De quem é o feminino?

por Julia Furrer
Tpm #175

As mulheres adotaram um postura confrontadora para conquistar seu espaço e a igualdade em relação aos homens. Mas questionar o papel masculino e feminino já não é mais suficiente

Um cromossomo. Há inúmeras diferenças óbvias entre os sexos, mas talvez seja a ausência do cromossomo Y a primeira evidência do feminino. Do que é visto no microscópio ao que se observa a olho nu, somam-se diversas camadas de ideias, além de evidências biológicas, que ditam o que é ser homem e o que é ser mulher.

Características como individualismo, força, lógica e racionalidade foram historicamente atribuídas ao masculino. Já intuição, vulnerabilidade, acolhimento e empatia costumam ser usadas para definir o feminino. “Nada disso existe”, defende a psicanalista e escritora Regina Navarro Lins. “Nós todos somos fortes e fracos, corajosos e medrosos, ativos e passivos”, defende.

Apesar de serem características humanas universais, todas as sociedades conhecidas se dividiram entre homens e mulheres. E foram além, estabelecendo a hierarquia do gênero masculino sobre o feminino, como lembra o historiador israelense Yuval Noah Harari no best-seller Sapiens – Uma breve história da humanidade (2011).

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Embora existam diferenças concretas entre os dois sexos, elas estão longe de justificar qualquer traço de superioridade. “Há experimentos apontando que o cérebro de bebês meninos seria mais apto a entender sistemas, mas isso não é suficiente para explicar a maioria de homens nas faculdades de engenharia. Não há nada na ciência capaz de justificar uma suposta primazia dos homens sobre as mulheres”, afirma Claudia Feitosa-Santana, pós-doutora em neurociências integradas pela Universidade de Chicago.

A sociedade não só construiu estereótipos de gênero como estabeleceu que os valores que compõem o conjunto do que consideramos masculino são superiores àqueles atribuídos ao feminino. Um exemplo disso é a guerra como forma de resolver conflitos. Elas trazem a figura do masculino predador, conquistador, que se impõe por meio da violência. 
“A força que atribuímos ao masculino é necessária, diz respeito ao poder de realização, de pensamento, de foco. Mas séculos de desequilíbrio fizeram com que isso se transformasse em ambição, predadorismo e insensibilidade – aspectos absolutamente nocivos para o mundo”, aponta Gisele Gellacic, doutora em História Social pela PUC-SP e professora da Casa do Saber.

Essa lógica que rege nossas sociedades patriarcais tem seu preço. “Determinar o papel dos homens e das mulheres mutilou as pessoas”, diz Regina Navarro. Enquanto eles precisam reprimir aspectos de sua personalidade como sensibilidade ou acolhimento, elas cresceram escutando que são inferiores, dependentes e incompletas sem eles e tiveram que apostar em abordagens masculinas para conquistar um lugar.

Nesse processo de suprimir características consideradas femininas, muitas mulheres acabaram se desconectando até do próprio corpo. A pílula anticoncepcional, por exemplo, que trouxe muitas conquistas para a libertação sexual, é para algumas mulheres também instrumento de regulação das variações de humor ligadas à menstruação. “Ela altera as taxas hormonais e anula o ciclo natural do corpo da mulher. Com isso, perdemos uma parte importante da nossa relação com o feminino, porque deixamos de entrar em contato com características muito naturais, que nos diferenciam dos homens”, explica Eleonora Stocchero Fonseca, ginecologista e obstetriz do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.

A doula e terapeuta tântrica Leticia Bhakti lembra as nuances do corpo feminino: “Temos ciclos, como a Lua. Durante a ovulação, costumamos ser mais vaidosas e carinhosas; na fase pré-menstrual, tiramos da frente tudo o que não serve mais; na menstruação, nos recolhemos para fazer um balanço; no período pós-menstrual, trabalhamos melhor e ficamos mais objetivas”.

