O artista, grafiteiro e educador Mauro Neri conversa com a Trip sobre o projeto Ver A Cidade e a oportunidade de espalhar sua mensagem por aí
Duas mochilas em formato de casa repousam chamando a atenção em uma das mesas do 11º andar do Sesc 24 de Maio, no centro de São Paulo. Atrás delas, com finos dreads quase totalmente grisalhos, está Mauro Neri, o criador das pequeninas residências e de muitas outras obras. Aos 38 anos, o grafiteiro, artista plástico, educador e às vezes autodeclarado pichador do Grajaú, no extremo sul da capital paulista, já perdeu as contas das milhares de frases que espalhou por São Paulo e outras metrópoles. “Pinto em média quatro dias por semana e, quando pinto, chego a fazer uns 10 por dia em média, desde junho de 2002.” Mauro calcula cerca de 20 mil intervenções. Se você anda por São Paulo, muito provavelmente já passou por alguma das palavras e frases a seguir: Ver; O que busca ver; Verdade; Verde; Verão; Veremos; Reviver; Conviver; O que a gente pode ver; A cor da cidade; A gente precisa ver a cidade; e as duas mais famosas: Ver A Cidade ou Veracidade.
Ele fala sobre a sua trajetória: “Desde quando [eu pinto] é relativo, porque meu trabalho autoral é de 2002, mas eu pinto desde sempre e muros especificamente, desde os anos 1990”. Entre os 15 e os 16 anos, ele já prestava serviços às artes plásticas sem se considerar artista. Vendia telas, retratos, paisagens, projetos de comunicação visual, cartazes e, ao ingressar na universidade, já tinha vendido mais de 200 obras. “Eu paguei a faculdade fazendo placas, faixas e telas mesmo não me considerando artista. Eu era alguém que desenhava, que pintava”, conta. “A venda não depende do conteúdo, ela depende da vontade de comprar e da habilidade de vender, não importa o quê.”
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Mauro entrou na universidade no início dos anos 2000, no curso de licenciatura em artes visuais, tendo como contemporâneos nomes como Alexandre Orion e Iaco. “Não tendo passado nem na Unesp e nem na USP, fiz a faculdade que eu podia pagar, ainda recorrendo a uma bolsa e ainda ficando devendo”, lembra sobre as condições em que conseguiu concluir o curso. Da experiência, o artista conta o que realmente guarda de mais importante do período acadêmico. “Na faculdade, escola, curso, museu ou qualquer outra instituição, o que mais importa são as pessoas.”
O grafiteiro elenca algumas pessoas que mudaram sua vida, entre elas, o rapper Criolo e a mãe do MC, Maria Vilani. Ele, o cantor, foi seu professor de educação artística, enquanto Maria foi uma responsável por abrir para ele portas importantes. “Ela é uma figura ímpar na minha vida. Ela me convidou para ilustrar um livro, começou uma relação de amizade. E ela me fez um convite para eu ver a cidade. A primeira exposição que fui foi uma do Monet, no Masp, com ela. Isso foi em 1995 ou 1996. A partir daí, passei a frequentar os museus. Foi sugestão dela eu passar a frequentar o Centro Cultural São Paulo, no bairro Vergueiro. Por influência da Maria, também passei a dar aula. Não era uma coisa que eu tinha vontade, mas comecei a fazer assim mesmo, por acreditar na influência que ela tinha em mim.” Outros nomes surgem na lista de influenciadores, entre os quais estão a dupla OSGEMEOS e o grafiteiro, também do Grajaú, Niggaz.
