Em cartaz com um monólogo sobre a intelectual feminista Pagu, a atriz abre o jogo sobre as tretas da maternidade, as frustrações na profissão e como o machismo quase acabou com seu casamento
Se prateleiras vazias da livraria que abriga o teatro Eva Herz, no Conjunto Nacional, em São Paulo, conferiam um certo ar nostálgico ao lugar após decreto inicial de falência, decerto não era esse o clima dentro da pequena sala escura de poltronas vermelhas, com escadas de alumínio subindo e descendo a cenografia da próxima peça, prestes a estrear. Sentada na primeira fila, Martha Nowill, 42, atriz e escritora idealizadora do monólogo “Pagú – Até Onde Chega a Sonda”, observava atentamente ao manuseio dos tecidos brancos que se erguiam no fundo do palco.
“É como se eu estivesse estreando de novo”, disse Martha, que segurava nas mãos uma cópia encadernada da dramaturgia da peça escrita por ela a partir do manuscrito original de Patrícia Galvão, a Pagú, que estreou em dezembro do ano passado, com sessões lotadas no Sesc Pompeia. De volta em cartaz no último dia 8, a atriz conta que está ansiosa pela repercussão da nova temporada, já que o solo não conta com patrocínio e as despesas serão custeadas somente com a venda da bilheteria.
Martha foi apresentada aos manuscritos da escritora, poeta, feminista, desenhista e jornalista, até então inéditos, pelo colecionador de arte Rafael Moraes, em 2018. Mesclando trechos dos textos escritos por Pagú na Casa de Detenção de São Paulo, em 1939, durante a ditadura de Getúlio Vargas, ao seu próprio diário, feito durante o puerpério de seus filhos gêmeos, Maximilian e Benjamin, de dois anos, Martha instiga a plateia ao comparar o enclausuramento dessas duas mulheres, tão distantes, tão próximas, em um encontro improvável separado por mais de 60 anos.
“Claro que não dá para comparar com uma prisão política, mas a maternidade te enclausura de uma forma que achei que nunca mais teria vida. Precisamos nos libertar”, avalia ela, que chegou a amamentar seus filhos cerca de 14 horas por dia e precisou recorrer à terapia de casal para alinhar a nova rotina com o marido, o publicitário e ator Luiz Braga, com quem contracenou na série “5X Comédia”.
“Fiquei com raiva quando estava em casa cuidando dos bebês e ele voltou a trabalhar em um mês. Aquilo me gerou um ódio enorme”, confessa. A desigual divisão de tarefas em casa, a falta de acolhimento das mães pela sociedade e o sequestro de seu corpo – que passou a ser de domínio público – renderam-lhe incontáveis momentos de crises. “Chorava 18 vezes por dia. Um dia contei”, conta Martha.
A atriz revela que a gestação, ao contrário do imaginário difundido, foi um período de luto. Ficou melancólica e passou a gravidez inteira se despedindo dela mesma, além de ter se sentido muito mal fisicamente. “A gente precisava ganhar um salário para fazer isso. A mulher que está gerando uma vida e cuidando de outra pessoa é um problema da sociedade inteira. Se não for assim, a raça humana vai ser extinta?”, questiona.
LEIA TAMBÉM: "As mães precisam reclamar", diz a atriz Leticia Colin
Tpm. A maternidade fez você revisitar memórias de infância? Quais lembranças desse período você carrega?
Martha Nowill. Meus pais se separaram quando eu era adolescente, mas boa parte da minha vida eles brigaram muito. Não tenho lembrança dos meus pais serem muito felizes juntos. Meu pai [Alexandre] é médico e ficava muito pouco em casa. Mas lembro de um dia, quando a gente ainda morava em um apartamento emprestado – só depois fomos para uma casa com jardim –, da minha mãe [Maria] falar que ia passar um filme muito legal na televisão. E era Mary Poppins. Nossa, fico até emocionada. Nesse dia meu pai chegou cedo por um milagre e lembro dele, da minha mãe, minha irmã mais velha e eu assistirmos todos juntos, em um sofá meio de camurça, na sala pequenininha. O filme é o máximo, com uma Londres cinzenta e aquela babá colorindo tudo. É uma memória muito feliz.
