Por cinco meses, em 1998, TRIP mergulhou na vida de Bianca Magro, que entrou para a história como a primeira pessoa a se submeter a uma operação de mudança de sexo realizada legalmente no Brasil
Centro Cirúrgico de Rotina. HC da Unicamp. SP. 8 de abril de 1998. Aos 27 anos, o contador Edilson Magro estava a menos de meia hora de uma das mais radicais transformações que um ser humano pode sofrer: mudar de sexo.
Não parecia mais nervoso do que nos meses anteriores. Deitou na maca e sumiu no corredor. Deixou a sala de recuperação às 18h30. Já não tinha pênis nem testículos. O maior símbolo da virilidade havia sido transformado em vagina: dissecado, esvaziado e virado do avesso. Os testículos tinham sido extraídos. Ela chorava calada e tocava os seios que acabara de ganhar: 135 gramas de silicone de cada lado. Perguntou se tinham mexido “lá embaixo” e adormeceu.
A cirurgia entrou para a história: foi a primeira operação legal de mudança de sexo realizada no país. Durou três horas, envolveu dez médicos; exigiu cinco anos de tratamento; quase uma dezena de laudos; nove dias de internação e muita coragem. Fora dos registros públicos, Edilson se chama Bianca. Encarna o que os médicos chamam de transexualidade: fenômeno que ocorre quando a pessoa nasce com corpo de homem e mente de mulher, ou vice-versa.
No Brasil, cerca de 270 cirurgias de transformação de homens em mulheres foram realizadas desde 1972, todas clandestinas. Mas uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) mudou o rumo da história no ano passado. O conselho considerou “ético” o procedimento cirúrgico e autorizou os médicos a realizarem operações de mudança de sexo em caráter experimental, ou seja, de graça, em hospitais universitários ou públicos e com finalidade de pesquisa. Menos de um mês depois, um juiz deu parecer favorável à cirurgia de Bianca.
Nos próximos meses, de acordo com projeto já aprovado na Câmara dos Deputados, Bianca deve conseguir alterar o mais óbvio: o nome e o sexo em sua documentação. Mexer na documentação é assentar a última pedra no muro que separa Edilson de Bianca.
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Trip. Você se considera uma mulher?
Bianca. Eu sou uma mulher. Uma mulher que tinha um pênis, mas uma mulher. Esse sempre foi meu grande conflito. Eu me sentia uma coisa e as pessoas falavam que eu era outra. Então eu me perguntava: “Mas o que eu sou?”. Porque nem eu sabia mais. E contra mim, eu tinha um pênis!
Qual a diferença entre você e alguém que nasceu mulher? Eu tinha um pênis! Com isso, eu já realizei o que para as outras mulheres é pura fantasia. Por outro lado, é óbvio que não tive o que é tão comum para as outras mulheres.
Você sempre se sentiu mulher? Quando começou a se sentir diferente dos meninos? Quando eu era pequena eu não me sentia diferente, eu me sentia uma menina. Com um ano e pouco, quando eu comecei a andar e a falar, eu já me sentia uma menina. Era menina nos gestos, na forma de pensar, de expressar emoções, nos desejos. Eu era totalmente diferente dos bebês meninos. Meu pai dizia: “Se esse menino crescer andando desse jeito, eu quebro as pernas dele”.
Mas você nunca ganhou uma bola, um carrinho, nunca brincava disso? Ganhei, mas não brincava. Minha mãe conta que eu não queria a bola, queria a boneca. Não brincava com os meninos, brincava com as meninas. Ela me batia e gritava: “Larga de ser marica”. Mas eu não entedia nada. Não sabia por que estava apanhando. Para mim era simples: eu só não queria brincar com aquele brinquedo. Aí eu fui morar com a minha avó e ela me deu uma máquina de costura transparente, linda. Eu fiquei realizada.
Então você foi criada pelos seus avós? Mais ou menos Na verdade, eu nasci em Andradina (SP), mas meu pai foi morto quando eu tinha um ano e meio. Eu passei a ficar um pouco com a minha mãe e um pouco com os meus avós, mas minha mãe começou a ter problemas financeiros que os meus avós não tinham. Com seis anos, então, eu fui morar de vez com os meus avós em Ribeirão Preto.