O bairro em que mora até hoje está muito presente em sua vida. Ele explica a importância daquele pedaço de terra na zona sul paulistana. “A geografia explica muita coisa e o Grajaú é um bairro entre a fronteira urbana e a área verde, um distrito peninsular rodeado pela maior represa em área do mundo, a represa Billings, que nos separa do ABC, da região do Campo Limpo, Jardim Ângela, Capão e nos deixa um pouco isolados.” Mauro fala ainda sobre a importância em seus traços. “Há mais tempo, quando a influência da internet era menor, tinha menos troca de influência e fez com que a gente circulasse mais por ali do que entre as outras áreas. Acredito que essa é uma das características para tornar o Grajaú um caldeirão com tantos artistas.”
O moleque de quebrada começou a ganhar o mundo com sua arte há quase 15 anos. Primeiro — inspirado por uma paixão — foi parar na Itália. “Até então, ninguém do meu ciclo de amizades ou ciclo familiar tinha feito uma viagem para o exterior. Dentro da minha lógica de escassez, estava fora do meu alcance econômico”, conta. Por três anos, viveu a conexão Grajaú-Europa, conheceu outros países, conseguiu visto de estudante, frequentou a Academia de Belas Artes de Bolonha, pintou um mural de 1 mil metros no Museu San Domenico, na cidade italiana Forli, e voltou ao Brasil em 2008 com a crise econômica que bagunçava a Europa e ainda não tinha cruzado o Atlântico.
Numa dessas vindas a São Paulo, entre 2006 e 2007, idealizou e colocou em prática o projeto Imargem, uma exposição ao ar livre com esculturas e murais às beiras da Billings. Em 2009, começou outro projeto, o Cartograffiti, um percurso entre a periferia e o centro convidando artistas, discutindo mobilidade o direito à cidade. O projeto se revelou mais complexo, porque ele revelou a contradição do poder público, que, embora apoiasse, também criminalizava e apagava. Uma das frases que Mauro espalhou por aí foi: A prefeitura paga e apaga.
Sua relação com o poder público foi bem noticiada no dia 27 de janeiro de 2017 ao ser detido pela Polícia Militar. Ele foi abordado com água e um esfregão (e também algumas latas de spray na mochila) tentando apagar o cinza de uma obra sua na Avenida 23 de Maio. Os “apagamentos” em cima dos grafites na capital paulista não são novidade há muitas gestões, mas tinham se tornado uma prática bem intensa no início da gestão do prefeito, hoje governador, João Dória.
Tomar enquadro da polícia também não é novidade. O artista calcula, em sua estatística pessoal, que até 2017 sofria uma abordagem policial por semana e uma detenção por ano. Foi levado a juízo, e absolvido, uma única vez, mas nesta ocasião foi diferente. Mauro foi enviado para o Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), famoso pelas investigações de quadrilhas e crime organizado. “Mesmo com o advogado do lado, conseguiram me arrastar para uma salinha do lado e começou um interrogatório. Eles pediam para eu denunciar outros pichadores. 'Quem é esse?' 'Quem é aquele?'”, lembra.
O caso ganhou grande repercussão midiática e gerou grande mobilização popular. Ao ser liberado, se deparou com uma coletiva de imprensa montada especialmente para ele. “Eu tive uma exposição midiática exponencial, passei seis meses dando duas, às vezes três entrevistas por semana. Por conta disso, comecei a me mobilizar mais com a Câmara dos Vereadores.”
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O grafiteiro levou vereadores ao Grajaú para um tour do centro à periferia. “A gente pegou um ônibus com a Câmara, encheu de parlamentar, e fomos até o Grajaú. Eu fui dando uma aula pra eles, mostrando, falando o que tinha, explicando e apresentando pichadores e grafiteiros.” Ele aproveitou ainda o espaço para entregar uma carta, com o apoio do vereador Eduardo Suplicy, à Dória, depois de um encontro na plenária. “Eu tinha encontrado com o prefeito às 15h30 e, às 21h30, recebi uma ligação do gabinete: ‘O prefeito Dória quer falar com você’. Ele disse o que sempre dizia. Nos falamos por meia hora, ele falou por dois terços do tempo, mas aí começou de novo uma comissão para mediar um diálogo com a gestão pública.”
