Criadora da palhaça Fran, a atriz conta como se tornou uma ”super-heroína” para as mulheres ao inverter estereótipos de gênero e usar o machismo contra os homens
"Os homens ficam se insinuando, é o nosso instinto comer eles. A gente não consegue evitar”, diz Fran, personagem criada pela carioca Rafaela Azevedo, em um de seus vídeos desbocados de mais sucesso nas redes sociais. “Se vocês não querem que a gente pegue amigos próximos de vocês, deixem longe da gente. Porque se a gente conhecer, e eles ficarem se jogando, a gente vai pegar. Não tem jeito", completa.
Cria de Honório Gurgel, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro e terra da cantora Anitta, a atriz de 31 anos tem se revelado um fenômeno cultural na internet, seja por seus vídeos no Instagram ou pela atuação no canal de comédia Porta Dos Fundos. O sucesso nos últimos meses foi tão estrondoso que extrapolou o mundo digital: Rafaela custeou a peça “King Kong Fran” — monólogo em que a artista, vestida de gorila, canta, dança e adestra homens — por meio de uma campanha de financiamento coletivo, onde conseguiu mais de R$ 30 mil. O espetáculo já foi assistido por mais de 12 mil pessoas.
O discurso absurdo da personagem, que gera gargalhadas no público feminino e terror no masculino, são uma inversão da maneira como os homens tratam as mulheres na sociedade. “Todas essas frases e dramaturgias que eu crio para a Fran são coisas que eu ouço, que são ditas com naturalidade por um ex-namorado, pelo marido de uma amiga ou numa conversa entre os caras, em que eles objetificam mulheres, mas nunca problematizam isso”, explica. “Enquanto homens me derem violência, eles vão ter violência. Eles estão me vendo como um pedaço de carne? Eu vou fazer pior com eles.”
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Sua estratégia de combate, que também é de sobrevivência, usa a própria vulnerabilidade como fonte de empoderamento. Episódios de assédio, abuso sexual, a experiência de ser mulher na sociedade e no circo e a relação com a mãe neurodivergente ajudaram a construir o humor provocador da atriz, que mostra que ser palhaça por opção — e profissão — é mais libertador do que supõe nossa vã filosofia. “Minha maior revolução é possibilitar que outras mulheres se conheçam nesse lugar da própria palhaça, sem querer pertencer a nenhum padrão que vem de fora. Que elas criem os padrões que elas quiserem”, diz.
No papo com a Tpm, ela fala sobre sua trajetória artística, as dificuldades de ser mulher e fazer humor no Brasil, além de como transformou a violência que sofreu em uma crítica afiada ao patriarcado.
Tpm. Muitas mulheres se identificam e sentem um tipo de catarse com sua personagem, a Fran, e a brincadeira dela no limiar da misandria. Você acha que as mulheres estão carentes desse tipo de figura feminina, com uma postura mais agressiva?
Rafaela Azevedo. Essa liberdade que a Fran tem é o que me salva. Qualquer pessoa que sofre a violência que a gente sofre, vai querer se vingar. Como não? Por muito menos, por uma briga de trânsito, um cara saca uma arma e mata outro. Mas, quando somos nós que reagimos, somos vistas como “histéricas”. O patriarcado foi tão bem construído que até no lugar em que somos admiradas, como deusas — na figura da Ave Maria, por exemplo —, nós não podemos sentir raiva, temos que ser incondicionalmente amorosas. Você precisa perdoar sempre, porque é do “instinto da mulher”. Não é. Não existe isso. É uma construção social. O discurso da Fran é uma reivindicação pelo direito à violência para as mulheres também. Porque se eu vivo num lugar de violência, eu tenho que poder me defender. As mulheres vivem sendo humilhadas, então a gente precisa fazer algo com isso. Não quero estar mais só nesse lugar de perdoar, educar, porque é uma sobrecarga. As mulheres precisam poder existir sem essas preocupações que atentam contra a nossa vida diariamente. Eu quero ter prazer, liberdade e me divertir. Não tem espaço para isso? Então vamos criar. E eu não estou sozinha nesse movimento de criar novas referências. Tem um monte de mulher fazendo humor e isso me deixa muito feliz. Não existe nada de rivalidade feminina, acho isso cafona e patriarcal.
