Gabriela Manssur: guerra e paz

A promotora de Justiça trabalha em projetos que visam tanto proteger a mulher agredida quanto reeducar o agressor

As luzes do Ministério Público do Estado de São Paulo estão apagadas. É tarde e não há quase mais ninguém no prédio. O segurança abre para uma mulher jovem. Ela procura a promotora de justiça Gabriela Manssur, 44 anos, que fez dezenas de atendimentos ao longo do dia. A advogada é uma máquina de trabalhar. Acorda às 6 horas para correr, passa pelo salão de beleza quando precisa, e às 8h30 está pronta para assumir a missão de defender mulheres vítimas de violência.

Gabriela é uma referência em sua área, tem um blog sobre o tema há cinco anos (justicadesaia.com.br). Faz parte do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) – onde também é diretora da Mulher da Associação Paulista –, é membro da Comissão dos Promotores de Justiça, representante do MP paulista na Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário de São Paulo e idealizou diversos projetos, como o Tempo de Despertar – Ressocialização do Autor de Violência contra a Mulher, que visa diminuir a reincidência dos agressores e se tornou lei em São Paulo, e o Tem Saída, que atua na inserção de mulheres vítimas de violência doméstica em situação de vulnerabilidade econômica no mercado de trabalho. Ela faz, ainda, mestrado em direitos políticos e econômicos.

Não foi simples chegar até aqui. Gabriela precisou, primeiro, ganhar autonomia financeira para conquistar o respeito da família – seu pai, sua mãe e seus irmãos também têm cargos na Justiça. Em nome da independência e da liberdade de escolher seu caminho, trabalha desde os 16 anos.

Sem parar

Aos 25, deu à luz Camila, que hoje tem 19 anos e prefere trilhar o caminho da moda como carreira. Enquanto amamentava, Gabriela estudava para ingressar no Ministério Público. Demorou quatro anos, mas conquistou o segundo lugar no concurso, o que lhe garantiu boas comarcas. Ela queria mais, mas o casamento não dava espaço para voar tão alto. Quando perguntaram se ela sossegaria depois de conseguir a vaga no MP, ela respondeu: “Não, agora é que vou começar”.

Separou-se. Foi questionada se daria conta de cuidar da filha, mudar de cidade e das demandas da carreira. Persistiu, como tudo o que faz. Quinze anos depois, conquistou um gabinete na capital paulista. Casou-se de novo. Assim como ela, o ex companheiro e o atual são da colônia árabe, mas o segundo “tem uma visão mais moderna”, o que faz com que entenda melhor a rotina atribulada. Com o atual marido, o empresário Claudio Trabulsi, 49, teve dois filhos: Felipe, 9, e Artur, 6. 

Encampa também o desafio de criar meninos que saibam respeitar as mulheres. E de ajudar a filha adolescente a reconhecer os sinais de relacionamentos abusivos. “A violência contra a mulher começa com sutilezas”, avisa.

Gabriela admite que, às vezes, essa rotina pesa e a deixa dividida, especialmente com as crianças e a filha. Lamenta quando chega em casa e todos já dormiram. Mas acha que vale a pena quando nota que os filhos entendem a importância do que ela faz.

Atualmente se sente isolada na sociedade machista na qual está inserido o sistema de Justiça, situação corroborada pela ministra do Supremo, Cármen Lúcia, que disse que as leis foram feitas para homens, sem considerar a realidade das mulheres. Mas garante que não vai desistir: o que a move é a certeza de que esse trabalho é indissociável de quem ela é. “É a minha razão de ser.”

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Trip. Em quem você se inspirou a ser feminista?

Gabriela Manssur. A vida me ensinou o feminismo. É um estilo de vida, não é uma frase, não está em um livro. É importante você observar a desigualdade entre gêneros, a injustiça contra as mulheres e o quanto é necessário se colocar diante disso para mudar essa realidade. Todo mundo deveria ser feminista.