E aí a sua avó te deu uma máquina de costurar? Eles não falavam nada sobre os seus desejos femininos? Não, não falavam nada. Por isso eu não me sentia diferente. Os velhos se apegaram a mim e aplicaram a mais forte lei do silêncio de que eu já tive notícia. Deixavam eu fazer tudo o que queria. Eu era uma criança sem limites, uma menina sem limites. Uma criança que tinha tudo o que pedia. Fazia birra, deitava no chão e me davam boneca, faziam todos os meus caprichos. Até uns 12 anos eu cheguei a usar roupas unissex, mas depois disso, só aceitava vestidos. E ninguém discutia. Aos 10 anos, minhas gavetas já misturavam as cuecas que eu ganhava com as calcinhas que eu comprava.
Como foi crescer sem pai? Fez falta? Em que medida isso influenciou na sua vida? Viver sem pai me deixou muito carente. Hoje eu tenho consciência de que isso me deixou numa dependência masculina muito grande. Não procuro um pai, mas sei que busco suprir essa carência nos meus relacionamentos. Nenhuma mãe quer ter um filho como eu, nenhum pai quer ter um filho assim. Acho que eu seria a vergonha do meu pai, mas ele acabaria entendendo.
Você se sentia bem na escola? As crianças não faziam piadinhas? Eu não tive problemas. Só briguei para fazer Educação Física com as meninas, porque eu não ia fazer com os meninos de jeito nenhum. Tinha uns 11 anos e falei que eu não ia fazer, fiz birra, disse que não ia mais na aula. Aí eles deixaram. Eu jogava vôlei com as meninas, enquanto os meninos jogavam futebol. As meninas gostavam porque eu era mais forte que elas.
E quando essa tranquilidade foi quebrada? Quando você começou a notar que era diferente dos meninos e das meninas? Foi aos 14 anos. Até essa idade era tudo muito sem conflito. Eu era uma moça, vivia num clube, usava vestido, esmalte, batom, sandálias da minha avó e cabelos compridos para ficar mais bonita. O problema só surgiu quando minha mãe foi me visitar em Ribeirão. Ela tinha ficado um ano sem me ver e, quando ela chegou, eu até já namorava. Estava com o Antônio Carlos havia um ano. Começamos a namorar quando eu tinha 13 e ele 21 anos.
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Você falou em clube... como ia à piscina? De sunga ou de biquíni? Ia de short de nylon.
Voltando ao Antônio Carlos, quem ele conheceu com 13 anos: o Edilson ou a Bianca? Ai... Provavelmente uma criança.
Mas essa criança tinha nome. Tinha. Era Edilson.
Então a sua mãe chegou em Ribeirão e encontrou uma menina? Foi isso mesmo. E aí, nessa época, eu já tinha arrumado até hormônio feminino para tomar. Aí minha mãe chegou e eu já tinha seio mesmo, o remédio tinha ajudado. Usava até sutiã na Educação Física. Então, quando a minha mãe chegou na cidade, eu fui busca-la na estação do trem. Tava maquiada e de cabelo penteado. Ela quase morreu. Ficava perguntando: “Tá tudo bem? O que aconteceu?”. E eu: “Nada. Tá tudo bem”. Eu achava que não tinha o que conversar. Eu tava bem. Tinha um namorado e amigos que me aceitavam. Mas aí ela me deu umas cuecas e eu percebi que minha mãe não tava entendendo nada e precisava mesmo saber o que estava acontecendo. Pensei: “Eu tenho que conversar com ela. Eu tenho que contar que eu não sou homem”.