O seu trabalho consegue alcançar mulheres que ainda não têm muito contato com as discussões sobre gênero e feminismo? Eu sinto muita empatia e amor por essas mulheres que ainda não estão muito conectadas com a própria condição. Falo com elas com muito cuidado, porque penso que o sistema é tão bem engendrado que faz com que acreditem que o máximo de poder que podem ter é o de serem aliadas a um homem. A história fez a gente acreditar que “ficar para a titia” é algo ruim. Para mim, é tudo. Eu acho o máximo ficar pra titia! Eu sou tia e não vou ser mãe, porque eu não quero. Então eu acho que o nosso trabalho é criar essas novas referências e deixar a porta aberta para essas mulheres quando elas quiserem vir. Jamais fechar essa porta ou dizer que elas são isso ou aquilo. Elas estão no tempo delas de escolher. O legado que eu quero deixar é de que existem outras formas de ser. O nosso destino não é só o que escolheram para nós.
O espetáculo “King Kong Fran”, em que você usa uma fantasia de gorila, é especialmente aterrorizante para os homens, mas ele tem um lugar pesado também para as mulheres, porque você conta a sua experiência pessoal de abuso. Por que você decidiu compartilhar esse episódio tão doloroso com a plateia? Durante o processo de criação do King Kong Fran, eu e o Pedro Brício, meu parceiro criativo, tínhamos a intuição de que era preciso falar disso. Na estreia do espetáculo, aconteceu uma coisa muito louca que foi uma somatização do meu corpo, em que se abriram umas dez feridas na minha vagina. Fui em todos os médicos, até que a minha ginecologista foi ver o espetáculo e falou: “Rafa, isso é psicológico. Você tem uma vagina que ‘atira’ nas pessoas [referência a uma das cenas do espetáculo] e está falando do estupro que você sofreu”. Eu sou humana, isso aconteceu mesmo, o meu corpo reagiu dessa forma e eu senti muita dor. Foi horrível. Até a quarta temporada da peça eu ainda estava revivendo esse trauma. Foi como uma coisa que eu precisava colocar para fora e, para mim, foi muito simbólico. E aí, com muito trabalho na análise e acompanhamento ginecológico, eu fui entendendo que a questão estava na minha cabeça. Foi forte demais, mas, em nenhum momento, eu pensei em retirar essa parte, porque a Fran é essa super-heroína palhaça. As mulheres se inspiram muito nela, mas eu tomo muito cuidado para que a Fran não se torne inalcançável. Não quero que ela vire um novo padrão estagnado. Ao dividir essa experiência, o meu desejo é dizer para aquelas mulheres da plateia que eu estou fazendo isso aqui porque eu sofro o mesmo.
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Como foi se enxergar nessa posição tão exposta? É óbvio que quando somos estupradas, abusadas sexualmente ou assediadas, até mesmo sem contato físico, é muito comum a gente se envergonhar e não falar. Porque o sistema é tão contra nós e a favor desses caras que eles ficam bem e nós ficamos taxadas. Ninguém quer ser taxada como a mulher que foi estuprada. E, na época que aconteceu comigo, eu não consegui reagir porque eu pensava: “O que fiz de errado?”. Se eu pudesse, eu tinha sentado à porrada nesse homem, porque ele não pode tocar no meu corpo, o meu corpo não é público. Então, expor sobre isso é também trazer humanidade para essa super-heroína que é a Fran e dizer: isso é também a minha realidade, mas não vai traçar a minha história. Isso é um ponto, como é um ponto na história de várias mulheres. E quanto mais a gente conseguir falar e expor esses homens, eu acredito que isso vá se reduzindo. Porque eles vão ficar nesse lugar de exposição, vão ter medo.
Quando você criou a Fran, já existia essa intenção de ser crítica, de devolver aos homens o desconforto que o machismo traz para as mulheres? Sempre fui crítica com a vida, muito devido à minha história. Quando cheguei na escola de teatro, aos 17 anos, eu tinha que ralar. Eu trabalhava o dia inteiro pra poder pagar o curso e, mesmo assim, o dinheiro não dava, tinha que fazer bicos. Sempre usei a arte para transformar algo que me angustiava muito. Quando entrei na escola de circo para fazer palhaçaria, sofri muito preconceito de gênero e assédio pelos caras, pelos “mestres”, e a minha resposta era com a Fran. Eu comecei a pensar: “Ah, então espera aí que eu vou botar um espelho na frente desses caras pra eles entenderem. Eu não vou brigar”. E aí eles iam rindo e falavam: “Nossa, onde essa garota vai? Ela é malandra”. E eu fui entendendo que a minha maior arma é o humor. Então, eu chegava com a Fran assim: “Vocês estão me vendo como um pedaço de carne? Eu vou fazer pior com vocês. Eu sei como você me vê e eu vou te dizer como você me vê, só que fazendo o contrário. Mas eu estou só reproduzindo”.