Como os homens com quem você convive enxergam o seu trabalho? Recebo retornos assim: “Nossa, Gabi, depois que eu comecei a observar as coisas que você fala, mudei meu comportamento. Percebi que tinha umas condutas machistas que eram muito ruins para mim, para minha mulher e minha filha”. Ou: “Outro dia eu ia postar uma piada num grupo e lembrei de você, veio a sua imagem na minha frente”. Ao mesmo tempo, os caras que tomam essas posturas escutam “ah, agora virou feminista”. São criticados por terem tomado atitudes corretas, que vão ao encontro dos interesses das mulheres. O feminismo não é contra os homens, é a defesa dos direitos, com respeito.

Você é uma mulher independente hoje em dia. Como foi o começo? Sempre quis ser independente porque eu via como a dependência do homem é nociva para a mulher, a dependência psicológica e a financeira. Às vezes, minha mãe queria comprar alguma coisa e não podia porque não trabalhava. Era aquela coisa de ficar prestando contas para o homem. Peguei casos de processos em que o cara cortava a internet da mulher porque ele que pagava. Ela estudava on-line, se esforçava, ele ia lá e cortava a internet. Comecei a lembrar como é difícil a mulher dependente conseguir ter espaço. Eu via que minha mãe queria estudar, mas se meu pai era contra, ela não tinha quem pagasse a faculdade porque casou muito cedo e dependia economicamente dele. Aí minha avó materna tinha que fazer sanduíche, bordar sapato. Lembro da minha mãe bordando vestido de noiva para vender e conseguir um dinheiro para a faculdade [antes de se tornar advogada]. Essa dependência econômica prende muito a mulher, por isso, com 16 anos eu já trabalhava.

De onde veio o desejo de ser promotora de justiça? Sempre tive uma grande admiração pelo meu pai, que trabalhava em cargos públicos, prestou concurso, era autoridade, tem amor pela Justiça. Achava o máximo, mas pra mim era uma coisa inatingível. Eu pensava: “Quero casar com um homem como ele”. Só quando entrei na faculdade e comecei a trabalhar com minha mãe vi que a mulher também pode ser assim. Por isso eu falo que o feminismo a gente aprende todo dia

Quando o tema da violência doméstica entrou na sua vida? A mulher acaba convivendo com a violência doméstica, muitas vezes não é a física, mas é o controle, a proibição, o limite, é o homem falar que aquilo lá não é para ela. Isso é uma violência contra a mulher; ela não precisa levar um tapa. A violência se dá na ofensa, desqualificação, imposição. Percebia que as clientes da minha mãe entravam no escritório para fazer separação, divórcio, guarda, pensão alimentícia, mas ninguém falava nada da violência que elas estavam sofrendo, física, psicológica, sexual. Essa parte criminal começou a me instigar por ninguém fazer nada. Xingar de vagabunda é normal.

Nunca aconteceu nada disso com você? Sobre isso, eu não gostaria de falar. Mas aprendi no meu dia a dia o que é a violência contra a mulher e resolvi lutar contra. Quero que as pessoas saibam que trabalho com isso não porque eu sofri violência, mas porque quero ajudar outras pessoas e, assim, ajudo a mim mesma. Quero ser conhecida como uma promotora de justiça que defende os direitos das mulheres. Eu sinto na pele o que as mulheres sentem e é com o meu trabalho que vou transformar a vida delas.

Você encara o seu trabalho como uma missão? Total. Não só como uma missão, mas também como uma paixão, que é lutar pelas mulheres. Meu trabalho é a minha razão de ser. Quando eu atendo os casos – as vítimas –, leio os processos, sempre me sensibilizo, me emociono, me coloco no lugar. Consigo sentir a dor da mulher, o que me faz ter uma força maior na audiência, no júri, no atendimento, no desenvolvimento de um projeto. Tem também o fato de que poucas mulheres faziam a parte criminal, elas iam às delegacias e eram desacreditadas. Havia certa pressão para elas não denunciarem. Aquilo me incomodava muito porque ninguém fazia nada.

A sua rotina é muito intensa. Como você dá conta de tudo? Sou muito organizada. Nem sempre consigo cumprir tudo com o que me comprometo, o que é ruim. Mas às vezes você tem que estar presente para o filho doente, para a filha adolescente. Procuro ser bem organizada e durmo pouco mesmo.

