O novo ativismo...

por Milly Lacombe
Trip #278

... É antirracista, antilgbtfóbico, anti-islamofóbico, anti-antissemita… é anti qualquer tipo de discriminação e de opressão

Eu tinha 24 anos. Era representante de vendas de espaço publicitário em revistas e, como fazia todos os dias, saí de casa para visitar clientes e agências. A primeira parada do dia seria para uma reunião em uma das mais badaladas agências de publicidade de São Paulo. Fui recebida pelo diretor executivo da conta, com quem mantinha uma relação cordial de trabalho, e ele preferiu conduzir a conversa em uma sala reservada. Começamos com aquilo que os americanos chamam de small talk: falando das férias dele, da falta de aptidão que tinha com o mato e com as coisas da roça, conversamos sobre sua mulher e filhos e, antes de entrarmos na negociação de fato, a reunião tomou outro rumo. Lembro perfeitamente do momento em que ele se levantou, caminhou até o meu lado da mesa, abaixou a calça, expôs o pau duro e disse: “Quer pegar?”. Meu corpo se retraiu, senti vontade de vomitar e de gritar, mas disse apenas um trêmulo “não”. Peguei minhas coisas e saí da sala para nunca mais voltar.

Eu poderia listar dezenas de outras situações semelhantes, mas vou parar por aqui. Não conheço mulheres que tenham escapado de passar por esse tipo de violência. Todas nós, cedo ou tarde, somos expostas a abusos sexuais e morais. E há até bem pouco tempo achávamos que teríamos que nos conformar em ter a sorte de ir escapando, sempre silenciosamente e do jeito que desse.

O machismo é perverso e uma de suas muitas perversidades é que, no caso do abusador em questão, é bastante provável que suas filhas passem por violências semelhantes, nas ruas, com amigos, com chefes ou até mesmo com o pai, porque a maioria dos abusos sexuais acontece dentro de casa e é cometido por conhecidos.

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Estamos falando aqui de um homem branco, milionário e relativamente conhecido no meio publicitário. Mas não se engane: o machismo é democrático e invade todas as camadas. Trata-se de uma ideologia que envenena a sociedade sem poupar ninguém e cujo escopo vai do feminicídio às pequenas violências do dia a dia, como interrupções – delicadas ou bruscas –, explicações condescendentes, encoxadas em transportes públicos, desequilíbrio salarial etc., etc., etc.

Um crime muitas vezes silencioso

O machismo, assim como o racismo, é uma estrutura de poder, e lutar para destruí-las custa bastante coisa. Estruturas de poder estão amalgamadas na cultura e nas instituições e, por isso, circulam livremente por nossas correntes sanguíneas: somos criados e criadas para internalizá-las e, assim, deixar de percebê-las. Deixando de percebê-las, não temos como lutar contra elas. Mas essa nova onda feminista, muito impulsionada pelas feministas negras e pelas vozes da periferia, está inaugurando e promovendo importantes transformações.

Recentemente estive na África do Sul com algumas dessas mulheres, convidadas pelo órgão de turismo do governo do país, para refazer os passos de Nelson Mandela em celebração a seu centenário. A filósofa, escritora e ativista Djamila Ribeiro, a atriz Camila Pitanga, a cientista social e youtuber Nátaly Neri e a cinegrafista Carol Rocha pisaram pela primeira vez em solo africano – o solo de seus ancestrais – e viram de perto a história de uma improvável vitória: a do povo sul-africano contra o apartheid.

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Como sempre acontece em situações de opressão, havia durante os anos de apartheid leis que legitimavam a barbárie: eram 153 legislações que protegiam a política segregacionista do governo da África do Sul, e um dos conceitos básicos dizia: “O homem branco deve sempre permanecer como chefe”. Juízes, tribunais, imprensa e elite: todos contribuíam para legalizar um dos maiores crimes já cometidos contra a humanidade, assim como fizeram com o nazismo. Em 1962, Mandela foi julgado e condenado por tribunais, que precisavam tirar um líder eloquente como ele de cena; foi privado de sua liberdade por 27 anos. “O efeito insidioso das proibições”, escreveu ele, “é que tem uma hora que você começa a achar que o opressor não está fora, mas dentro”. Transformar a si mesmo, eis aí o grande desafio, pelo qual todos nós devemos passar.

Ver de perto a luta de Mandela e de seus camaradas, conhecer as histórias das mulheres, negras e brancas que, com ele, se entregaram à batalha por justiça social e igualdade racial é comovente. Homenagear aqueles e aquelas que perderam suas vidas durante o trajeto, lembrar de Marielle, entender como o barulho das vozes femininas no Brasil e no mundo está chacoalhando estruturas e implodindo organizações fascistas que tentam se fantasiar de democráticas foi uma inundação de esperança e de estímulo. Mandela saiu de quase 30 anos de reclusão para ser eleito presidente e cravar seu nome como um dos maiores na luta por direitos humanos: seu legado é patrimônio de todas e todos nós.

Os anos se passaram e hoje o novo ativismo tem rosto de mulher: Marielles, Monicas, Djamilas, Camilas, Nátalys, Amaras, Fernandas. É uma militância que ocupa as ruas com seus filhos na barriga e no colo. É também um movimento que inclui mulheres que têm pau e homens que têm vagina. Não exclui tons de pele, não exclui classe social ou gênero. Propõe que, ao libertar as mulheres, seremos todos libertados porque o machismo é uma estrutura de poder que aprisiona sem fazer exceções. O novo ativismo é antirracista, antilgbtfóbico, anti— islamofóbico, anti-antissemita… É anti qualquer tipo de discriminação e de opressão. Ele quer destruir estruturas de poder, quer libertar também o opressor de seus ódios e dos minúsculos castelos que têm o tamanho de suas caveiras e dentro dos quais vivem aprisionados.

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Para que nossas filhas não tenham jamais que ser expostas a interações sexuais não consentidas. Para que tenhamos direitos sobre nossos corpos. Para que ganhemos o mesmo salário de um homem exercendo a mesma função. Para que não sejamos interrompidas. Para que não sejamos silenciadas. Para que possamos amar quem bem entendermos. Para que não sejamos automaticamente associadas a trabalhos do lar. Para que nossas pernas não sejam jamais abertas sem nosso desejo. Para que todos os seres humanos sejam investidos de poder e de dignidade. Em nome do nosso gozo, do nosso prazer, do nosso grito.

Esse novo ativismo vai mudar o mundo, um machista e um racista por vez. Até que um dia todos os seres humanos sintam-se verdadeiramente livres, e as histórias daquelas que lutaram possam ser devidamente celebradas.

Marielle, presente

Créditos

Imagem principal: Divulgação e Arquivo Pessoal

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