Caio Blat: da poesia ao chão

por Carol Ito

”A obra deixa a gente perplexo pela simplicidade e sofisticação”, diz Caio Blat sobre ”Grande Sertão: Veredas”

A obra sempre viva de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, ganhou novos contornos e significados no espetáculo-instalação dirigido por Bia Lessa, que estreou em São Paulo, no fim de 2017, no Sesc Consolação. Depois de uma pausa, a peça terá reestreia no dia 28 de janeiro, no Rio de Janeiro, no CCBB. 

São dez atores em cena, que interpretam uma mistura de gente, bicho, planta, pedra e vento, construindo uma espécie de paisagem humana do sertão brasileiro, junto com a trilha sonora tocada em fones de ouvido.

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A instalação é como uma arquibancada, cujo centro é ocupado pelos personagens, que ficam próximos do público durante as três horas de peça, garantindo a experiência imersiva. 250 bonecos de feltro também compõem o cenário melancólico.

No enredo, acompanhamos a jornada de Riobaldo, interpretado por Caio Blat, um jagunço em conflito constante com o ambiente em que vive e com o amor proibido por outro homem. Diadorim, interpretado pela atriz Luíza Lemmertz, entra para o jaguncismo fingindo ser homem e se torna o objeto da paixão do amigo. “Todo tempo o Riobaldo tá jogando com esse desejo impossível, esse tesão, que faz ele querer ir pra guerra e matar outras pessoas”, analisa Caio Blat.

Em relação à Diadorim, é quase impossível não associar a personagem às discussões do presente, sobre a diversidade de identidades de gênero possíveis, incluindo a transexualidade. Caio conta que essas discussões foram importantes durante a construção da personagem que, durante os ensaios, foi interpretada tanto por homens quanto mulheres, numa tentativa de “superar a questão do gênero”, enquanto fator biológico.

Além de se preparar para a reestreia de Grande Sertão: Veredas, Caio Blat lançou dois novos trabalhos em janeiro, um deles, sua primeira atuação internacional falando inglês. A série McMafia, produzida pela BBC britânica, foi lançada no dia 2 de janeiro, sendo transmitida em 200 países e também disponível em plataforma de streaming. Nela, o ator interpreta um mexicano, chefe do tráfico de drogas. Outra estreia foi como o personagem Cássio na novela medieval Deus Salve o Rei, da Globo.

A Trip bateu um papo com o ator, que falou sobre sua relação com a obra de Guimarães Rosa e os planos para a carreira em 2018.

Trip. Como foi receber o convite para interpretar um papel tão importante de uma obra clássica da literatura brasileira?

Caio Blat. Quando a Bia me chamou para falar do Guimarães Rosa foi irrecusável, é um projeto da vida. Há muito tempo eu trabalho com projetos ligados à literatura. Ano passado, trabalhei com Felipe Hirsch, com autores latino-americanos, e é um privilégio trabalhar com textos dessa qualidade. Eu nunca tinha lido o livro também, já tinha lido Sagarana e outros trabalhos baseados em histórias do Guimarães Rosa, mas não tinha lido Grande Sertão. Então fui ler, fiz só isso por dez dias. Foi um choque, a obra deixa a gente perplexo pela simplicidade e sofisticação.

Riobaldo está sempre questionando o mundo que o cerca, permeado pela escassez, violência e morte. Você acha que ele é mais um refém de seu contexto ou alguém que decide o próprio caminho? Essa é a pergunta dele o tempo inteiro: se a gente é que constrói o destino ou se ele já tá pronto. Ao mesmo tempo, tem muitos momentos em que ele toma decisões drásticas, como quando foge e larga tudo, quando entra no jaguncismo, quando sente atração por um cara. Todo tempo ele tá jogando com esse desejo impossível, esse tesão, que faz ele querer ir pra guerra e matar outras pessoas. Tem a coisa da brasilidade, do sertão, da pobreza, falta de água, o povo abandonado, a violência no campo. E, no meio da violência, a vontade de amar muito.

