por Alexandre Makhlouf
Tpm #181

Depois de ver de perto o impacto devastador da aids nos anos 80, Caroline Gammon abandonou sua vida punk e embarcou no budismo, onde abraçou sua fé sem limitar sua individualidade

Aqui no Ocidente, quando pensamos em uma figura religiosa, os trajes e o jeito sóbrio de se portar são, quase sempre, as primeiras imagens a se formarem na imaginação. No caso de Caroline Gammon, 54 anos, só a primeira característica é verdadeira. Quase sempre usando as vestimentas de lama, título budista conferido a pessoas de elevado nível de realização espiritual, a inglesa tem o riso fácil e solta piadas durante suas conversas.

“Queria me tornar freira quando jovem, mas meu professor (que era um monge celibatário) me aconselhou a não fazê-lo. Ele disse que eu tinha muita energia sexual e me incentivou a ter relacionamentos. Isso nunca colocou em xeque minha fé nos ensinamentos de Buda. A linhagem a qual Caroline pertence não exige dos lamas o celibato.

O budismo também não enfrenta qualquer resistência em conciliar os ensinamentos da ciência e da religião, como muitas vezes acontece no mundo ocidental. “A relação entre ciência e fé tem sido problemática só para os cristãos, nem um pouco para nós, budistas. O budismo surgiu da cultura védica da Índia antiga, em que as artes, a ciência e a religião eram cultivadas juntas, criando debates entre si. O próprio Buda foi educado em matemática, ciências, medicina, astronomia e linguística. Para nós, não existe essa dualidade. O ensino do karma de Buda é baseado no entendimento de causa e efeito, como a ciência, e geralmente os grandes mestres usam exemplos da observação da natureza, explica, sempre muito didática.

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A união desses dois universos sempre permeou a vida de Caroline, que desde pequena se interessava por física, ciências e matemática. Nascida em uma família protestante da Inglaterra, ela lembra que, já aos 7 anos, abriu mão da tradição cristã e parou de frequentar os cultos pois não encontrava ali as explicações para suas dúvidas sobre como o mundo funcionava. Em sua primeira passagem pela universidade, entrou no curso de física, mas um detalhe nem tão pequeno assim a fez repensar a escolha. “Minha vontade era aprender sobre física nuclear, mas, quando descobri que esse estudo estava a serviço do exército, das forças armadas, acabei desistindo e deixei a faculdade.

Lute como uma budista

Mesmo antes de largar o curso, Caroline não tinha o visual esperado de uma estudante de física. Os cabelos loiros eram tingidos de rosa e cortados no estilo moicano, seguindo a estética punk questionadora que ganhava força no início dos anos 80. As roupas, idem: correntes, alfinetes, calças xadrez e coturnos. Ela já não vivia com os pais e, por um tempo, morou em ocupações no subúrbio de Londres. “Sinceramente, a música era terrível, mas o punk para a gente era muito mais do que um gênero musical. Era um movimento de protesto que lutava contra a energia nuclear e o racismo e era a favor dos direitos LGBT, do feminismo, da causa ambiental, dos direitos dos animais e dos trabalhadores, afirma. Participar de passeatas, levantar cartazes e questionar o status quo era o dia a dia de Caroline. E, quando sobrava um tempinho, ela e sua turma punk encontravam diversão nas boates underground de Londres. “Gostava de dançar nos high energy clubs, febre em Londres nos anos 80, onde frequentemente encontrava Boy George, Divine e o pessoal da [banda] Bronski Beat.

“Quando a fé é baseada em experiências, aí sim ela pode criar raízes”
Lama Caroline

Na mesma época, a aids mostrava todo seu poder destrutivo pelo mundo. No Reino Unido, não era diferente. “Trabalhei no Lesbian and Gay Switchboard [segunda central telefônica mais antiga de Londres para atender a população LGBTQ+], que era uma iniciativa voluntária. Muitos jovens começaram a desaparecer e ninguém sabia o motivo. Não havia tratamento efetivo e a maioria das pessoas diagnosticadas morria em menos de um ano. Foi de partir o coração ver centenas de jovens enfrentando suas próprias mortes, juntamente com a exclusão social e a pobreza. A maioria deles foi rejeitada pela própria família. A gente mandava voluntários para ficar com eles até morrerem.