Como foi essa conversa? Horrível. Pedi ajuda para duas amigas que sabiam da minha situação, mas me tratavam como uma moça. Levei a minha mãe até a casa de uma delas, mas ninguém conseguia contar. A Simone começava e não falava. A Ana começava e não falava. Ninguém tinha coragem. Aí a Simone me levou para a cozinha e a Ana contou. Eu escutei. A Ana falou assim: “Sabe o que é? É que a sua filha não é seu filho. Sua filha tá namorando um amigo nosso, mas não se preocupe que eles não transaram ainda”. Aí minha mãe se descabelou, chorou, chorou, chorou. Ela gritava: “Meu filho é bicha. Tudo menos bicha! Que seja marginal, bandido, mas bicha não”. Foi horrível. Minha mãe pôs a boca no mundo, chegou para quebrar a lei do silêncio. Me chamou de viado, mas eu não sou viado. Sou uma mulher transexual.
Mas você já tinha certeza que não era gay, nem travesti? Eu nunca me senti um homossexual, nem um travesti. Nunca gostei do jeito deles, do estilo de vida deles. Mas certeza ia ter de que jeito? O diagnóstico do meu caso, o nome para o que eu sou, só veio há uns dez anos. Eu sentia, mas não tinha nome.
E nessa época, o que você queria ser quando crescesse? Como via o futuro? Eu me via mulher. Sonhava em ser como a Farrah Fawcett. É engraçado... Minha memória é seletiva, eu apaguei alguns traumas. Parece que vou começar a viver agora. Mas eu lembro que antes da minha mãe detonar a coisa toda, eu já sonhava muito. Me imaginava loira, com cabelo comprido, bem pantera, com seios grandes. Pensava em fazer uma cirurgia que eu nem sabia que existia para virar mulher e ser feliz. Achava até que eu ia menstruar e engravidar. Isso para mim era ser mulher. Era uma coisa doida.
E Bianca? Como surgiu esse nome? Foi nessa época. Eu tinha uns 12 anos e já tinha uma consciência da situação, embora ninguém falasse nada a respeito. Pensava: “Eu sou uma mulher, mas eu sou diferente. Eu tenho isso (pênis) e ninguém diz nada”. Aí eu perguntei para minha avó: “Se eu tivesse nascido de mulher, como seria o meu nome?”. Ela falou: “Branca, Bianca”. Branca eu não gostei. Aí escolhi Bianca. Quando minha mãe chegou, eu já era Bianca.
Os seus avós aceitaram o novo nome? Não. Eles me chamavam de Edilson, Dircinho... Mas as minhas amigas me chamavam de Bia.
E o seu namorado? Como ele me conhecia desde criança, ele falava assim: “Eu gosto de você e o nome não interessa. Pode ser Edilson, pode ser Maria, pode ser Bianca. Esquece isso”. E eu esquecia.
Sua família tentou reverter a situação? Tentou fazer você virar homem? E como tentou! Minha mãe foi em tudo que é lugar. Foi até em benzedeira. Ela me levou para Campinas e fiquei seis meses fazendo tratamento com o melhor especialista da cidade. Minha mãe queria que o cara fizesse eu virar homem. Mas logo o médico disse que eu era isso: “Ela é isso. Ele é isso. Não sei. Mas sei que vai continuar sendo. Não tem o que fazer”. Na época, minha mãe foi a encarnação de todo o conflito.
Essa avalanche de dúvidas devia enlouquecer a cabeça de uma criança... Pois é, até parei de estudar. Minha vida parou um tempão. Só consegui voltar à escola mais tarde e só terminei o segundo grau em 96. Fiz técnico em contabilidade, mas nunca consegui emprego.
Você estudou como Edilson? Estudei como Bianca Magro. Eu já tinha alguns laudos e a diretoria da escola técnica aceitou. Meus colegas só ficaram sabendo da situação quando um professor preconceituoso contou tudo. Eu não tinha ido à aula naquele dia e ele disse que havia uma aluna que não era mulher e que não podia estudar com nome de mulher. Um velho idiota.
Até esse dia as suas colegas achavam que você era mulher como elas? Achavam. Elas até me faziam perguntas constrangedoras. Eram mais novas que eu e queria saber sobre orgasmo, sobre menstruação. Eu tinha que me virar. Na verdade, eu também não sei nada disso.