Chega tarde em casa? Sim, mas procuro não sair à noite. Quando saio, vou a algum lugar com meu marido. Não marco compromisso à noite com amiga. Foram escolhas que fiz. Por isso, tenho poucas amigas. Não consigo me dedicar muito à amizade, as que eu tenho entendem a minha rotina, não tem uma cobrança.

Como você lida com a culpa? Não lido! Estou sempre culpada, pode me condenar, mas põe a pena lá embaixo porque tenho vários atenuantes, tá? [Risos.] Tem dias em que você se sente muito culpada, quando dá algum problema no trabalho, tem alguma frustração ou perde uma condenação, te passam para trás, uma fofoca, alguma coisa interna do trabalho que faz você falar “vale a pena?”. Agora, quando você está plenamente satisfeita, não tem culpa. A felicidade que sente e a satisfação pessoal compensam isso. 

Como seus filhos lidam com seu trabalho? Meus filhos adoram meu trabalho, eles
superapoiam, são engajados, me ajudam. Eu transfiro a eles uma satisfação pessoal. É um trabalho social muito legal, eles nunca questionaram.

E seu marido? A gente discute, isso é normal, a gente se gosta muito, mas há uma cobrança entre marido e mulher. Se uma mulher falar que não há, quero conhecê-la. O homem apoia até a página dois, três, quatro ou cinco. E pronto. Tem homens que nem abrem o livro para saber em qual página você está. Numa das discussões, meu marido falou: “As crianças sentem a sua falta”. Eu disse: “Não, espera aí, o espaço de fala disso não é seu”. Sentei os três e perguntei se sentiam minha falta e se sou uma boa mãe. Coitados [risos]. A Camila já é maior e está acostumada, então ela olhou para mim e falou: “Mãe, você é a verdadeira promotora de justiça, está fazendo um júri dentro de casa!”. Os pequeninos falaram: “Mãe, você é uma ótima mãe, você é muito cheirosinha”. Então assim, se tivessem alguma queixa, teriam dito. Eles mandam mensagens, a gente vai se falando. Nasceram assim, eu trabalhei até um dia antes de dar à luz os dois meninos, fiz júris grávida. Eles estão superacostumados.

Apesar disso, você fica chateada? É claro que às vezes não consigo ir a algumas coisas e fico triste. Aí, explico. Tem dias que eles ficam me esperando, chego mais tarde e eles estão dormindo, me corta o coração. Na semana passada aconteceu uma coisa que ficou marcada: meu filho pediu para eu chegar logo. Demorei porque comecei a fazer um negócio, entrou outra coisa, saí tarde da audiência, me empolguei com um evento. O tempo acabou passando. Eu cheguei em casa e tinha um bilhetinho dele que dizia: “Mãe, meu dente caiu e estou esperando a fada do dente”. Aí peguei o dente, pus o dinheiro embaixo do travesseiro e no dia seguinte ele comemorou – “Mãe, a fada veio!” –, viu que o bilhete funcionou. Me senti triste.

Dá tempo de namorar? Qual é o equilíbrio? Dá. A gente tem a quarta-feira para sair junto. Acontece que ele é corintiano e toda quarta-feira tem jogo do Corinthians. Falei: “Não reclame de mim”. Mas é bom, porque todo mundo tem as suas redes e não é que ele goste menos de mim e mais do Timão. (Acho que ele gosta mais do Timão!) [Risos.] Hoje em dia procuro não trabalhar de fim de semana, mas já precisei. Evito. Não é porque a gente é feminista que só tem que trabalhar – e eles têm que aceitar. Não dá para sacrificar a vida pessoal pela vida profissional e não é isso que o feminismo quer. Ele quer que as mulheres sejam livres e felizes. O Dinho [marido] cede de um lado e eu cedo do outro. A mulher tem que ter liberdade de escolha.

