Mulheres atravessam o cerrado mineiro a pé observando as tradições e as relações sociais, em um caminho inspirado na obra de Guimarães Rosa
Flavia caminhava em silêncio. Fátima sentiu dores e preferiu, em alguns trechos, seguir de carro. Patricia, ao fim da caminhada, observava as marcas de sol no peito, ao lado da cicatriz.
Na noite de 12 de julho, elas abriam largos sorrisos. Haviam caminhado 180 quilômetros ao longo de seis dias. No lugar da linha de chegada, encontraram uma fogueira. Acima das cabeças, céu clareado de estrelas. Era o fim de mais uma edição do Caminho do Sertão, jornada pelos vales dos rios Urucuia e Carinhanha, na região noroeste de Minas Gerais.
A proposta é utilizar a caminhada como meio de conhecimento. No roteiro, arte e cultura se unem às observações da natureza, tradições e relações sociais. Na andança pelo cerrado mineiro, o grupo passa por paisagens descritas no romance Grande Sertão: Veredas, do escritor João Guimarães Rosa (1908-1967). Comunidades tradicionais, como quilombolas, e propriedades de prática de agricultura familiar também estão na rota.
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Adentrando o sertão
Os pontos de início e fim do roteiro remetem à obra de Guimarães Rosa. Sagarana, livro de contos publicado em 1946, é também o nome da vila de cerca de 600 habitantes onde tem início a caminhada. Seis dias depois, o grupo chega à cidade de Chapada Gaúcha e termina a jornada com uma visita ao Parque Grande Sertão Veredas. Dos nomes às paisagens, o trabalho do escritor permeia todo o caminho. Quem tem conhecimento da obra, logo reconhece os buritis (espécie de palmeira) ou percebe, no sotaque dos moradores da região, a semelhança com passagens dos livros.
A proximidade com a literatura é um dos critérios de seleção dos participantes. Além disso, têm preferência moradores de comunidades tradicionais da região do roteiro e “sonhadores, ativistas culturais e socioambientais, músicos, artistas populares, escritores e poetas”, como informado no edital de seleção, entre outras característica favoráveis ao pretendente a caminhante. Qualquer pessoa pode se inscrever e o número de selecionados varia, em cada ano, de acordo com os recursos disponíveis para a realização do evento.
Nas duas últimas edições, o processo seletivo exigiu carta escrita à mão. No papel, os relatos femininos se destacavam por quantidade. Os dados da primeira e segunda edições, realizadas em 2014 e 2015, não estavam disponíveis. Contudo, pelo menos desde 2016, as mulheres são maioria entre as pessoas interessadas em fazer a caminhada. Em 2019, foram 408 inscritos e 82 selecionados, sendo 55 mulheres. Em 2018, elas eram 42 dos 57 escolhidos. De acordo com a organização do Caminho do Sertão, a porcentagem anual de inscrições femininas é de, em média, 70%. Esses dados definem a composição do grupo. Ano após ano, os pés femininos dominam a marcha sertão adentro.
Primeiros passos
Antes de partir em caminhada, o grupo se reúne em um ginásio, na vila de Sagarana. Sentados em círculo, recebem orientações sobre cuidados consigo, com o outro e com o ambiente onde, pelos dias seguintes, andarão e farão pouso. Cada pessoa se apresenta, dizendo de onde vem e por que está ali. Depois, convida alguém para fazer o mesmo.
Quando Fátima Cristina Silva entrou na roda, tinha os olhos marejados. Os pés, inquietos, a conduziam para frente e para trás. As palavras saíam entrecortadas por suspiros. “Eu sou casada há 40 anos. Estou aqui para, depois, voltar e re-conhecer essa pessoa que vive comigo”, disse, fazendo pausa entre o “re” e o “conhecer.
Mãe de duas mulheres e um homem, há poucos meses, Fátima tornou-se avó. E, agora, redefine a percepção sobre si e sobre a relação com o marido. Aos 56 anos, ela nunca havia feito uma caminhada desse tipo. Lançar-se na aventura e testar os limites do corpo significa, também, redescobrir-se. “O desafio estava posto, assim como meus filhos que alçaram voos, estava eu ali também alçando voos que jamais tinha imaginado”.
Pesquisadora na área de desenvolvimento de territórios sustentáveis, ela viu na proposta de imersão no cerrado uma possibilidade de adquirir conhecimento para aplicar ao trabalho. Logo no início, percebeu que a experiência poderia ir além do campo profissional. Afinal, caminhar por seis dias ao lado de pessoas desconhecidas é um exercício de sair da zona de conforto.
Com o passar dos quilômetros, o andar ficou lento. Num trecho, quando o sol ardia e os passos vacilavam sobre a areia fofa, Fátima apertava os olhos, exprimindo a dor sentida nos pés. O corpo pendia sobre a perna esquerda para aliviar o pé direito. O suor escorria em linhas por debaixo da aba do chapéu. Ali, decidiu entrar no carro de apoio.