Você disse que nunca conseguiu emprego. Nem a necessidade de se manter fez você tentar a vida como Edilson? Fez. Quando eu vim para Campinas de vez, minha mãe disse que eu tinha que cortar o cabelo e tentar emprego que nem homem. Eu cortei o cabelo, pus calça jeans e camiseta e fiz um monte de ficha como Edilson. Me senti um travesti masculino. Uma mulher se vestindo de homem. Acabei três meses em um emprego temporário na linha de montagem de uma metalúrgica. Eu fazia componentes eletrônicos para rádio e TV, mas graças a Deus não tinha que trabalhar de macacão. Logo todo mundo descobriu que eu não era Edilson, era Bianca. Teve até um cara que se apaixonou por mim. Depois, tentei ser cabeleireiro. Não gostei e não consegui mais nada.
Você se alistou no serviço militar? Me alistei, mas fui dispensada. Fiz a inscrição na Junta Militar e fui me apresentar para a seleção no Batalhão do Exército. Cheguei e encontrei uns dois mil caras esperando o exame médico. Um tenente me chamou e perguntou se eu estava lá em nome de algum irmão. Disse que não, que eu era Edilson Magro e fui atendida antes de todo mundo. O médico pediu para eu levantar a blusa e me dispensou. O tenente ficou o tempo todo do meu lado e os caras não mexeram comigo. Claro que eu notei o burburinho, mas para mim ninguém disse nada. Eles me deram um papel escrito me dispensando e nem fui buscar a Carteira de Reservista.
E qual foi o problema para você trabalhar na área de contabilidade? Preconceito, claro. Nem estágio eu consegui. Fazia a ficha como Edilson, a moça olhava para mim, olhava para a ficha e dizia que eles entravam em contato. Nunca mais ligavam.
Você culpava o seu genital por isso? Qual era a sua relação com o seu pênis: tocava ou sentia nojo? Ele era poderoso: me impedia de trabalhar, de estudar, de viver. Era uma coisa que tava ali, mas que não me pertencia. Um apêndice, um pedaço de carne morta que só servia para me incomodar. Eu não olhava, não mexia. Só tocava nele para lavar. Teve uma época, na adolescência, que houve uma masculinização . Ele cresceu um pouco e enrijeceu também. Eu odiava aquilo. Eu queria bater na cabeça dele com um martelo, porque era horrível. Era insuportável. O pênis era a minha vergonha. Parecia mais forte do que eu.
Você tentou se castrar? Eu tinha uma vontade louca de me livrar daquilo e pensei nisso algumas vezes. Queria sumir com uma coisa que não era minha, acabar com uma vergonha. Já peguei a faca, já encostei, já dei um cortezinho. Mas deu medo. Parei. Tive medo de morrer.
Que tipo de pessoa você atraía? Eu sempre fui uma mulher atraente. Em Ribeirão, a cidade ficou pequena para mim. Era uma mulher muito bonita e virei objeto de desejo sexual de todos os homens da cidade. Eu saía e fazia fila de homens atrás de mim. Tinha um que queria me raptar. Minha avó me levava na escola e eu andava com uma faca. Foi uma loucura.
Mas você acha que isso acontecia porque você era a mulher mais atraente da cidade? Não. Na verdade, eu sei que não. Ribeirão era uma cidade pequena, onde todos os homens levavam uma vida de boiadeiros machos e só queriam saber de comer as bichas. No interior eles comem cabra, galinha, jumento, porco, pata. Sei que na cabeça deles eu era um travesti. E um travesti diferente: um homem que parecia mesmo com mulher. Eles queriam ver qual era, ficavam curiosos. Aí eu vi que não dava mais e fui para Campinas. Tinha 16 anos. Era uma mulher e tinha necessidade de viver e ser aceita como tal.
Você se relacionou com alguns desses homens? Quando foi a sua primeira transa? Não, não tive nada com nenhum deles. No meu romance com o Antônio Carlos não houve sexo, não houve penetração. Tentamos uma vez, mas foi horrível. Não aceitei. Minha primeira vez foi com o José Aparecido, o segundo namorado. Ele nunca tocou no meu genital, mas não era bom.