A situação da violência contra a mulher mudou muito depois da lei Maria da Penha, não é? É a terceira lei mais importante do mundo, mais completa. As pessoas perguntam por que o Brasil é o quinto país do mundo com maior índice de violência se tem uma das melhores legislações. Porque o Brasil é muito grande, existem diferenças culturais no território brasileiro; o que serve em São Paulo pode não servir no Nordeste. A cultura machista está enraizada no brasileiro. Embora tenha uma lei para proteção da mulher, ela sequer é ouvida – e, quando é, é desacreditada. Podemos ter a melhor lei do mundo, mas se ela não é vista como uma mulher que está em situação de violência, mas, sim, como uma mulher que está querendo se vingar de um relacionamento ou que quer prejudicar alguém, como uma louca, nós não conseguiremos avançar.

Como você percebe essas tentativas no sistema? Por exemplo, colhi as 30 falas machistas de março, mês internacional da mulher. Me refiro à minha vida profissional e pessoal, o que escutei em mesa de jantar, em audiência, muitas vezes das próprias autoridades que trabalham com violência doméstica. O que mais ouvi foi: “Ela é louca”; “ela toma remédio controlado”; “ela bebe”; “ela estava de minissaia”; “ela traiu”; “ela que provocou”; “ela partiu para cima dele”. Quando vai fazer uma denúncia, a mulher passa de vítima para o banco das rés. Enquanto nós não mudarmos isso, não avança.

Como atuar nessa mudança? É preciso mudar essa masculinidade enraizada em que eles têm que ser machões, como se homem não pudesse chorar, não pudesse apoiar as mulheres, tivesse que ser o “pegador”. Nunca me esqueço de um caso: uma menina de 12 anos foi estuprada dentro de uma escola por três alunos e eles eram menores. Eu era promotora da Infância e Juventude, e a fala deles foi: “A gente foi lá e fez o que o homem tem que fazer. Ela estava se oferecendo”. Eles crescem com essa cultura. É muito forte essa masculinidade de “eu tenho que ser o machão”. É uma das causas da violência, essa masculinidade muito intensa do homem brasileiro, de ter que mostrar que é o machão e colocar a mulher sempre como objeto de desejo. Estou generalizando, falando do aspecto cultural.

E do ponto de vista da lei? Há uma questão na aplicação da lei Maria da Penha: ela é muito moderna para a estrutura do Judiciário brasileiro, do Executivo, do Legislativo e do Ministério Público. Nós não temos a estrutura adequada para atender a lei e a demanda que ela gerou. O ideal seria que todas as cidades tivessem delegacias especializadas e, nas regiões que têm maior índice de criminalidade contra a mulher, elas teriam que funcionar 24 horas nos sete dias da semana. Na maior parte das vezes, a mulher sofre violência à noite, aos fins de semana e feriados, quando não tem delegacia da mulher. Aí, ela terá de procurar uma delegacia comum, em que vai aguardar ser atendida misturada com roubo, tráfico, latrocínio, homicídio, que são crimes graves. É necessário que existam varas especializada em todos os lugares, porque a violência contra a mulher é grave também. Com a falta de estrutura familiar, a criança que cresce com violência aprende a ser violenta, a desrespeitar a mulher, acaba desenvolvendo um comportamento violento. Isso gera violência em outras frentes.

Além do aspecto criminal, que outras garantias estão envolvidas na lei Maria da Penha? É uma violência que não se exaure só na parte criminal, existem outros aspectos que são tão importantes quanto: o encaminhamento da mulher para a equipe multidisciplinar de atendimento psicológico, médico, o retorno ao mercado de trabalho... Se precisa ir para um abrigo, se está sofrendo perseguição, correndo risco de vida, ela precisa de tratamento. Não adianta só eu ficar aqui processando, fazendo audiência. É o meu papel, mas isolado não adianta. Se eu não fizer o projeto para colocar a mulher no mercado de trabalho, como ela pode se empoderar? O esporte que faz bem pra mim não vai fazer bem pra ela por quê? Vamos fazer uma corrida, vamos levantar essa autoestima.