Como você lidava com essa ausência? Meu pai sempre trabalhou muito, chegava muitas vezes de madrugada. A ausência em relação a ele foi grande, mas tive a presença, também. Lembro dele me acordando quando chegava para dar um beijo de boa noite. Minha mãe também trabalhava muito. Mas hoje aceito melhor. Ela tinha aberto mão da faculdade por duas vezes, no seu primeiro casamento, e depois, com o meu pai, quando foi acompanhá-lo na França para uma bolsa de estudos. Quando voltamos ao Brasil, ela engatou a primeira marcha e foi com tudo: terminou a faculdade de Direito, trabalhou, abriu seu escritório... Ela tinha uma enorme preocupação em me fazer ler, ver filmes e frequentar museus. Sua preocupação em me formar intelectual e culturalmente era maior do que me abraçar.
Você se pega querendo reconstruir suas experiências do passado com seus filhos? Não tanto. Já li muito sobre isso, e hoje sei o quão importante é abarcar o bebê, tocá-lo, abraçá-lo. Me preocupo muito em dar afeto para eles. Mas tento não criar uma espécie de compensação, porque se coloco isso na cabeça é como se o que eu tivesse tido tenha sido ruim. E meus pais foram maravilhosos, com seus erros e acertos.
Você morou em Paris de um aos cinco anos. Tem lembranças dessa época? Muitas. Inclusive, quando chego em Paris, é um negócio! Parece que voltei para um lugar familiar. Chego e penso: “como é bom estar de volta”.
Sua avó, Dorina Nowill, foi uma grande ativista pelos direitos de pessoas com deficiência visual e personagem de um documentário de sua autoria. Qual foi a influência dela em sua carreira? A minha avó é um norte para mim. Ela tinha muita força. Tenho muito orgulho de ser neta dela, encho o peito para falar. Claro que nem sempre foi assim. Quando era mais nova, não tinha essa noção. Só adolescente comecei a entender sua importância e fui ficando cada vez mais orgulhosa, até decidir fazer o filme sobre ela [“Dorina — Um Olhar Para o Mundo”]. Ser atriz já era uma vocação minha, nasci com ela. Não foi uma coisa que ela me estimulou, mas, quando entrei para a escola de teatro, ela não foi aquela pessoa do tipo: “Ih, vai ser artista? Vai se foder e tal”. Pelo contrário. Ela achou o máximo, ia em todas as minhas peças. Ela era super orgulhosa de mim. Quando estava viva, me apresentou para todo mundo – quem podia e quem não podia.
E a escrita? É um hábito que cultiva desde pequena? Acho que sim. Tenho a lembrança das redações da escola, dos meus poemas que iam para o mural. Eu gosto de ler desde sempre. Mas sempre quis ser atriz, desde os meus seis anos. Nunca quis ser escritora. Foi acontecendo.
Seu primeiro texto publicado foi um diário escrito em uma viagem à Rússia, que estampou as páginas da Revista Piauí. Olhando para trás, como era essa jovem Martha de 28 anos? Eu não tinha esse olhar de fora para dentro, que a gente vai tendo com a idade. Com 28 anos ainda estava meio... Estou rindo aqui porque achava que em dez anos a minha vida profissional estaria super resolvida. E agora, com 42, falo: “Caralho, está tudo igual”. Acho que continuo sendo meio tratorzão, do tipo, essa é minha vida, o ano começou, o que preciso fazer? Botar os meninos na escola, a peça precisa estrear, preciso mudar de prédio. E vou em frente.
LEIA TAMBÉM: "A arte para mim é quase uma religião", afirma a atriz Karina Teles
Quando recebeu o manuscrito de Pagú pelas mãos do colecionador de arte Rafael Moraes, em 2018, se identificou de cara? A Pagú tinha uma intensidade muito forte, que me identifico muito. Sou aquela pessoa que às vezes se joga no chão e suplica: “Pelo amor de Deus!” Tento não me machucar e não machucar ninguém, mas tenho aquela veia da tragédia grega. E a Pagú também. Ela falava que não tinha mais medo de ser ridícula.
Você não tem mais esse medo? Ainda tenho um pouco. Mas adoro pegar carona na falta de medo dela e poder dar esse texto na peça: “Podes me achar ridícula, toda minha vida tem sido ridícula. Mas nada mais me impede de te mostrar o que sou. Eu me atrevo a mostrar-te toda ruína que sou. É possível que te sintas muito em mim e que isso te horrorize. É possível e justa a repulsão. Que acabes não me suportando. Poderei te perder. Mas poderá fugir-te?” É difícil falar o texto dela sem estar em cena porque é muito forte.