E quantos namorados você teve? Namorados mesmo, uns cinco, seis ao todo. Mas tive vários casos. O suficiente para uma mulher de 27 anos.
De todos você escondeu o pênis? Você nunca usou o genital na relação? É, eu não mostro, mesmo. Nem meus irmãos viam meu genital. Nunca viram. Desde os 13 anos eu puxava para trás e usava Empasto de Sabiá para prender. Alguns caras olhavam um pouco, mas eu não ousava nem deixava tocar.
Mas a carícia não excitava o teu genital? Não, ele não ficava duro. Graças a Deus ele não subia.
Você nunca ejaculou? Só dormindo. Acordei toda suja e tive nojo. Corri ao banheiro para me lavar. Eu não tinha espermatozoides por causa do hormônio, mas tinha sêmen.
Você já sentiu prazer? Teve orgasmo? Prazer? Não. Eu nunca cheguei ao orgasmo. Não sei o que é isso. Só tive relação anal e não gosto dela. Não sinto nada de bom.
Você nunca se relacionou com uma mulher? Já tentei, mas não consegui. Aconteceu uma única vez. Eu tinha um pouco mais de 20 anos. Conheci um cara chamado Ricardo e começamos a sair. Ele dizia: “Como é que você não gosta de mulher se nunca experimentou?”. Ele ficou me enchendo uns dois meses e eu acabei topando tirar a limpo. Aí, ele pegou uma amiga dele e fomos para um apartamento . Era uma moça loira de 18 anos , muito bonita. Ela me olhava com desejo, mas eu sentia asco. Tinha nojo quando ela me tocava. Quando ela tentou me beijar, eu joguei ela longe. Falei: “Desculpa, vai embora. Eu não gosto, não tem nada a ver”. Foi um ótimo teste. Foi a afirmação de que eu gosto de homem.
Como tem sido sua vida afetiva? Há quatro anos tomei a decisão de não me envolver afetivamente com ninguém. Eu quero levar uma vida normal ao lado de um homem heterossexual, o que era incompatível até a operação. Que hetero ia querer alguma coisa comigo? Mantive relações eventuais, mas sem envolvimento afetivo.
Você faz terapia? Faço há dez anos, desde quando eu realmente senti necessidade de saber o que eu era. Senti uma necessidade enorme de me conhecer, de entender porque eu sentia que era uma mulher e ninguém aceitava isso. Foi quando a terapeuta me disse: “Você não é um homossexual, você não é um travesti. Você é uma transexual”. Ela me explicou o que era isso e senti um alívio enorme. Finalmente tinha encontrado alguém que me entendia. Foi há dez anos.
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Você tem muitos amigos? Não. São 27 anos de solidão... Sempre convivi muito com a depressão, rejeição social, rejeição familiar, discriminação. Tinha um aniversário na casa da minha irmã e eu não era convidada, tinha um churrasquinho e eu não era convidada, entrava em uma loja e era chamada de travesti. Os heterossexuais discriminam e os homossexuais rejeitam porque eu não me comporto como eles. Cheguei a ser agredida na rua sem motivo. Um cara bateu com um paralelepípedo na minha cabeça. Quebrou meu maxilar, descolou minha retina e perdi a visão de um olho.
Como você reage a essa discriminação? No começo, eu me afastava das pessoas. Eu chorava no banheiro, chorava escondida. É duro sacar que tanto faz você existir ou não. Machuca. É horrível se sentir excluída, marginalizada. Aí, com o tempo, eu comecei a não engolir, a não ficar quieta, a falar mesmo “Pera lá! Eu exijo respeito. Ninguém vai me julgar pela minha sexualidade ou pelo que eu sou de diferente”. Acho que isso ficou muito claro e me fortaleceu . Estabeleci meus limites. Decidi estudar bem o meu caso para me impor, se não pela força, pelo conhecimento. Acho que hoje sou uma figura forte.
E o que você sente quando é chamada de Edilson? Quando insistem que você é homem? Ódio, mas hoje eu me imponho. Sei o que eu sou. Parece que esse povo pensa que a mulher é uma vagina. Tem, é, não tem, não é.