Quando a mulher consegue perceber que aquele relacionamento é abusivo? Quando ela já não se reconhece mais titular de direitos, não consegue fazer as coisas que ela quer. Coisas simples como não botar o batom que você gosta porque a outra pessoa falou que você fica feia e que é coisa de vagabunda. Quando tem que seguir o padrão que a outra pessoa impõe, quando não tem mais liberdade de pensamento, de locomoção e de determinação, não tem o poder de decidir a roupa que quer vestir, o trabalho que vai fazer, se vai cozinhar, se vai trabalhar, se vai ter amiga. Quando as suas redes sociais são invadidas, o seu dinheiro é controlado, a sua roupa é controlada, a maquiagem é controlada. Quando ela é desqualificada. São aspectos que se percebem na sutileza, não vai ser na primeira.

Nessa dinâmica perversa, existem oscilações entre muito amor e desqualificações? Isso é o que mais pega a mulher. É o padrão geral: o homem que é abusivo constrói um relacionamento muito rápido e intenso com a mulher que ele mal conhece. E se aquela mulher está com a autoestima baixa ou está querendo arrumar um namorado, como todo mundo pode querer, ela acaba não percebendo essa sutileza. Se envolve, escuta juras de amor, ela se sente a melhor mulher do mundo. Se entrega muito para a pessoa. A mulher precisa saber que a felicidade está com ela, e não nas mãos de outra pessoa, que pode ser abusiva.

Se ela estiver com a autoestima muito baixa, é difícil de enxergar. Exatamente. Aí, depois que ele já seduziu a mulher e está num relacionamento muito intenso com ela, não digo de tempo, mas de intensidade, combinando de casar, por exemplo, é a hora que ele vê que tem o controle da situação. Aos poucos, começa a limitar a liberdade dela, até o momento em que ela não consegue mais reagir e passa a ceder. Vai abrindo mão das coisas que a deixam feliz. Na hora em que ela vai reagir, às vezes é tarde demais. Ela quer romper, vêm as ameaças. Quando quer retomar a relação, ele começa a desqualificá-la e diz: “Ninguém gosta de você, você é horrorosa, não faz nada, não trabalha, não estuda, é uma ignorante, uma porcaria”. 

Até esse ponto, não há violência física, mas não deixa de ser violência, certo? Sim, você não se dá conta. Por que cadê a violência física? Você levou um tapa? Depois vem o xingamento e quando essa mulher resolve voltar a ser quem ela era, ele a ameaça: “Se você não ficar comigo, não vai ficar com mais ninguém”. Existe nesse homem abusivo um sentimento de posse e controle. Às vezes, ele nem gosta dessa mulher, mas não quer perdê-la porque está acostumado a controlar. Uma vez ouvi da Luiza Brunet que o homem que comete violência sente prazer naquilo. Comecei a reparar, aprendi isso com ela, com uma vítima. Aprendo com a vítima todos os dias. Ela disse sentir que, depois da violência, ele tinha prazer, como se fosse um orgasmo – e ela estava acabada. A mulher que sofre violência física ou psicológica fica destruída. Se alguém falar pra mim que a mulher não sente, que ela gosta de apanhar, vou criticar e mostrar que isso não é verdade. Não admito esse tipo de defesa nos processos, existe o limite da defesa.

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Como impor esse limite? O limite é até onde vai a dignidade do ser humano. Ninguém pode invadir esse princípio. Todo mundo tem direito a uma defesa digna, a ser respeitado, seja como réu, seja como vítima. Nunca precisei apelar para condenar alguém. Só que as mulheres são humilhadas nas audiências, são humilhadas quando conseguem ter voz.

O homem agressor aparenta ser violento? Aí é que está. Quando ele vê que ela está percebendo, oscila o comportamento e se mostra o homem mais apaixonado. Diz: “Eu quero te proteger, quero cuidar de você, te amo”. Ela começa a achar que está exagerando, fantasiando. Porque a mulher, diante da sociedade machista, é vista como histérica, louca. No dia seguinte, ele vem com o controle financeiro, da roupa, da amizade. A mulher fica em isolamento social e não vai conseguir o apoio necessário para sair daquele relacionamento. Muitas mulheres só conseguem perceber que estão numa situação de violência quando tomam o primeiro tapa.