E o que mais te encantou quando você pegou o manuscrito dela nas mãos? Primeiro fiquei apavorada. É um peso, né? Eu não queria mais fazer monólogo. Já tinha feito um com 22 anos e cheguei a conclusão de que a parte mais legal de atuar é ter outra pessoa em cena. Depois ainda fiz um segundo monólogo, uma performance sobre a poeta Ana Cristina César. Desde então, tinha prometido a mim mesma nunca mais fazer. E durante anos, só monólogos apareciam para mim. Eu negava. Até que caiu esse, mas foi irrecusável. É como ganhar na loteria artisticamente. Quando li o manuscrito, vi que era um texto muito difícil. Se entrasse em cena com o texto original da Pagú, as pessoas iriam sair correndo. É difícil, é denso. Então foi um misto de alegria e peso. Me sentia um pouco incapaz. Não acreditava que pudesse fazer aquilo. Tanto que passei anos enviando o texto para outras pessoas perguntando se alguém queria fazer. Eu falava: “Vou te mandar um negócio aí e você só me chama pra atuar”. E as pessoas nem me respondiam. Na pandemia, no puerpério, comecei a conversar com a atriz Bel Teixeira e ela me questionou por que eu mesma não fazia. Começamos um processo que ela chama de escrita na cena, um método de palavra falada que se transforma em palavra escrita, de depoimentos. E me conduziu por esse lugar até que decidi que quem iria escrever essa peça seria eu.
Qual a diferença dessa montagem para a anterior, que terminou no final do ano passado, no Sesc Pompeia? Agora vai ser um palco italiano. E para um ator isso é muito diferente. No Sesc Pompeia, se alguém da plateia estivesse mascando um chiclete de menta, eu sentiria o cheiro. Era muito perto, muito íntimo. O que tornava tudo mais difícil. Agora, é como se eu estivesse estreando de novo. Tenho também a experiência de produtora, porque a gente continua sem patrocínio. Tenho várias contas do teatro para pagar. Estamos arriscando, esperando que a bilheteria se pague.
No monólogo, você compara a prisão de Pagú com a prisão da maternidade. Como foi a construção dessa percepção? Claro que não dá para comparar com uma prisão política, mas a maternidade te enclausura de uma forma que achei que nunca mais teria vida. E ela prende não só porque estamos amamentando, mas por conta de todas as ideias preconcebidas que colocaram na nossa cabeça e de todos os checklists que temos que cumprir, como amar aquele bebê, amamentar aquele bebê, ficar feliz por abrir mão de tudo por aquele bebê. É uma prisão da qual precisamos nos libertar. Eu ainda amamentava dois bebês. Cada mamada dupla demorava 1h40 e um dia fiz as contas: cheguei a amamentar 14 horas por dia, cronometradas no relógio. Passei meses comendo com eles no peito. E, ao mesmo tempo, era um prazer enorme. Lembro que com 40 dias fui fazer a consulta do retorno do parto e sai por duas horas. Voltei muito culpada porque fiquei tão feliz em ficar longe deles! E nesse dia entendi, até falo disso na peça, que a gente é melhor quando voltamos para nós. Sem mim eu não existo.
LEIA TAMBÉM: Na Casa Tpm, mulheres discutem as tantas culpas que nascem com a maternidade
Você fez terapia para ajudar nesse processo? Eu fiz um pouco no primeiro ano dos meninos. Vou te confessar, não estou fazendo terapia porque estou sem dinheiro. Esse é outro fator da maternidade. A vida fica tão cara que você fica sem dinheiro mesmo trabalhando. E você começa a abrir mão. Tenho que pagar uma pessoa para me ajudar a cuidar dos meus filhos, e é o mesmo dinheiro da terapia. Então não vai rolar terapia agora. Mas também é temporário, daqui a seis meses eu posso estar super bem de grana e voltar a fazer. Durante o primeiro ano fizemos por uns seis meses terapia de casal. Eu realmente achava que fosse me separar do Luiz.