Foi difícil chegar à cirurgia? Foi terrivelmente difícil e sofrido. Passei a procurar a Unicamp insistentemente em 93. Fiquei cinco anos nesse vaivém. Ninguém entendia o caso e eu passava noites nas filas para ser atendida nos ambulatórios. Chegava lá às dez da noite para ser atendida às dez da manhã. Fiz uma maratona de exames e nada se resolvia. A coisa só melhorou um pouco em setembro do ano passado, quando o CFM admitiu a realização da cirurgia de transgenitalização. Eu já havia entrado na justiça pedindo a operação. Tenho dezenas de laudos que atestam minha transexualidade. Todos afirmam que tenho um corpo de homem e a cabeça de mulher. Foi isso que eu consegui provar nesses cinco anos. Podia ter ido operar no exterior, mas eu precisava provar para o meu país quem eu era. Aí, no dia 14 de outubro do ano passado eu consegui a autorização judicial para me submeter à operação aqui, no serviço de saúde, gratuitamente, legalmente.
Você acha que a cirurgia se tornou uma obsessão? Era sua razão de viver? Sim, foi o que me moveu por esses anos. Ela era a única forma de extrair uma coisa que me fazia mal, me deprimia, que não me deixava viver.
Você não tinha medo de morrer? Medo de cirurgia acho que todo mundo tem, mas nunca pensei nisso. Só tinha medo do novo. Na sala de anestesia só tive tempo de ler meu prontuário a ver as toneladas de gazes e instrumentos que tinham sido exigidos pelos médicos. Eu tinha esperado quase uma vida por aquele momento.
Você enxerga a cirurgia como a solução para todos os seus problemas? A cirurgia é o meu complemento. É eu me olhar no espelho e não ver o pênis que me atordoou uma vida toda. Sei que o preconceito só vai diminuir com o tempo, que o processo continua, mas a cirurgia é a minha varinha de condão. Só ela pode fazer eu estar com um cara e deixar ele me tocar. Eu vou poder me doar na relação. Não vou precisar ficar com as neuroses: eu sou mulher, não sou mulher, tenho esse genital, como vai ser isso para ele...
Como você se sente sem o pênis? Ele foi embora e levou os meus medos. Não há mais quem possa dizer que eu não sou o que sempre me senti. Não tem o que discutir. Eu me vejo inteira, não tô mais aprisionada por um genital. Comprei calcinhas novas e vou usar roupas que eu não podia, porque aquilo marcava. Eu tenho uma curiosidade pela minha vagina que eu não sentia pelo meu pênis.
Você acha que vai ter orgasmo? Com certeza, finalmente eu vou encontrar o orgasmo. Já tenho uma enorme sensibilidade. O médico já pôs o dedo no canal. Uma amiga passou pomada, pôs o dedo no canal. E até já tive um sonho erótico! Tive um orgasmo no sonho! Não devia falar essas coisas, mas foi uma delícia. Foi no hospital, três dias depois da cirurgia. Eu sonhei que transei com um mecânico maravilhoso em um caminhão. Senti a penetração. Cheguei ao orgasmo e acordei porque me deu dor. Senti o genital contraído. Foi uma mistura fantástica de dor com prazer. No dia seguinte perguntei para o médico se tinha algum problema de eu ficar excitada. Ele disse para eu me acalmar que isso ainda ia demorar um pouco para acontecer. Mal sabe ele... Já sinto uma excitação genital vendo TV, pensando em algumas coisas. Eu nunca senti isso antes. Acho que essa história de prazer conta muito na cabeça da pessoa.
Como você acordou no dia 9 de abril, um dia depois da cirurgia? Aliviada. Toquei no tampão vaginal, vi que não tinha nada sobrando e me senti bem. Perdi os complexos quando vi meu seio maior. Talvez o seio seja até mais importante do que a vagina para você se sentir mulher. É a identidade pública do sexo, a parcela visível. Senti que o meu corpo tinha mudado. Sempre me achei magra, masculina, mas agora acho minha magreza feminina. Pode ser coisa da minha cabeça, mas a sensação é que está tudo diferente.