É comum o homem alegar que foi agredido primeiro? Toda hora eu vejo. A cada dez processos, dois têm isso. Se ela agrediu primeiro e ele foi se defender, a gente precisa ver como foi essa defesa e por que ela o agrediu. O homem pode ter provocado, xingado, humilhado, só não agrediu fisicamente. Só que eles tiram a mulher do sério. É tanta humilhação, tanto xingamento, que aquela mulher se sente injustiçada. As mulheres são mais emocionais, e os homens são mais frios, essa é uma diferença significativa.

A lei Maria da Penha pode ser acessada por homens? Não, ela protege as mulheres. Ele pode ir à delegacia falar, mas aí é Código Penal, juizado especial. A lei Maria da Penha é para proteger as mulheres, com vara especializada, equipe multidisciplinar, medidas protetivas, o rito mais rápido e todo apoio social do Ministério Público e do Judiciário para essa mulher em situação de violência.

As medidas protetivas são eficazes? Tem um levantamento que foi feito sobre feminicídio: 90% das mulheres assassinadas não tinham pedido ajuda. Ou seja, a medida protetiva protege as mulheres. Quando você pede a medida, você está mostrando para o homem que existem a Justiça, o Ministério Público e a Secretaria de Segurança Pública a favor da mulher que está sofrendo violência e que há um limite. Se ele descumprir, vai ser preso.

Há um perfil-padrão do agressor de mulher? É o homem que agride entre quatro paredes, dentro do carro, numa conversa íntima nas redes sociais ou sem a presença de outras pessoas, no máximo com pessoas muito próximas que estão acostumadas, como filhos ou irmã, gente que ele também acha que vai controlar. Socialmente, ele é o sedutor social, o bom pai, o bom marido, o trabalhador, o cara legal, ou é quieto, sério, na dele, ou tem um monte de amigos. Então, ninguém vai falar que ele é um criminoso. Para esses homens, que via de regra não têm antecedentes criminais, pesa uma medida protetiva, a possibilidade de serem presos, uma folha de antecedentes. É preciso mostrar a força da Justiça a favor das mulheres. Com isso, você consegue evitar muitos crimes.

Como a Justiça sabe se o homem descumpriu a medida protetiva? Hoje em dia, nós temos dois grandes desafios. O primeiro é a fiscalização das medidas protetivas, é preciso investir muito mais nisso. Nós temos o projeto Guardiã Maria da Penha, em São Paulo, e o Patrulha da Penha. Existem aplicativos de celular nos quais a vítima aciona e cai na Secretaria de Segurança Pública. Tem também o Juntas, do Geledés – Instituto da Mulher Negra, o Botão do Pânico, que um juiz que desenvolveu em Limeira (SP). São projetos muito bons que precisam de maior escala para todas as medidas protetivas. A segunda maior dificuldade é trabalhar com os homens agressores – de todos os projetos que eu já desenvolvi, esse é que mais dá resultado para evitar as agressões.

Existe o medo de denunciar? Todo mundo tem. É o medo também da crítica, porque a mulher acaba sendo criticada: “Por que não denunciou antes?”; “sofria violência há dez anos e nunca denunciou?”; “quer dar o golpe do baú, quer aparecer, quer ganhar dinheiro”; “é vingança porque ele arranjou outra”; “o que ela faz para apanhar?”. Ela tem medo da exposição também.

Parece uma imensa solidão. As mulheres são muito sozinhas. Há um preço muito alto para sair da violência, porque aí vem a ação de pensão, a guarda, o divórcio, as acusações. Vale muito mais uma vida sem violência, com padrão menor. Senão ela nunca vai ser feliz. A mulher vive presa dentro da própria casa, as mulheres vítimas de violência são rés em regime domiciliar.

Se o Brasil é o terceiro país com mais pessoas encarceradas e isso não diminui a violência, por que prender o agressor vai fazê-lo parar? Os encarceramentos por violência doméstica são muito pequenos, dificilmente o homem vai preso. A lei Maria da Penha não é uma pena antecipada, é a proteção da mulher. Não está contra o homem, está a favor da mulher. Não é para punir os homens, é para proteger as mulheres. Mas se precisar, eles serão punidos. Não sou a favor de prender, não é isso. No caso dos agressores de violência doméstica, as medidas funcionam, porque eles não querem ser presos. Não estão batendo na mulher por necessidade. É um comportamento machista que não tem a ver com pobreza, com classe social, com escolaridade. Tem a ver com machismo, cultura, falta de respeito, com tratar a mulher como ser humano de segunda linha.