De onde vêm as referências da Fran? Todas as frases e dramaturgias que eu crio para a Fran são coisas que eu ouço, ditas com naturalidade por um ex-namorado, pelo marido de uma amiga ou numa conversa entre os caras. Eles objetificam mulheres, mas nunca problematizam isso. Eu estou sempre atenta ao que faz homens rirem, tudo é material pra mim. Fico ali bem quietinha, observando e, em algum momento, eu jogo uma discussão ali na roda, com a Fran, e ninguém sai ileso. Quando você aponta o machismo ou o racismo, eles ficam na defensiva. Eu sinto que eles não conseguem empatizar com o discurso, mas eles empatizam com a encenação da Fran.
Qual é a reação dos homens que assistem à sua peça? Quando um cara diz “nossa, eu fiquei com medo de você no espetáculo”, eu respondo: “É isso que eu sinto de você desde que nasci. É bom? O que você pode fazer para mudar isso?”. Quando eles assumem que ficaram muito desconfortáveis durante o espetáculo, eu falo: “Jura? Você tem sorte que foram só 60 minutos e acabou. Nós sofremos o tempo todo esse terror de sermos assediadas em todos os lugares, de não sermos respeitadas, de sermos tratadas como um objeto”. Às vezes, saio do meu espetáculo, vou jantar e no restaurante eu sofro um assédio. Eu penso: “Meu Deus, que destino, que ironia”. Me vem uma vontade de ser a Fran que, pra mim, é uma super-heroína. Mas ela é uma criação, eu não posso sair por aí vestida de King Kong, né?
Por que se identificar como “palhaça” e não “humorista”? E como é ser uma palhaça (profissional) numa sociedade que faz as mulheres de palhaça cotidianamente? Amei essa pergunta. Eu tenho um amor profundo pela palhaçaria e pelo circo por ter vindo de lá, por ter aprendido com essas pessoas que também são muito marginalizadas na arte. Alguns governos não dão subsídios para o teatro ou para a música, por exemplo, mas o circo nem entra nessa conta. Quando a gente não ganha nada, a gente vai pra rua e fala assim: "Vamos ver se eu consigo meu almoço". E aí bota o chapeuzinho lá e faz palhaçada na rua. Eu já fiz muito isso e muitos amigos meus sobrevivem e pagam aluguel assim até hoje. Então, [identificar-se como palhaça] é um plano que eu tenho também de trazer essa galera junto comigo, de trazer visibilidade pro circo conforme eu vou ganhando mais espaço. Com qualquer nível de engajamento que eu possa ter, quero trazer esse olhar, botar no centro esse grupo que é tão marginalizado, mas que é tão importante para a sociedade. E eu me considero palhaça, e não humorista, porque uma das regras da palhaçaria é que a gente aponta pra gente, a gente ri de si mesmo o tempo inteiro. Por exemplo, com a Fran, eu estou rindo da minha condição enquanto mulher na sociedade. Como eu uso a ironia, parece que estou apontando para os homens, né? Muita gente fala: "A Fran objetifica os homens", "a Fran humilha os homens". E aí, quando me dizem isso, eu respondo: "Na verdade, eu só inverto o jeito que os homens tratam as mulheres na sociedade".
