Como é ser uma atriz pornô trans no Brasil

por Marcos Candido

O Brasil é um dos países que mais mata transexuais no mundo. Ao mesmo tempo, é onde mais se assiste filmes pornográficos com atrizes trans. Como é a vida de quem atua neste meio?

O sucesso bateu à porta da transexual Hilda Gomes “Brazil” na forma de um produtor italiano, há cerca de dez anos. O europeu montava elencos para filmes pornográficos estrelados por transexuais e havia farejado talento ao acessar o blog pessoal de Hilda, à época com 18 anos. “Desde pequena sabia que tinha um lado artístico. Eu via televisão e queria estar lá”, conta. O convite do cineasta envolvia uma cena com mais quatro homens e uma mulher, com distribuição em sex shops e bancas de jornais do Brasil e na Europa.

Àquela altura, Hilda, recém estabelecida no Rio de Janeiro, já tinha implantes de silicone nos seios e cabelos tingidos de louro. Em Natal, onde nasceu e cresceu, havia contracenado em peças de teatro e ensaios fotográficos. Quando viu a oportunidade de alcançar o estrelato como artista, ela ouviu poucos conselhos e encarou a obra cinematográfica. “Foi um pouco difícil. A cena era bem pesada, me judiaram um pouco, mas depois me vi na capa e gostei”, explica.

É verdade que, hoje, os DVDs estrelados por Hilda e atrizes transexuais já não vendem tão bem. Os cachês generosos também minguaram e as propostas atuais para filmar ficam na casa dos R$ 500, enquanto uma atriz mulher heterossexual recebe R$ 800 a R$ 1,500, por cena. O que mantém Hilda famosa é a rede mundial de computadores. “Tem cara do Japão, da Austrália e do mundo todo vendo meus vídeos na internet”, se gaba.

Não à toa, um levantamento do RedTube demonstrou, em fevereiro deste ano, que “há 89% de chance de uma busca por shemale [termo em inglês para filmes com transexuais mulheres] vir do Brasil”. Uma rápida busca pelo termo gera uma biblioteca com 25 mil vídeos protagonizados por transexuais na plataforma. Termos regionais, como "travestis", também aumentam o catálogo on-line. São filmes com atrizes de diferentes etnias e países, sem uma ‘configuração’ para os roteiros: Hilda e colegas de cena atuam com transexuais, homens e mulheres cisgêneros em uma mesma cena.  É tudo bem ‘mecânico’ (“não tenho muito prazer assim, não”), mas o desejo em ter fãs e reconhecimento é maior. “Sempre foi meu sonho”, diz.

Apesar de galgar nomes como o de Hilda para a fama, o Brasil lidera o ranking de países com os maior número de homicídios contra pessoas transexuais no mundo. De acordo com último relatório públicado pelo Observatório Europeu de Transgeneridade em março, de 2008 a dezembro de 2015, foram registrados 802 assassinatos de pessoas transexuais no Brasil. “Somente contabilizamos casos registrados. Sabemos que, no geral, o número de casos reais é mais alto do que conseguimos identificar”, explica Lukas Berredo, pesquisador transexual brasileiro do observatório. Um exemplo da violência que assombra até mesmo estrelas do meio trans é o de Verônica Bolina. No ano passado, ela causou comoção na rede após uma foto na qual aparece desfigurada e com a cabeça raspada ser republicada nas redes sociais. À época, havia sido acusada pela tentativa de homicídio de uma idosa e de ter tentado arrancar a orelha de um agente penitenciário, o que foi o estopim para o espancamento.

Segundo uma fonte próxima, Bolina, ainda presa no interior de São Paulo, topou a participação em um filme pornô para “ter uma coisinha a mais” para impulsionar a carreira na prostituição.

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Ainda com os números do órgão europeu, há 65% a mais de chance de um(a) transexual ser morta caso exerça alguma profissão relacionada ao sexo em qualquer lugar do mundo. 

Há 10 anos ou mais, era até possível se manter apenas com filmes pornôs. Hoje, se prostituir é um fator quase imprescindível não só para atrizes pornôs, mas para boa parte dos transexuais no Brasil. “De 10 transexuais de nossa rede, ao menos 9 vão para a prostituição, já que faltam oportunidades no trabalho formal”, explica Keila Simpson, presidenta do Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). “É óbvio que a prostituição pode ser uma opção voluntária, mas não deveria ser uma situação condicional à orientação e identidade de gênero”. Todas as atrizes pornográficas transexuais entrevistadas pela Trip também eram acompanhantes sexuais.  