Como é o trabalho com os homens? É a desconstrução desse machismo. Você não vai conseguir transformar aquela pessoa em dez encontros, mas pode fazer com que ela observe que há um outro caminho, que não é o da violência. O agressor será encaminhado pelo Ministério Público ou pelo Judiciário. No meu projeto, o Tempo de Despertar, é obrigatória a presença. Porque faz parte do machismo o homem não procurar ajuda, não ir ao médico, ao psicólogo, se achar autossuficiente, não querer falar sobre sentimentos. Até porque ele não se vê como um agressor: acha que estava se defendendo ou foi provocado, que ela é louca. E que ele não fez nada, “só” xingou. Certa vez, um homem me falou: “Eu não fiz nada, só dei uma paulada na bunda dela”, como se a mulher merecesse castigo. Teve outro que chegou em casa e a mulher não tinha feito o almoço porque estava com duas amigas. Ela disse: “Faz você”, e ele deu uma cotovelada na cara dela, quebrou dois dentes. Isso aí são dez por dia. Como fazer esse homem parar? As penas ainda são baixas, as leis são feitas por homens, sem considerar as mulheres, como disse a ministra [do Supremo Tribunal Federal] Cármen Lúcia.

Quais são os resultados do trabalho com os homens depois de quatro meses? Depois de um tempo, eles amam. Mas a cada reunião que eu vou, saio destruída emocionalmente, porque é uma energia forte, muita resistência, muita raiva de mim – “essa mulher está me colocando aqui”. É um ódio das mulheres. É muito difícil você conseguir argumentar com esses homens que nem aceitam eu ser promotora, quanto mais estar dando uma ordem. Mas eles não estão lá como pessoas da sociedade que não fizeram nada, estão envolvidos numa situação de violência. E é muito importante que eles entendam isso. Se fosse voluntário, não teria sucesso. Como é obrigatório, a gente tem pelo menos 75% deles que vão do começo ao fim. Desses, apenas um se torna reincidente.

O que você considera a sua maior vitória? Conseguir me colocar no lugar das mulheres. E nunca desistir. É muito difícil, sabe, você sofre um preconceito por trabalhar com isso [se emociona]. As pessoas que não entendem essa diferença entre homens e mulheres também criticam o trabalho, a atuação. Minha vitória é não desistir, estar sempre com a cabeça erguida, saber me colocar no lugar da mulher e não julgar quem não denunciou antes, quem voltou para o relacionamento. Meu papel é aplicar a lei ao caso concreto e colocar essa mulher numa rede protetiva.

Sua família percebe a importância do seu trabalho? Meu filho Artur, de 6 anos, falou: “Mãe, eu quero ser o promotor das crianças”, porque a gente viu uma criança que sofreu violência. Ele entendeu o meu trabalho, sabe que estou sendo a promotora das mulheres.

É uma missão solitária? Neste momento, me sinto solitária. É um momento de isolamento, posso confessar a você. Tudo tem um preço. Praticamente todos os dias eu penso se vale a pena. Toda história de sucesso tem o seu momento de fracasso, de perdas, de desânimo, de frustração, de facada pelas costas. Você se alimenta mal, dorme pouco. Sei que fiz meu melhor. E tenho um companheiro que me apoia nesse momento de fragilidade.

Será que os homens hoje em dia se sentem ameaçados por essas mulheres muito independentes? Como criar meninos? Muito. O homem não está preparado para mulheres muito autônomas. Porque eles ainda se sentem mais masculinos, mais machos, quando podem ter alguém dependendo deles. Sentem-se enfrentados, em segundo plano. O homem não sabe que a mulher quer que a relação seja lado a lado. Ela não quer mandar. Crio meninos para que saibam respeitar as meninas, que tenham consciência de que o lugar delas é onde elas quiserem.

Créditos

Imagem principal: Caio Palazzo

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