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A situação era crítica e apenas estudar para ser bem-sucedida não fazia mais sentido. Caroline começou a buscar todo tipo de terapia alternativa e centro espiritual que pudesse aproximá-la da resposta para aquela realidade injusta até que, finalmente, encontrou o que procurava em um centro budista. “Em tempos de paz, a maioria dos jovens não é confrontada com doença, morte e sofrimento nessa escala. Não havia muito o que fazer, exceto ter empatia e acolher. Isso me fez procurar uma maneira de realmente ajudar as pessoas. Foi o que me levou a praticar o budismo.

Um dia depois de conhecer o centro, ela se desfez de todas as coisas – com exceção do saxofone, instrumento ainda tem, mas pratica com menos frequência – e partiu para uma universidade budista em Cumbria, no norte da Inglaterra. Sem dinheiro, a forma que ela encontrou de chegar lá foi pegar carona atrás de carona nas estradas do Reino Unido. E, quando chegou, foi bem recebida e autorizada a ficar e aprender sobre o budismo, com a única condição de mudar o visual punk. Ou seja: adeus, moicano cor-de-rosa.

Nasce uma lama

Caroline passou dois anos e meio aprendendo sobre a religião budista ao lado do mestre Geshe Kelsang Gyatso e, já iniciada nas práticas, se isolou no interior da Inglaterra para meditar por tempo indeterminado. Ela não se lembra ao certo quanto tempo passou, mas, um dia, em 1991, recebeu uma ligação que mudou o rumo das coisas. “Quando atendi, era o Lama Gangchen Rinpoche, reconhecido como a reencarnação de grandes mestres budistas. Ele que foi o professor do Lama Michel, contextualiza para nós, brasileiros. Ele queria conhecê-la e pediu que ela fosse à Itália. Sem muito dinheiro e sem o endereço exato de onde ele ficava, ela comprou uma das passagens mais baratas, só de ida, saindo do aeroporto de Heathrow no meio da madrugada. Ao chegar em Milão, bateu de porta em porta pelo centro até finalmente encontrá-lo. “Foi incrível, porque senti imediatamente que já nos conhecíamos. Fiz algumas visitas e, em uma delas, me esqueci de ir embora, brinca.

“As pessoas estão acostumadas a ver homens na figura de lamas, mas existem muitas mulheres também”
Lama Caroline

Caroline se juntou ao lama Gangchen em suas viagens de ensinamentos e peregrinações pelo mundo, em que ele falava sobre espiritualidade de forma aberta e moderna, tocando em pontos como autocura tântrica e diálogos inter-religiosos. Foram nove anos de trabalho ao lado de seu mestre até, em 2000, ser reconhecida como lama no Tibet. “As pessoas estão acostumadas a ver homens na figura de lamas, mas existem muitas mulheres também. Isso pode ser uma surpresa para quem mora no Ocidente, mas a religião budista não faz distinção de gênero para assumir essa função, ela explica.

Caroline, que ocupa uma posição de líder espiritual, é também casada e explica o motivo de o celibato não ser uma questão para as tradições budistas. “A segunda nobre verdade de Buda diz que 'o sofrimento é causado pelo desejo'. E o desejo sexual é muito poderoso e pode causar todo tipo de sofrimento, como sabemos. Os monges e freiras que optam pelo celibato estão tentando se libertar de desejos avassaladores e podem atingir níveis muito profundos de paz interior quando não seguem sua libido e não se preocupam constantemente em serem sexualmente atraentes. É um caminho admirável e, por não ter relacionamentos e famílias, eles precisam de menos recursos, vivem de maneira mais simples e podem se concentrar em meditar, estudar e ajudar os outros.

Dos protestos nas ruas de Londres às meditações em montanhas tibetanas, toda a trajetória de Lama Caroline é marcada por detalhes que quase chegam a dar tilte na cabeça de quem foi criado na cultura cristã ocidental. “O Buda não esperava que seus alunos desenvolvessem fé cega em seus ensinamentos, mas instigava que eles testassem e só adotassem seus métodos se funcionassem. Quando a fé é baseada em experiências, aí sim ela pode criar raízes, explica ela, sempre didática.

Créditos

Imagem principal: Ilustração de Manuela Eichner sobre foto de Fabio Heinzenreder

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