Por quê? Estava com a ideia fixa, que também falo muito na peça, do machismo, da carga mental enorme que recai nas mães. Caiu muito a ficha. Cara, eles não percebem! É uma loucura. Eu fui puxando muito o Luiz e os pratos estão se equilibrando agora. Mas só o fato de eu ter de puxar ele já é um trabalho. Fiquei com muita raiva quando fiquei em casa cuidando dos bebês e ele voltou a trabalhar em um mês. Aquilo me gerou um ódio enorme, uma inveja. A gente tinha uma funcionária, mas uma hora ela ia embora. Eu lembrava: “Olha você tem que estar aqui tal hora”. E todo dia ele atrasava. Aliás, até hoje ele se atrasa, entende? Eu nunca atraso. Se tem alguém cuidando do meu filho, eu vou estar lá na hora. Ele sempre conta que eu vou estar lá. Ele sabe que, se eu não tiver, vou ligar duas horas antes para ele se programar. Fiquei muito revoltada no puerpério. Eu fiquei louca! É muito injusto. E aí você se depara com seus demônios. As pessoas dizem que o puerpério dura 40, 60 dias, mas para mim durou quase um ano. Tinha medo de ficar sozinha com eles. Depois de um momento passou. Mas meu marido não entendia que eu não podia ficar sozinha com eles. Não entendia meu pânico. Penso muito nisso, criando dois meninos, sobre o que vou passar para eles sobre machismo, feminismo. Eles são os homens do futuro, né?
Qual foi a parte mais difícil do puerpério? Eu falo muito na peça sobre o esquecimento da maternidade. E justamente no primeiro ensaio aberto, tive um branco. Tenho vontade de chorar toda vez que me lembro, foi uma das piores cenas da minha vida. Eu falo na peça sobre a mãe não ter mais memória, e mesmo assim, passei meses com isso, fui muito dura comigo. Estou até hoje tentando fazer esse trabalho de acolhimento comigo. A nossa cabeça fica diferente, não tem jeito. Meus filhos fizeram dois anos agora e estou esperando o momento em que eu vou falar “agora voltou", sabe? O cansaço é crônico. Ainda não passou. Mas, ao mesmo tempo, me sinto muito mais inteligente.
LEIA TAMBÉM: Dira Paes e as muitas mulheres que carrega na própria pele
Você mexeu com um certo lugar da sacralidade ao interpretar uma grávida que cobra por sexo virtual na série “5X Comédia”. Como foi desconstruir esse imaginário? Olha, foi um pouco por necessidade. Quando estava escrevendo a série, não estava grávida. Era o começo de pandemia e precisava ganhar dinheiro. A série acabou demorando e engravidei. Ou perdia a personagem, ou fazia. E acabou ficando muito mais engraçado. Estava arrumando meu material outro dia, assisti alguns trechos e rolei de rir vendo o que eu faço com o Luiz. E, no fim, a série seria muito careta se a personagem não fosse grávida. Gostei de mexer nesse tabu da santidade da grávida. Muitas vezes me senti nesse lugar de quão poderoso é gestar uma vida. Com a barriga, você vira uma espécie de entidade. Me enxerguei nesse lugar sacro e foi muito legal me ver nesse lugar mais profano, da grávida que tem tesão.
Você foi uma grávida desejante? Sim. E mesmo depois deles nascerem, tive muito desejo nos primeiros meses. É tanto amor que você vai relevando a privação do sono, relevando uma série de coisas. Estava cheia de ocitocina, amamentando dois, tinha um tesão pela vida. Eu perdi depois que eles fizeram primeiro ano, exausta, trabalhando. Mas sexo é como fazer ginástica. Às vezes precisa fazer, não tem jeito. Agora que eles já estão com dois anos, as coisas estão melhorando. Mas desejo é como inspiração. Ele não vem a hora que você quer. Você não fala: “Botei pra dormir os bebês, vamos agora!” Você precisa abrir espaço para isso internamente, precisa relaxar, só aí o desejo vem.
Está gostando da ideia do seu marido virar ator? Eu inventei um pouco que ele era ator, né? Ele continua com a profissão dele, que é publicitário e produtor. Mas tem feito alguns trabalhos como ator. É uma brincadeira séria que ele faz de vez em quando. Gosto da ideia de podermos fazer projetos juntos. Agora, não sei se eu gostaria de ter um marido ator. Acho que não aguentaria. O Luiz não tem essa egotrip de ator, sabe? Tenho muita preguiça de me relacionar com alguém da mesma profissão, porque são as mesmas inseguranças. Prefiro uma figurinha nova para trocar.
