. Na Idade Média, o paganismo e a bruxaria, embora sejam coisas diferentes, nascem dos povos pagãos que viviam e trabalhavam no campo, em contato direto com a natureza. Vale lembrar que, nessa época, muita coisa foi chamada de bruxaria sem realmente ser. No século XV, foi publicado o Maleus Maleficarum, o Martelo das Feiticeiras, um manual da caça às bruxas escrito por membros da Inquisição da Igreja Católica. A partir dele, qualquer traço considerado fora da norma podia ser associado ao “mal”: mulheres inférteis, independentes ou diferentes eram vistas como bruxas. A visão cristã distorceu completamente o que era a verdadeira prática das bruxas. Hoje, o que se aproxima dessa ancestralidade é o paganismo: o culto à Terra, à deusa, ao divino feminino e à multiplicidade do sagrado – e não a uma fé monoteísta e masculina. A bruxaria contemporânea é, em essência, o resgate desses valores antigos e da conexão com o poder criador da natureza.

O que é ser uma bruxa hoje? Para mim, é entender o feminino como uma potência de criação não somente voltada para a reprodução, como acontece no cristianismo, por exemplo. É se reconectar com a natureza e usar técnicas de adivinhação, oraculares e de feitiço. Uma bruxa também pode não praticar magia se ela não quiser, ela pode só cultuar os deuses e a natureza. Há quem a pratique a roda do ano, um calendário que marca os ciclos da natureza e tem origem em antigas festividades agrárias, especialmente as de tradição celta e as celebrações da lua cheia (e, em algumas vertentes, de outras fases lunares).

Qualquer pessoa pode se denominar bruxa? Ou isso requer dons inatos? Eu, pessoalmente, acredito em dons, mas acho que qualquer pessoa que treina, estuda e se dedica pode ser o que ela quiser. Existem pessoas que, naturalmente, vão ter mais afinidade com oráculos, com as ervas, mas ‘sentir energia’ de um ambiente não é ser bruxa, é ser mais sensível. Já ouvi pessoas dizendo: “Fulana tem uma intuição forte, então ela é uma bruxa”. Só que, às vezes, a fulana é evangélica e vai te odiar se você chamar ela de bruxa. A bruxaria é um caminho de dedicação e estudo, se você seguir nele, você está pronta para descobrir os mistérios e ser uma bruxa.

A bruxaria tem a ver com o conceito de sagrado feminino? A bruxaria não necessariamente tem a ver com o conceito de sagrado feminino, mas ela resgata o feminino sagrado, porque se baseia na cultura de antigas civilizações que tinham como principal divindade o feminino, a ideia de que a deusa era a terra, porque tudo vem da terra, a terra nos nutre. O sagrado feminino de hoje é uma ferramenta traz referências de outras culturas. Na minha opinião, o sagrado feminino acabou virando um mercado elitizado e higienista que celebra os ciclos da mulher sem olhar para os aspectos marginalizados do feminino. A bruxaria, por outro lado, sempre ocupou as margens e foi um espaço de acolhimento da diversidade do que é ser mulher. Na Idade Média, ela representava as parcelas deslegitimadas da sociedade, que eram perseguidas: mulheres negras, idosas, solteiras, inférteis ou com deficiência. Por isso, a bruxaria se tornou um lugar espiritual de acolhimento que reconhece toda forma de existência como sagrada, mesmo fora das normas políticas ou religiosas dominantes.

Como a bruxaria pode melhorar a relação das mulheres com o próprio corpo, a própria sexualidade, a conexão com a natureza e com a espiritualidade? A bruxaria nos dá a autonomia de reconhecer o que nos nutre como pessoa, espírito e matéria. Por isso, ela traz uma conexão profunda com o próprio eu e com a natureza, permitindo enxergar toda a existência como sagrada. A bruxaria é uma ferramenta de combate à opressão: não julga, não crucifica ninguém, acolhe o ser como ele é. Ao resgatar o feminino como sagrado, uma noção anterior ao patriarcado, ela resgata esse poder, especialmente em mulheres e pessoas marginalizadas. Muitas bruxas fazem um ativismo mágico, ajudam pessoas a se libertarem de lugares de opressão.

Conta um pouco sobre a criação da La Reina, sua escola de bruxaria. A La Reina surgiu em 2020 enquanto espaço físico, mas ela já existia enquanto projeto desde 2015, que é por onde eu oferecia os cursos e serviços de tarô e de outros assuntos esotéricos. Era bastante difícil encontrar um espaço que acolhesse a proposta do projeto, fora os custos e a logística disso. Então, em 2020, resolvi abrir o espaço físico da Escola de bruxaria La Reina em São Paulo, como uma tentativa também de conseguir criar um espaço seguro para essa coletividade. Somos uma escola de bruxaria e de outros saberes antigos, que precedem a criação do patriarcado e são uma forma de reconexão com a própria natureza e com o sagrado que existe no mundo para além do capital e das religiões dominantes. Temos um coletivo interno de prática de bruxaria, formado majoritariamente por mulheres, mas há também pessoas não binárias e de diversas faixas etárias de 20 a 60 anos. A gente preza por uma bruxaria feminista, inclusiva, com consciência de classe, de gênero e de raça.



PALAVRAS-CHAVE
COMPARTILHE facebook share icon whatsapp share icon Twitter X share icon email share icon