Como foi pensada a personagem Diadorim, em relação à identidade de gênero? A gente pensou bastante em como seria Diadorim hoje, se ela seria trans. No elenco têm todo tipo de gênero, então, a gente conversou entre nós, trouxemos nossas referências. A gente tentou, de toda maneira, superar a questão do gênero nos ensaios, tanto que em grande parte do processo os personagens eram feitos em revezamento, vários atores, homens e mulheres, faziam Diadorim e vários faziam Riobaldo, antes de escolherem quem faria os papeis. Além disso, a gente pensou muito em como evitar um spoiler, não queríamos que o público soubesse desde o início que Diadorim é uma mulher. E a opção de ter uma figura andrógina como a Luiza [Lemmertz] é muito enriquecedora.

Um dos objetivos da encenação era “não cair na poesia, mas cair no chão”, de acordo com a proposta da Bia Lessa. Diante de um texto tão poético, como o de Guimarães Rosa, como foi “sair” da poesia? A gente não construiu a peça pelo texto, mas pelas emoções. A gente entrava improvisando sem saber o texto de cor, com as nossas palavras, lidando com as emoções da cena. Depois que a cena ficava pronta, decorávamos o texto para encaixar. Nunca tinha trabalhado assim, foi muito maluco. Se eu fosse para um palco, teria que declamar mais o texto. Com essa concepção do cenários e dos microfones ligados aos fones, não preciso.

De onde veio a ideia dos fones de ouvido? A instalação foi pensada para se adequar a qualquer lugar, no meio de qualquer museu, de qualquer espaço público, então, precisava de um isolamento acústico. Por isso inventamos essa história dos fones. 

Como foi lidar com o vocabulário? Você vai redescobrindo as palavras, tem algumas inventadas, tem as que você não sabe o que significa, mas se guia pelo som e pelo sentido da frase. Como “corruscubas”. A gente acha que é algo próximo de “resistente”, “bravo”, porque não existe no dicionário. É uma redescoberta da linguagem, uma reinvenção, além da pesquisa regional e cultural. É trabalhar com a língua viva.

Vocês parecem atletas em cena, até porque a peça flui sem pausa por três horas. Como foi a preparação física? Eu nunca trabalhei em algo que tivesse tanta exigência física, só quando fui filmar o Xingu, no meio da floresta. É quase um jogo de sobrevivência, mesmo, a gente vive machucado, vive no limite. Tivemos uma preparação física forte, com mais de uma hora por dia de aquecimento, alongamento, abdominais, yoga, coreografia, um trabalho muito intenso. Quase uma academia militar.

Na peça, há cenas de nudez. Vocês se preocuparam com a onda de conservadorismo que passou a atingir as artes nos últimos meses? A nudez é vital na arte, na cultura humana. É inacreditável que a nudez tenha se tornado uma coisa tão neurótica, os homens sempre andaram nus em várias culturas. O Brasil é muito careta, muito reacionário. As pessoas estão fazendo generalizações com muita rapidez. Aqui, no teatro, a nudez serve à história, de forma poética, narrativa. A revelação da sexualidade e do gênero da personagem é feita através da nudez. Na arte, a nudez é símbolo da pureza, da verdade. Então, é uma pena que em 2018 a gente tenha que lutar por isso.

Para onde está olhando agora, nesse começo de 2018? Ano passado tive a primeira experiência fora do país com a série McMafia, da BBC, em Londres, lançada agora em janeiro. Tô torcendo para que faça sucesso e tenha uma segunda temporada. Com o Grande Sertão eu quero ficar muito tempo, viajar muito. Todo mundo precisa ter a oportunidade de assistir um dia, de conhecer essa obra, tendo lido ou não. Também tô fazendo a novela que estreou, Deus Salve o Rei, então, segue o baile.

Créditos

Imagem principal: Roberto Pontes

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