Estamos falando cada vez mais sobre a maternidade real, mas está sendo suficiente? Acho que na nossa bolha falamos muito sobre isso. Mas entre falar e reverter isso a nosso favor, na prática, existe um longo caminho. Eu tive alguma sorte, porque quando os gêmeos estavam com oito meses fiz uma série da Vera Egito, “Dois Tempos”. Eu estava amamentando ainda, mas eles toparam que eu gravasse nos intervalos das mamadas. Foi uma exceção, né? As pessoas dão uma fugida de grávida, de mãe. Tem um caminho para as pessoas entenderem que aquela mulher que está gerando e cuidando de uma vida nos primeiros anos é um problema da sociedade inteira. Se não for assim, a raça humana vai ser extinta? É isso? É muito contraditório porque suas contas aumentam muito e você tem que trabalhar mais e, ao mesmo tempo, tem de se dividir mais. Deve ser muito louco poder ter uma licença-maternidade, um vale-refeição, sonhos do CLT. Eu tive que ficar pegando um monte de trabalhinhos aqui e ali para não acabar com toda a minha reserva financeira.
Apesar de sempre acompanhada dos bebês, a maternidade é muito solitária? Achei a gravidez muito solitária. Passei muito mal nos primeiros meses. A gente precisava ganhar um salário para fazer isso, não é possível, é muito difícil. Me senti muito sozinha no começo da gravidez, e depois, quando o Luiz voltou a trabalhar. Fiquei meses sozinha, amamentando.
LEIA TAMBÉM: "Eu nasci para ser pai", escreve Milly Lacombe
Você costuma postar no seu Instagram sobre as questões da maternidade e compartilha sentimentos como a exaustão e os perrengues da amamentação, mas também abriu uma conta dos gêmeos. Foi um pouco no sentido de mostrar como a maternidade pode ser, ao mesmo tempo, muito difícil, mas muito maravilhosa? Tudo começou na introdução alimentar dos meus filhos. Percebi que tinha um talento para preparar as receitas. Eu já tinha talento para cozinhar, e quando comecei a criar e postar no meu Instagram, muitas mães passaram a me pedir as receitas. Algumas amigas minhas estavam fazendo um Instagram para os filhos, para poder postar no feed um monte de fotos de bebê sem encher o saco de todo mundo. E para os filhos terem um álbum no futuro. Juntou também a questão do dinheiro. Pensei que o Instagram pode vir a ser uma ferramenta para ganhar dinheiro, fazendo campanha com marcas que eu acredito. É um trabalho que eu almejo, porque faria com que eu pudesse escolher um pouco mais meus trabalhos como atriz. Não precisaria aceitar qualquer coisa para ganhar dois meses de vida. A gente não tem aposentadoria, né? Os atores norte-americanos têm um sindicato e, quando eles param, ganham uma grana por mês. A gente não tem essa organização. Depois dos filhos essa ficha caiu. Fico pensando como vou envelhecer nessa profissão, nesse mundo de freelas, de notas... É uma coisa que está mexendo muito comigo nesse sentido.
Você colocou seus filhos em uma escola pública, da Prefeitura. Como foi essa decisão? Foi interessante. Na minha infância na França estudei em escolas públicas, mas quando voltei ao Brasil estudei só em particulares. Quando meus filhos nasceram, comecei a pensar que seria interessante se eles frequentassem a escola pública, ganhassem uma criação mais inclusiva. Quando de fato chegou a hora da escola, eu e Luiz vínhamos de um ano de pouco trabalho e estávamos nos reorganizando financeiramente. Fizemos as contas e entendemos que seria muito difícil pagar uma escola para dois bebês. Fomos atrás do CEI e vimos como é legal a educação pública da primeira infância. Tive o momento de questionar se estaria tirando a vaga de alguém mais vulnerável que eu, mas meu marido sempre conversou comigo que não, que é um direito de todos e o Estado deve abarcar todo mundo. E está sendo muito legal, porque é uma via de mão dupla. A gente também cuida dessa escola e desse ensino. Existe uma forte interação dos pais. É uma jornada que está só começando e promete ser muito legal.
