Em pleno século 21, Lua Fonseca ousou largar o emprego para se jogar no tanque de areia com os filhos – e não se arrependeu
Ser mãe me permitiu rever a relação com o trabalho de forma transformadora. Tinha me programado para ser uma alta executiva, daquelas ocupadíssimas com os problemas dos outros, que tem sempre uma mala meio pronta e que iria até Nova York só para ter reuniões estratégicas. Não sabia muito bem o que essas figuras faziam, mas era essa vida que eu queria. Uma certa impermanência, um quê de importância, grana e ego. Uma mistura quase perfeita para uma garota de 18 anos.
Quase 20 anos depois e com quatro filhos na conta, entendi que, para desempenhar o meu melhor papel, teria que abrir mão de algumas coisas, refazer outras e até criar algumas delas. Não foi fácil, mas foi fundamental para ser quem sou hoje e, principalmente, para a profissional que me tornei. Se percebêssemos as coisas mais como processos, e não como pontos de chegada, gastaríamos menos tempo com a ansiedade de realizar, fazer, ter sucesso. E o que é ter sucesso mesmo?
Achei que seria fácil. Não contava em ser atropelada pelos hormônios da chegada do meu primeiro filho e ali, dez anos atrás, tudo o que eu havia planejado deixava de fazer sentindo. Foi preciso sonhar novamente, desenhar novas conquistas e recalcular a rota.
Quando João nasceu, trabalhava em uma agência de publicidade grande, ganhava bem e, em troca, tinha que deixá-lo na creche às 9 horas e só vê-lo à noite. Era uma equação que começou a não fazer tanto sentindo para mim. Sentia que precisava estar mais com ele e trocava qualquer promoção por uma manhã no parquinho fazendo bolo de areia.
Mas que mulher larga o emprego para ficar com os filhos em pleno século 21? E a independência, o feminismo, o orgulho? Não tinha respostas para essas perguntas, mas fui tomada pela angústia de não ver meu filho e, assim, me despedi da agência e me joguei no tanque de areia. Enquanto a criança estava na escola, buscava entender o que era essa nova versão de mim, o que gostava de fazer. Claro que essa decisão foi amparada por um privilégio sem tamanho de estar numa relação com um marido que topava, apoiava e incentivava esse tempo para a minha maternidade. Sem isso, a história teria sido um tanto diferente.
A cegonha volta a atacar
O meu processo de reinvenção começou com um resgate de uma paixão adolescente. Moda. Era isso. Precisava dar um jeito de trabalhar com moda. Estamos falando de um oceano de possibilidades, certo? Espremendo essa paixão, entendi que tinha algo além da roupa, que eram as pessoas, mais especificamente as mulheres, que vestiam aquelas peças. Bingo. Vou ser consultora de estilo ou personal stylist (para os mais bestas). Entender a relação das pessoas com a própria imagem através do que elas vestem era como ser terapeuta de guarda-roupa. Cada casa, muitas histórias, muitas questões pessoais fortes, muitas mulheres incríveis. Eu ia me abastecendo de cada uma delas e assim segui por quatro anos nessa carreira, que me dava algum dinheiro, muita realização pessoal e aquilo que mais queria: tempo.
Nesse período, a cegonha, essa danada, encontrou meu endereço mais duas vezes. Num piscar de olhos, tínhamos três filhos, empregos instáveis e pouco dinheiro. Essa não é a receita de um casamento feliz ou de uma família perfeita, mas estar nessa condição fez a gente dar as mãos, formar um time. Diante desse cenário e dessa quantidade de filhos, era hora de repensar, mais uma vez, a carreira, os planos.
Parei de trabalhar para ficar com as crianças. Essa frase é impactante. De alguma forma muito maluca, a gente desmerece o trabalho que é ficar com os filhos. Desmerecemos o trabalho que dá cuidar de uma criança. Três então, nem te conto. Mas não falava sobre isso. Tinha certa vergonha de não estar vivendo uma vida sem tempo e sem qualidade. Foi preciso coragem para assumir esse meu novo papel. E a decisão de parar veio de uma necessidade de organizar emocionalmente as crianças. Fazer parte de uma família numerosa é muito legal, mas pode ser caótico e eu sentia que estávamos nos perdendo.
Parei.
Cuidei.
Olhei para eles.
Conheci profundamente meus filhos.
E foi transformador.
Entendi a minha força produtiva a partir da relação com as crianças. Entendi que era preciso trazer para a superfície o respeito por quem eles são e isso passou a orientar meus passos. Fui estudar sobre isso.
Mais uma visita da cegonha. Quatro filhos. Casa cheia. Joaquim, meu caçula, trouxe uma tranquilidade e uma urgência de compartilhar meu processo de conexão. Conheci a Disciplina Positiva, me tornei educadora parental, inventei um jeito de trabalhar. A base dessa teoria fala sobre respeito de um lugar novo e desafiador, simplesmente porque não estamos acostumados a dar voz às crianças, aos seus processos e sentimentos. Entender isso é como andar pelo caminho do meio, onde pai e mãe não são autoritários nem permissivos, mas percebem seu papel de forma mais humanizada.
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Voltei a estar com outras mulheres, chamei os pais para a conversa. Montei um workshop com o qual ganho dinheiro para falar sobre educação, sobre nossos desafios e essa coisa doida que é ter filhos. Me autorizei a fazer aconselhamento com base no pensamento da educação positiva e, a cada atendimento, é como se plantasse uma semente de mudança.
Essa minha jornada só foi possível por não me sentir acolhida pelo mercado de trabalho, em que falar sobre flexibilidade ainda é algo malvisto. Ali, vale mais a pena reproduzir um modelo do século passado do que abrir mão do controle.
Questionar esse modelo é o início de um longo processo que precisa começar na gente. O que é importante para nós? No que acreditamos? Sem essas perguntas, seguimos de cabeça baixa, lutando por um crachá que pague as contas e deixe buracos na alma.
Créditos
Imagem principal: Sandra Jávera