Mas socialmente as coisas são lentas. Para a família, a pessoa que saiu para a Unicamp é a mesma que voltou para casa uma semana depois... Acho que não. Logo vai dar para notar a mudança, porque as pessoas são genitais. Se tem pênis, é homem. Se tem vagina, é mulher. O genital é que determina o sexo para a sociedade. Então, se você não tem mais o genital, a sociedade vê de outra forma. O pensamento é assim: “Agora ela tem uma vagina, então ela vai ser mulher e a gente vai ter que tratar como mulher”. Porque não dá pra tratar uma pessoa com vagina como homem, né? Para o mundo, ter ou não ter pênis é o que diferencia um homem de uma mulher.
E você discorda disso? Discordo.
Fora os genitais, o que diferencia um homem de uma mulher? As pessoas são iguais. Igualmente humanas em força, fragilidade, medo, carência... A diferença está no sexo que a pessoa se atribui. É homem quem se sente homem. É mulher quem se sente mulher. Acho que isso é tão arraigado que um homem de verdade nunca vai se transformar em uma mulher e vice-versa. Acho, por exemplo, que um homem não se transforma em uma mulher nem com essa operação. Se eu me transformei em mulher é porque eu sempre fui mulher.
Você acha que as pessoas só pensam em sexo? Ele move o mundo e a sociedade? Eu acho, não, eu tenho certeza. Para mim é claro que a sociedade vive em torno do sexo. Os homens olham para as mulheres com vontade de devorá-las. As pessoas se aproximam pensando em sexo. É o instinto animal. O ser humano é meio bicho, né?
Você é feminista? Não, nem machista. São posturas radicais entre pessoas tão iguais.
Esse pós-cirúrgico não é dolorido demais? Não dá para se arrepender? Dói, mas não o suficiente para fazer eu me arrepender. Não foi fácil. Foram nove dias de internação e três dias de dores fortes. Chorei muito. É como eu imagino que seja uma cesariana, mas não sei se imagino certo. Os pontos doem. Tá tudo costurado, são mais de 70 pontos. Você fica três dias com dreno e com tampão, e seis dias com sonda. Incomoda. Lateja. Você não dorme direito. As pernas ficam paralisadas. Só pude andar no quinta dia depois da cirurgia.
E o que você sentiu quando se olhou no espelho depois da operação? Fiquei fascinada. Fui no quarto da minha mãe, tirei a roupa e me vi toda. Me achei linda, gostosa, plena.
Então você se acha uma pessoa bonita... Tem dia que me levanto me sentindo linda, tem dia que eu levanto me sentindo horrorosa. Beleza é estado de espírito.
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O que você mais gosta no seu corpo? Agora, tudo. Mas adoro minhas pernas e minha cintura fina.
Que cuidados você tem que ter agora? Vou fazer um retoque estético nos próximos dias. Depois, tenho que aguardar a cicatrização. Só posso manter relações daqui dois, três meses. Tenho que usar os dedos e um pênis de borracha para não enrijecer o canal e não doer durante as relações. Quando cicatrizar, tenho que usar lubrificante vaginal e tomar hormônios femininos até uns 55, 60 anos.
Você quer adotar filhos? Não. Eu não nasci para ser mãe. Eu não tenho instinto materno. Acordar no meio da noite com uma criança chorando não é uma ideia que me atrai. Agora eu quero viver um pouco para mim.
Mas você quer casar? De casar no civil eu não abro mão. Acho que é uma questão de garantia de direitos, assim como acho que o meu marido tem direito de saber de toda a minha história. Mas não quero casar na igreja. Não acredito na dominação sexual dos católicos. Eles pregam que a bênção de Deus vai garantir a felicidade no casamento. Pregam que a mulher tem que servir ao marido e à reprodução. Eu não vou ficar em casa, sem prazer, cuidando do lar e esperando pelas crianças que não vão vir. Em tempos de Aids, não dá para acreditar em uma instituição que condena o uso de preservativos.