Como surgiu seu interesse pela comédia e pela palhaçaria? Foi pesquisando sobre máscara teatral no grupo Moitará que me interessei pelo nariz vermelho, a menor de todas as máscaras. Depois de estudar atuação na Casa de Artes de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, comecei a formação como palhaça na Escola Nacional de Circo e fui me encantando, me encontrei ali nesse lugar da inadequação da palhaça. Hoje eu vejo que, mesmo que de forma inconsciente, isso teve a ver com a minha mãe. Ela tinha uma condição que estava entre esquizofrenia e borderline, mas faleceu antes que a gente conseguisse entender qual era seu diagnóstico de fato. Mas ela era genial. Tem essa coisa da gente associar a figura da mãe a uma certa “loucura”. Mas eu olhava as mães das minhas amigas e pensava: "Cara, a minha tem um negocinho a mais aí". Ela era uma grande performer em casa, porque ia se perdendo na sua própria fantasia, não fazia muita separação entre esse mundo lúdico e o que a gente chama de realidade. Por exemplo, quando ela via um personagem de TV que gostava, ela poderia dizer que era seu marido. Quando criança, achava isso o máximo, mas conforme eu crescia fui entendendo que não era uma brincadeira, ela era assim. No fim das contas, ela ficou nessa condição de inadequada para a sociedade, foi marginalizada, não conseguia trabalhar. Hoje em dia, eu tenho a nitidez do quanto isso me influenciou a gostar tanto da linguagem da palhaça.
O que é essa linguagem da palhaça? Uma das regras da palhaçaria, digamos assim, é você ser “errado”, a graça vem da sua inadequação ao que se considera o padrão. Então, eu acho que a Fran, que é a minha palhaça, nasceu muito nesse lugar de aceitação da minha própria mãe. Porque quando eu encarnava a Fran, era como se eu estivesse no universo da minha mãe, um universo de fantasia. De uma forma inconsciente, eu acabava fazendo no palco coisas inspiradas nas que eu via ela fazendo em casa. E a minha mãe amava a Fran! Quando ela era viva, ela ia nos espetáculos e adorava. Para ela, eu e a Fran éramos uma coisa só. Quando eu era mais nova, eu dizia: "Gente, minha mãe gosta mais da Fran do que de mim, na real" (risos).
Você já mencionou que cresceu em Honório Gurgel, um bairro do subúrbio do Rio de Janeiro. Como foi furar a bolha artística da Zona Sul? Hoje em dia, já pertenço a outros lugares da cidade e do próprio meio artístico, mas eu sei o quanto tive que percorrer para chegar nesses espaços. Há muito pouco tempo, fazia o cruzamento Honório Gurgel - Centro - Zona Sul para estudar e para trabalhar. Eram três horas de transporte: entra no trem, entra no ônibus, pega um metrô – que é a realidade de muitas pessoas. Muita gente que hoje me reconhece e me admira há dez anos agia como se eu não existisse no mesmo ambiente, porque eu ainda não representava nada que agregasse um valor para elas – o que é muito cruel. É por isso que, aos 31 anos, eu tenho prestado atenção na galera de 18, 19, 20 anos que está chegando para fazer arte e não é notada, ainda mais quando não tem o privilégio de pertencer à bolha artística da zona sul do Rio de Janeiro ou de São Paulo. A arte é ainda muito elitizada, mas a gente precisa olhar para essa cultura maravilhosa que está cada vez mais emergindo da periferia e das comunidades.
Você acha que ainda é muito difícil ser uma mulher palhaça, considerando que o ambiente circense e os espaços cênicos de comédia e de humor no Brasil são dominados por homens? Muito, muito, muito, muito. Porque tem um lugar do patriarcado em que a figura da mulher é idealizada, não é humana. O que querem da gente é a nossa não-humanidade. Num paralelo com o próprio circo, foi só em 1991 que surgiu o primeiro grupo de mulheres palhaças aqui no Brasil, As Marias da Graça, que são maravilhosas. Faz 32 anos, é muito recente. Até então, as únicas funções que as mulheres podiam exercer no circo eram de assistente do mágico, com roupas totalmente sexys, de bailarina que anda de sapatilha de ponta em cima de um fio ou de modelo que fica na frente de um alvo onde um cara atira facas. Já o cara entra de palhaço, tropeça, cai e todo mundo morre de rir. Porque isso é humano, o palhaço é sobre humanidade. Mas não deixavam a gente ser palhaça, porque retiraram a nossa humanidade. Uma mulher palhaça não era considerada “engraçada”. As mulheres estão ocupando esse espaço, mas ele ainda é muito dominado por homens e são poucos os que abrem os espaços para nós.