A aproximação com o poder público, e principalmente uma foto ao lado do gestor, deram mais dor de cabeça e apontamentos de dedos do que resultados. “O prefeito queria apresentar um projeto para mediar a história, uma coisa totalmente atrapalhada, mas conseguimos fazer um edital.”
Já distante desse diálogo, Mauro retornou à sua obra, às suas origens adolescentes de vendedor. “Voltei a vender a minha arte na rua em lugares como o Beco do Batman e em aberturas de exposições. Fui para a porta da exposição do Basquiat, para a porta de exposições no Masp, em feiras e participei da SP-Arte. Tive um feedback muito interessante. Tive um percentual de venda que eu nunca tinha tido antes em três dias de trabalho mesmo com a repressão da segurança.”
Ele manteve a prática. “Eu comecei a perceber que era um caminho interessante, eu me identifico com a rua. Para muitos artistas, isso poderia parecer muito naïf, hippie ou humilhação, mas eu me sentia legítimo ao estar fazendo aquilo. Sem contar que foi muito louco o retorno das pessoas. A galeria faz questão de afastar o artista do público e foi legal ter essa resposta.”
Mauro botou a mochila amarela nas costas e seguiu, há exato um ano, de volta à Europa. Em sua trajetória, ao lado da grafiteira catarinense Claudia Tostes, passou por Barcelona, Munique, Berlim, Basel, Paris, Londres, Lisboa colecionando histórias e com três propósitos: pintar, vender sua arte e entender como essas cidades estavam interagindo com a arte de rua. Dá para dizer que foi bem-sucedido nas três missões.
Com a mesma ousadia que expôs sua obra na SP-Arte, Mauro tentou a sorte na Art Basel, na Suíça, no Pompidou, na França, na Tate Modern, em Londres, e em outros pontos importantes para a arte mundial. Em Basel, único lugar que não pintou, sua experiência de vendedor ambulante foi assim: “No primeiro dia: 'Você pode expor, mas não pode vender'. No segundo dia: 'Você não pode expor e nem vender aqui, tem que ficar ali'. No terceiro dia: 'Você não pode expor e nem vender ali, você tem que ficar do outro lado da rua'.”
Com algumas repressões, mas sempre dando um jeitinho, a aventura europeia durou três meses. Mauro voltou a São Paulo, mas pouco tempo depois já embarcou novamente, desta vez para os Estados Unidos. Ele conta como foram às boas-vindas na terra de Donald Trump. “Minha primeira recepção em Miami foi uma cela. As boas-vindas foi tirar o meu cadarço, o meu cinto para que eu não me enforcasse dentro da cela. Me deixaram lá sem celular, sem carteira, sem nada. Eu fiquei preso lá cinco horas só por eu ser o que eu sou. Eu fiquei lá até conseguir mostrar o meu extrato bancário para eles.”
E lá repetiu a estratégia de "stand piratinha". Na Art Basel de Miami montou sua lojinha na rua com a milenar arte de meter o louco. “Peguei três cavaletes da guarda de trânsito, parei minha bike e montei um cenário na esquina mais top e fiquei lá. Meu primeiro cliente foi o Shepard Fairey, que, na minha escala, é um dos nomes mais importantes da street art, conhecido como Obey.” Pintando onde dava, depois de uma abordagem policial, mudou a rotina. Saía para espalhar suas casinhas e frases pelas madrugadas, entre 4h e 6h. A trip seguiu ainda por Los Angeles, São Francisco e Nova York, tudo ao longo de um trimestre.
E Mauro já planeja as próximas investidas ao Velho Continente e aos Estados Unidos. Suas frases já passeiam por aí em outras línguas, então, se for viajar, veja a cidade e e fique atento se encontra termos como Veracity, Pour voir, Zu sehen, See the city, Seety... Boa viagem.
Créditos
Imagem principal: Mona Caron/divulgação