O tempo de permanência de uma atriz trans no pornô costuma ser de três a quatro anos, com muita sorte e/ou bons contatos com os escassos produtores que ainda perambulam por aí. Louie Damazo, 48 anos, é um dos poucos cineastas brasileiros no gênero. Ele é um efusivo carioca de olhos azuis, sotaque carregado e a cabeça raspada. A primeira vez que o vi, numa casa de eventos em São Paulo no fim de junho, Damazo estava rodeado por ‘bonecas’ (termo que designa atriz transexual no meio pornográfico). Elas usavam fartos decotes em seus trajes de gala e sorriam ao desfilar com o agenciador, no ramo desde 1999. “Já fiz de tudo, mas foi nos filmes com trans que me encontrei”, diz o ex-gerente de banco.

A busca por elencos transexuais começou no fim da década de 90 no Brasil. Como demonstra a pesquisadora María Elvira Díaz-Benítez no livro As Redes do Sexo, a fama gerada pelos filmes foi o principal estímulo para montar um elenco trans até então marginalizado por produtoras e revistas masculinas. “Eu ia em pista de dança e na rua atrás de gente [para filmar]”, explica. “Na época, comprei uma câmera de 5 mega pixel, muito cara, e consegui fazer as primeiras filmagens”. Por volta de 2004, selos pornográficos de grande renome, como a Brasileirinhas, Buttmann já apostavam no gênero. O ator Alexandre Frota virou manchete, em 2006, ao protagonizar o longa Garoto de Programa em parceria com a atriz trans Bianca Soares. 

Assim, no outrora mundo on-line e off-line, surgiu uma rede de ‘t-lovers’, ou espectadores assíduos de atrizes transexuais que pagam para ter acesso a material exclusivo. Hoje, transexuais que desejam alavancar o número de clientes e ganharam certo prestígio buscam Damazo via Facebook, a troco de pequenos cachês. Ele ainda ainda se mantém rigoroso no processo de “escalação". Religiosamente, faz uma triagem com as candidatas, cuja tarefa consiste em realizar “solo” de masturbação exclusivo para ele e sua câmera. “Nem toda garota consegue, porque pornô não é só ‘meter’ e ‘chupar’. Tem que saber atuar e fazer as caras”, defende. A violência contra as trans, diz, acontece devido ao “machismo e hipocrisia” do brasileiro, que consome, secretamente, materiais pornôs protagonizados por transexuais. Já a redução dos cachês - Damazo banca "um pouco acima" de R$ 500 - julga ser culpa das próprias atrizes, que topam valores baixo em troca da fama prometida por caras como ele.

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Por mês, o diretor diz registrar de 12 a 15 a cenas, sempre no eixo Rio-São Paulo ("Em São Paulo, as garotas são mais profissionais, sabe?"). É um volume de produções acima da média, bancado por uma empresa norte-americana de produção de filmes e agenciamento de transexuais sustentada por assinantes fieis. Também é dos Estados Unidos de onde Damazo migra condições a seu elenco (como uso de preservativo e casting somente de maiores de idade), já que não há qualquer lei brasileira que imponha restrições (uso de preservativos ou exames médicos para detectar DSTs) para rodar um filme pornográfico . “Podemos dizer que não há nenhuma lei Rouanet para o pornô”, brinca Damazo. “Mas eu não brinco com a saúde de ninguém”.

     — Eu só ajudo no remédiozinho…
     — Que ‘remédiozinho’?
     — Ah, o Viagra, né? 

 

Famosinha

No final de junho, Hilda Brasil se tornou uma das candidatas na categoria “Melhor Cena Trans” em uma premiação importante da indústria pornô brasileira. Um júri técnico era responsável por avaliar as obras cinematográficas na disputa (um dos organizadores afirmou à Trip que o número de inscritos na categoria foi abaixo de todas as outras modalidades heterossexuais). Quando o nome 'Hilda' foi anunciado no telão, a atriz sacou o celular para filmar seu possível momento de glória. O prêmio, mesmo, não veio.

A ausência de troféu não abalou o orgulho que mantém sobre suas quase 200 cenas no pornô. Durante toda o restante da semana, Hilda postou sobre o evento em sua página pessoal no Facebook, para cerca de de 17 mil seguidores. “Tenho muitos fãs que me seguem no Face e no Instagram. Quando viajo para algum lugar, já corre fã para me perguntar: Você está aqui?”, explica. “O que eu sempre quis foi isso: ficar famosinha.”

Créditos

Imagem principal: Michele Kanashiro

O termo 'trans', em vez de 'travesti', foi utilizado em respeito a forma como as personagens se declararam para a reportagem.

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