Como está sendo a adaptação à escolinha? Hoje foi o primeiro dia em que eles ficaram sozinhos. Por três dias estive com eles na sala. É muito legal vê-los indo para o mundo. Mas a gente passa a ter um protagonismo menor na vida deles, né? Não sou mais expectadora de tudo. Eles vão se machucar, podem não raspar mais o prato no almoço, são muitas crianças juntas... Mas uma hora decidi ter o meu silêncio de volta em casa.
Você está escrevendo um livro sobre a maternidade aos 40, pela Companhia das Letras, inspirado em um diário que escreveu na época. Você escrevia todos os dias? Às vezes escrevia todos os dias, às vezes passava uma semana sem escrever. Em média, escrevia a cada três dias. Mas não que eu vá publicar todos os escritos, porque lendo depois percebi que os dias eram muito repetitivos.
E como foi ser mãe aos 40? Os médicos só me falavam dos riscos. Enfim, é obrigação deles falar também, né, mas não entrei na pira. Se entrasse, com 40 anos, na pandemia, e grávida de gêmeos na mesa placenta – que é uma gravidez ainda mais arriscada – não rolaria.
Vocês estavam planejando engravidar? A gente estava na dúvida. Ser ou não ser mãe, eis a questão. Como não conseguia decidir, fiz um jogo e falei: “Vou transar uma vez sem camisinha pra ver o que acontece”. E engravidei de gêmeos. A roleta russa do amor, foi uma trepada só.
Como foi se descobrir grávida? Fiquei muito melancólica, deprê. Demorei para ficar feliz. Passei a gravidez inteira me despedindo de mim mesma, da minha vida.
A maternidade, no fim, é também é um luto da pessoa que um dia fomos? Muito. Eu pensava: “Nunca mais vou ver dez episódios de ‘Grey's Anatomy’ seguidos, nunca mais vou tomar um porre segunda-feira à noite, nunca mais vou acordar ao meio-dia”. Passei a gravidez inteira me torturando com essa de nunca mais. Mas, de certa forma, isso me ajudou a me despedir de mim. Agora tenho retomado alguns supostos nunca mais.
Os corpos das mulheres sempre foram vistos como propriedades públicas. De mulheres grávidas então, ainda mais. É como se o corpo pertencesse ao feto, à sociedade, a todo mundo, menos à mulher. Você sentiu essa patrulha? Total. Tanto que eu tive que mudar de médico para poder ter um parto normal. Lembro de um dia, na fisioterapeuta pélvica, de sentir exatamente isso que você está falando. De perna aberta, a fisioterapeuta passava a mão na minha buceta e mostrava para o meu marido: “Você vai fazer uma massagem aqui e...”, parecendo uma guia de um museu. Será que eles não percebiam que eu estava lá? Seu corpo vira público mesmo. Ouvia muito comentários do tipo: “Você precisa usar cinta depois porque senão seus órgãos vão cair” ou “Não pode comer açúcar porque seus bebês vão ter cólica”. Primeiro que não existe literatura médica comprovando isso. Segundo, mesmo se fosse verdade, eles teriam que lidar com um pouco de cólica, sim. Porque não consigo ser mãe, não dormir, amamentar e ainda não comer chocolate! Já me sentia culpada e as pessoas não paravam de me encher a paciência. Na gravidez essa patrulha não me incomodou tanto. Mas no puerpério, especialmente nos primeiros três meses, estava muito frágil. Chorava 18 vezes por dia. Um dia contei. E aí qualquer comentário me agredia muito.
Você então conseguiu ter um parto normal, como queria? Ia perguntar do parto, mas fiquei insegura porque muitas vezes ele não é como a mulher planejou, e poderia gerar frustrações... Agora tem essa coisa de não pode perguntar as coisas, né? Eu adoro perguntar. Sofro muito com essa coisa de não poder acessar certos lugares. Não tenho isso. Gosto de falar e eu gosto de perguntar. Tenho que me esforçar para não sair perguntando tudo para as pessoas. Troquei de médico com 34 semanas para tentar um parto normal. Induzi por volta das 12h e pari 1h. Quando cheguei num grau cinco de dilatação, comecei a tomar analgesia. Mas teve um momento que a minha analgesia falhou porque o cateter saiu. Senti a dor mais forte da minha vida. Veio um e depois de 25 minutos, o outro.