Como fazer para abrir esses espaços? Quando uma mulher chega num lugar confortável no humor, ela traz mais cinco com ela, que trazem outras cinco e assim por diante. Os festivais de palhaças são uma resposta por não sermos chamadas para os festivais mistos — que, na verdade, são festivais masculinos, cis, hétero de humor. É um lugar ainda muito nichado, mas eu sempre me nego a dizer que faço “humor feminino”. Faço humor. A minha maior revolução é possibilitar que outras mulheres se conheçam nesse lugar da própria palhaça, que pode até não ser engraçado. Existem palhaças que são tristes. Existem palhaças que emocionam o público em outros lugares, que são mais densas. Há essa diversidade porque existem várias histórias de vida. Então, que as mulheres possam se conhecer nesse lugar sem querer pertencer a nenhum padrão que vem de fora. Que elas criem os padrões que quiserem.
Como você lida com os comentários dos homens nas suas redes sociais? Têm aqueles que fazem algum tipo de autocrítica ao conhecer o seu trabalho? É ótimo quando os homens têm essa autocrítica. Cada vez mais estou abrindo esse espaço para eles serem aliados também. Sinto que está crescendo o número de homens no público da Fran, que é 70% feminino, tanto nas redes sociais quanto nos espetáculos. Então, é muito legal ter esses 30% ali dos caras que estão interessados.
E os que só querem ofender? Com os haters da internet eu lido de uma forma bem prática: eles geram um engajamento que é muito bom (risos). Mas sinto que têm pessoas um pouco perversas, que tentam deslegitimar meu trabalho de forma desonesta. Quando eu falo sobre os homens, não estou falando sobre todos os homens. Estou atacando somente quem simboliza esse patriarcado, que é o homem cis, branco, hétero. Quando faço piada sobre o pênis, já responderam: “Isso é covardia, porque os caras não escolhem o tamanho do pau”. E as mulheres por acaso escolhem o padrão estético que diz que elas precisam de uma vagina que pareça infantil ou de uma cirurgia para ficar com peito de boneca? É um sistema que inseriu a gente nisso. Então, se é para criar novas referências, vamos lá. E se eu começar a apontar nos homens esses lugares que são apontados na gente?
Você se posicionou recentemente contrária ao humor de Léo Lins, que teve seu show de comédia retirado do ar por conter teor discriminatório. Qual é o poder e o papel do humor no mundo de hoje, repleto dessas discussões políticas tão necessárias? No humor que aprendi a partir da palhaçaria, a gente coloca seres marginalizados de alguma forma no centro. A vulnerabilidade é que vem a ser a força. Então, se a piada do humorista aponta alguém que já está à margem, socialmente, é crueldade. Para o humor acontecer, é preciso subverter um padrão que existe. Se o padrão que tanto fere a nossa sociedade é racista, homofóbico, misógino, capacitista, transfóbico, fazer piada com isso não é transgredir nada. Você só está reforçando o padrão estabelecido, usando uma técnica do riso para manter uma situação que mata muita gente. Então, eu acho que o papel do humor é a gente poder questionar tudo o que está no centro, no sentido de que exerce algum poder. Acredito que o humor é muito eficaz em questionar, pelo riso, esse poder que é inatingível. Se eu for falar sobre racismo, eu vou denunciar os racistas e não rir da vítima. Pra mim, isso não é algo risível, não é liberdade de expressão, porque fere outras pessoas. Quem faz isso não está correndo nenhum risco, enquanto um comediante negro, uma mulher negra, uma mulher branca, uma mulher trans, um homem trans que fazem humor precisam lutar por aquele espaço. E para além de toda essa visão social e política, eu também acho desinteressante, eu não consigo consumir esse tipo de humor.
Mesmo dando “porradas” nos homens com seu humor, você ainda acredita no amor? Olha minha única tatuagem. Dá pra ler? [mostra tatuagem na mão com a palavra “amor”] É amor. Acredito demais! Para mim, é como se a Fran fosse a super-heroína para eu poder sobreviver ao tanto de violência que tem no mundo. Ela é um posicionamento político contra essa visão do amor incondicional atribuído à mulher. Posso dar amor, eu quero dar amor, mas preciso receber. Enquanto homens me derem violência, eles vão ter violência. No momento em que me derem amor, eu serei a pessoa mais amorosa do mundo, mas preciso de confiança para essa entrega. Não sou Jesus Cristo que dá a outra face para bater. Não vou dar.
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Imagem principal: Nanda Carnevali