Pela metade

As mulheres estão cansadas de agir de acordo apenas com suas características ditas masculinas para serem valorizadas. “Além de ser exaustivo, isso é muito pouco eficiente, porque impede que elas se conectem com sua essência e ofereçam ao mundo o seu melhor, acredita Bebel Clark, terapeuta holística que conduz e organiza círculos do Sagrado Feminino (leia mais no box). “É como ir à academia e trabalhar só um lado do corpo: estamos deixando de explorar 50% do que somos capazes.”

No livro Liderança Shakti: O poder masculino e feminino nos negócios (Ed. HSM), os autores Raj Sisodia e Nilima Bhat afirmam: “Ficou faltando desenvolver todas essas outras partes: nossa intuição e nossa inteligência emocional, sistêmica e espiritual”.

É cada vez mais claro, no entanto, que há uma série de prejuízos como consequência dessa lógica, a qual homens e mulheres passaram a questionar. A revisão de papéis como o da paternidade, a ascensão de conceitos como a interdependência, a gestão mais horizontal de empresas e até a reconexão da mulher com o próprio corpo são indicativos desse movimento.

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“Aos poucos, estamos substituindo a busca por poder – ou seja, pelo que é métrica de reconhecimento na lógica atual – pela identificação e acolhimento de nossas reais potências”, diz Alice Freitas, fundadora da rede Asta, que promove o trabalho de mulheres artesãs. Os passos são ainda pequenos, mas já apontam um caminho. “Estamos tateando porque não temos referência, mas já entendemos que precisamos criar algo novo, porque não queremos apenas ocupar um lugar no mundo dos homens e tampouco repetir o lugar das nossas mães. Queremos um mundo em que possamos nos sentir mais acolhidas nas emoções”, afirma Bebel.

O caminho do meio

Apostar em lideranças femininas para transformar o mundo vai além de um comando exercido por mulheres. Afinal, se ao feminino foram atribuídas características como acolhimento, cuidado e intuição, uma gestão mais agregadora, humana e horizontal é o que se espera das mulheres – mas também passa da hora de esperarmos o mesmo dos homens. “A busca por essa mulher poderosa, que conquista um espaço no patriarcado se valendo de competências masculinas, está acabando com a gente. Aos poucos, estamos percebendo que conquistar esse lugar sem propor algo diferente não será um bom negócio para nós, nem para o mundo”, diz Alice.

É preciso buscar o equilíbrio. Conciliar força e empatia, poder de realização e capacidade de cuidar e amar. Alguns dos líderes que transformaram o mundo, como Mahatma Gandhi, Madre Teresa de Calcutá e Nelson Mandela, mesclavam esses valores. Como as características ditas masculinas já são muito incentivadas em todos nós, o que falta para encontrarmos essa harmonia é construirmos uma nova consciência do feminino e incentivar homens e mulheres a acessá-la.  

Delicadeza e força

As colagens artesanais de Maria Berrio, 35 anos, ilustram a matéria e revelam um universo feminino conectado à natureza e à ancestralidade latino-americana. A artista nasceu em Bogotá (Colômbia) e mora em Nova York, onde desenvolve seu trabalho há mais de dez anos, tendo exposto em galerias e museus de diversos países, como México, Canadá, Estados Unidos e Índia. As colagens são feitas de forma minuciosa, em várias camadas, com uso de papéis decorativos japoneses e tinta aquarela. A figura da mulher costuma ser retratada junto a símbolos que fazem referência ao folclore sul-americano e à relação entre humanidade e natureza, o que resulta em imagens com muitas cores e texturas e que lidam com as questões femininas. “Meu trabalho é uma homenagem às mitologias, à solidariedade feminina e à conexão com o Sagrado Feminino. Ao colocar uma figura humana em diálogo com um animal, por exemplo, estou remontando a um passado de igualdade com o mundo natural”, explica a artista. 

Créditos

Imagem principal: Maria Berrio

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