Qual a sua relação com Deus? A humanidade já cultuou uma deusa, vários deuses e, agora, crê em Jesus e seu pai. Isso muda de milênios em milênios. Não sou obrigada a acreditar no Deus imposto para a nossa era. Não sou ateu, acho que existe uma força maior que rege tudo, mas não sei como ela é.
Que planos você faz para o futuro? Qual o seu maior sonho? Meu maior desejo é deitar com um homem heterossexual, normal e recebê-lo de frente. Olhar nos olhos dele durante a relação, unir minha boca à dele, cara a cara, olho no olho. Nunca tive isso. Essa é a minha realização como pessoa. Esse vai ser o meu grande orgasmo, meu grande prazer. Ter de frente um homem que assuma todas as suas fraquezas, todos os seus desejos. Um homem que me trate como uma mulher, que seja carinhoso, romântico, protetor e independente, mas que tenha uma certa dependência afetiva de mim.
Até onde as pessoas podem ir no sexo? Eu não sei, eu vou descobrir. Agora que eu vou descobrir mesmo. A princípio, acho que infinitamente. Acho que no sexo você pode descobrir tudo, pode tentar de tudo. Pela satisfação do ser humano vale tudo. O que dá prazer, sim, varia de pessoa para pessoa. Eu vou descobrir as coisas que me dão mais prazer.
Você já amou alguém? Já. Aliás, eu mergulho muito de cabeça em tudo. Já fiquei de cama por amor, mas acho que o meu grande amor ainda está por vir. Ainda vou amar e ser amada como eu de fato quero. Porque eu já fui amada, mas não do jeito que eu queria. Foi sempre pela metade. Alguns dos meus namorados amaram uma mulher, outros eu não sei. Amaram uma pessoa, sentiram atração, mas não uma mulher. Era uma coisa meio de homem para homem. Eu acho que os homens que me procuravam podiam até não assumir, mas gostavam de homem. Eles não me viam como mulher.
Você acha que existem muitos homossexuais enrustidos no mundo? Muitos. As teorias dizem que eles são cerca de 10% da população. Mentira. Eu não vou dizer que são 90%, mas são 50%. Eu vivi no meio fio por 27 anos e quando você não é homem nem mulher, quando fica jogada ao GLS, você enxerga isso melhor. Os homossexuais se abrem para você porque imaginam que você seja menos preconceituoso.
O que é sexo para você? Para mim, o melhor sexo é o que surge como complemento do amor, mas ele pode ser também apenas uma forma de extravasar a tensão, de relaxar.
Quais são seus planos profissionais? A primeira coisa que eu vou fazer agora é entrar com um pedido de mudança de nome e de sexo. Vou fazer um curso de promotora legal e, no final do ano, quero comprar um carro, entrar na faculdade e cursar psicologia, fazer mestrado e doutorado em transexualismo.
Você se considera um erro da natureza? Já achei que eu era uma aberração. Todo mundo falava que eu era e acabei acreditando. Hoje me considero um acerto da natureza. A terapia ajudou nisso. Era uma mulher de pênis, mas uma mulher inteligente, bonita, forte, decidida. Sou uma mulher muito especial. Hoje gosto de mim. Sei que sou assim por um erro genético, mas hoje até gosto de ser assim.
Se pudesse escolher, queria ter nascido como? Queria ser um homem completo, rico, alto e forte, que é a melhor coisa que existe. Ser homem nesse país deve ser muito bom.
Sobrou alguma coisa do Edilson? A luta, a força. Eu sou passiva sexualmente, mas socialmente eu sou muito ativa. Isso é um traço masculino. Além disso, o pomo de Adão, né?! Mas isso eu já tiro no mês que vem.
Como você se imagina com 45 anos? Quero estar clinicando, casada, estabilizada. Em paz com a vida, com a sociedade, com a cidade, com o mundo.
Você tem medo de envelhecer? Acho que eu tô começando a ter medo das rugas, mas não tenho medo da solidão.
Quando sair a alteração do documento de identidade, qual vai ser o seu nome? Bianca Vitória Magro, muito prazer (risos). Foi a minha mãe que escolheu.