Você gostou de parir? Nossa, adorei! Foi um dos dias mais felizes da minha vida. Tenho uma foto do parto no meu quarto e quando olho, lembro: “Gente, que dia lindo”. Sei que para muitas mulheres o parto não foi como esperado. Muitas mulheres têm o parto roubado, entrei em contato com muitas histórias não felizes. Existe muita frustração. No Brasil, especialmente, é muito difícil sustentar um parto normal. O mundo te empurra para a cirurgia. É impressionante como as pessoas acham mais seguro cortar a barriga e tirar dois bebês do que ter um parto normal. Sempre tive muito medo de ser mãe, mas acho que eles vieram na hora certa. Se eu soubesse que era assim, talvez tivesse sido mãe mais cedo.
Você pensa em ter mais? Às vezes eu penso... Não, não vou ter mais. Morro de medo dessa minha fertilidade. Eu assisto televisão de camisinha. Mas, num mundo ideal, em que eu tivesse bastante dinheiro e tempo, talvez sim. Não quero, mas também não tenho esse pânico. Já tenho dois bebês, me sinto a mulher mais sortuda por ter sido presentada com eles, aos 39 anos. A loteria do amor total. Fico derretida.
Você escreveu um texto em 2015 na Tpm falando sobre como era não ter bunda no país das bundas. Neste Carnaval você postou uma foto antes de sair para o bloco com a bunda de fora. Como foi? Cara, foi muito engraçado. A gente fez todo um esquema com minha mãe e minhas irmãs para ficarem com meus filhos, por seis horas. Estava me arrumando em casa e coloquei a tal bunda na meia calça. Minha mãe e irmã não conseguiam esconder o espanto. Elas falavam assim: “Não... Tá linda. Se fosse no Rio seria mais normal" [Martha imita a mãe de olhos arregalados olhando na altura da sua bunda]. E eu entendo o que minha mãe pensa, porque vim do mesmo lugar. Não é só o fato de eu não ter bunda, tem um pedaço da minha família que é um pouco conservadora. Conservadora de costumes, não de posicionamento político. Eu estava com uma meia calça, nem estava tão pelada assim. Mas foi legal, fiquei feliz. Ainda mais depois de dois filhos...
A cada ano, mais mulheres estão saindo com o peito de fora no Carnaval. Como você entende esse espaço? Encontrei um monte de amigas com o peito totalmente de fora. Os meus são muito grandes, não nem consigo pensar em ficar sem sutiã. Mas o mais legal não é nem a mulher estar podendo mostrar seu corpo, é ela poder fazer isso sem ser assediada. Está sendo bem didático nesse sentido: “Não é para mexer, você vai ser cancelado se você mexer com alguém”. E eles não estão mexendo, pelo menos nosso entorno, no Carnaval de uma certa bolha.
Você declarou voto em Lula no ano passado. Não são muitos atores que têm coragem de peitar essa escolha. Foi uma questão para você? Olha, é desgastante se posicionar. Não é uma coisa gostosinha, você perde seguidores. Toda vez que eu faço um post mais partidário são 1000 indo embora. E é muito difícil ganhar seguidor. Eles comentam, mandam direct atacando. É desgastante. Acho que essa coisa da obrigatoriedade do posicionamento é muito delicada. Porque tem um custo emocional. E quem paga é quem posta. Além do que, não tenho a pretensão de achar que o meu post vai mudar muita coisa. Admiro quem se posiciona, mas não sou aquela que fica patrulhando se fulano se posicionou. Tem gente que se posiciona pra caralho nas redes mas não faz porra nenhuma para ajudar alguém na vida offline.
“Pagú - Até Onde Chega a Sonda”
Temporada: 8 de março a 27 de abril, às quartas e quintas-feiras, às 20h
Teatro Eva Herz - Livraria Cultura do Conjunto Nacional - Avenida Paulista, 2073 - Bela Vista
Ingressos: R$60 (inteira) e R$30 (meia-entrada)
Vendas online aqui
Classificação: 14 anos
Duração: 70 minutos
Local acessível para cadeirantes
Créditos
Imagem principal: Manoela Estellita/Divulgação