Respeitar os limites do corpo foi um dos aprendizados. As longas horas andando sob sol, as conversas em grupo e o compartilhamento de experiências trouxeram também outras reflexões, lembrando-a das razões de estar ali. “Foi tempo de reviver, relembrar, reolhar, ressignificar, recriar e tantos outros ‘re’… Repensar, pensar, reelaborar... resiliência!”.
Encontros silenciosos
Em determinados trechos, os caminhantes encontram carros para reabastecer as garrafas d’água ou acalmar o estômago com alguma fruta. Encostado à lateral de uma caminhonete, um rapaz separava bananas de uma penca. Dentro da carroceria, um facão repousava ao lado dos pedaços de melancia. Flavia se aproxima. O rapaz brinca: “Fala qual você quer, e eu te dou”. Ela sorri e aponta a melancia.
Os passos da estudante Flavia Megda, 23, tinham a mesma leveza das suas palavras. Com fala pausada, ela explicou a razão pela qual ninguém ouviria sua voz durante as horas de caminhada. “Há pouco tempo, meu avô encantou-se, que é como se diz aqui em Minas quando alguém morre. Ele era uma pessoa muito quieta, passava, às vezes, dias em silêncio. Por isso, em homenagem a ele, vou fazer a caminhada em silêncio”.
Quando, logo após o nascer do sol, o grupo pegava a estrada, Flavia silenciava e só retomava os diálogos ao fim de cada trajeto. Respondia com sorrisos e acenos às conversas e brincadeiras. Num ambientes de muitas conversas – todos ali estavam conhecendo uns as outros, passando dias e noites juntos – ela sentiu-se desafiada.
“Chegou um momento que eu senti muita necessidade de interagir, de falar, de rir, de cantar. Isso foi no penúltimo dia de caminhada”. Nesse dia, o grupo caminha 14 quilômetros, entre subida e descida da Serra das Araras, sem contar com veículo para resgate e reabastecimento de água e alimento. É um dos trechos mais desafiadores do roteiro. Por isso, os caminhantes recebem o aviso: quem não está preparado, não vá.
Flavia aceitou o desafio, mas desistiu do silêncio. Ali, falou de tudo. Apesar de quebrar o pacto, tirou aprendizado da experiência. “Eu realmente conseguia esperar, digerir algo, ver se era realmente necessário e isso tá refletindo até hoje. Quando eu vou falar alguma coisa, eu tô me percebendo pensando: será que isso é realmente necessário falar?”.
O silêncio também foi companheiro da professora Patrícia Chavda, 53. No último dia de caminhada, andando sozinha durante parte do trajeto, ela compreendeu suas dores emocionais.
“As reflexões propostas (…) O corpo no limite do cansaço, me deixou num estado de não-estado, totalmente em movimento. Foi inevitável não transbordar as minhas histórias todas numa linha de tempo em vaivém”, lembra. Na caminhada, ela rememorou um fato traumático, sentiu vontade de falar sobre ele e encontrou espaço para isso.
O Caminho do Sertão começa como termina: com roda de conversa. Mais íntimos uns dos outros, alguns sentiam-se à vontade para contar histórias pessoais digeridas ao longo dos seis dias. Nesse momento, Patrícia falou em público, pela primeira vez, sobre a tentativa de feminicídio sofrida. Ela leva no peito a cicatriz da facada. Teve pulmão perfurado, passou por cirurgia. O agressor, homem com quem foi casada por 14 anos, cometeu suicídio em seguida. Os dois filhos do casal presenciaram tudo.
“Então, no momento em que expressei parte da minha experiência de vida na roda de conversas final, com certeza o sentimento era de vertigem ao final de dias tão intensos. Antes de iniciar a caminhada, eu estava ciente do desafio do percurso em termos de esforço físico e algumas privações de conforto. A surpresa foi esse “deslocamento” interno mais visceral que o próprio corpo!”, observa.
Ao fim do relato, Patrícia recebeu olhares afetuosos de Fátima, de Flávia, de Marina, que caminhava cantado as canções preferidas dos filhos; de Haydée, que, num riacho silencioso, livrou-se do sutiã; de Gabriela, que animou o grupo cantando sambas; de Julia, que caminhou ao lado do pai; de Daisy, que leva no peito a tatuagem ni dios ni patron ni marido; e, se possível fosse, de Diadorim, personagem do livro Grande Sertão: Veredas, mulher escondida sob trajes de homem para ser aceita no bando de jagunços cujos rastros fictícios marcaram aqueles caminhos tão reais do sertão mineiro.
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Créditos
Imagem principal: Gleice Lisboa