Futuro aprisionado

Douglas Vieira
Carol Ito

por Douglas Vieira
Carol Ito
Trip #285

Em sua nova performance, a artista paraense Berna Reale escancara o racismo do sistema prisional e discorre sobre como perdemos a fé em nossos adolescentes

Atuando como perita criminal há quase dez anos, Berna Reale acompanha de perto a crise no sistema prisional brasileiro. Entre 2000 e 2017, a taxa de aprisionamento (que compara o número total de pessoas privadas de liberdade e a quantidade populacional do país) aumentou mais de 150%. São cerca de 706 mil pessoas encarceradas para pouco mais de 423 mil vagas nas prisões, de acordo com dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2017. Em paralelo ao trabalho na Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará, Berna usa a arte como forma de confrontar a violência que presencia no cotidiano, com performances corajosas e incômodas. “Ginástica da pele é mais um dos resultados de meus estudos sobre as cenas do cotidiano que presencio”, diz.

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Em seu trabalho mais recente, ela escancara o racismo que define a cor de quem lota as prisões brasileiras. A paraense, de 54 anos, reuniu cem jovens para representar os perfis dos presos no Brasil: 67% são negros ou pardos, com idade entre 18 e 29 anos, segundo números do Infopen de 2016. “A performance fala sobre preconceito, raça, classe social. É sobre o ato de punir sempre os mais desfavorecidos, principalmente os pobres e da raça negra. Este trabalho simula o exercício de prender, de encarcerar nossa juventude”, explica a artista. Por meio de entrevistas, Berna selecionou meninos que já foram abordados indevidamente pela polícia. “São garotos negros que estavam andando na rua sem camisa porque jogaram bola, saindo de uma festa, ou apenas caminhando, sem indícios de criminalidade. Os brancos, por serem tatuados, gays e pelo corte de cabelo.”

Grito

Organizados em filas, eles marcharam pelas ruas de Belém (PA), em junho de 2019, sob os comandos da artista, repetindo movimentos que remetem tanto ao treinamento físico das forças armadas quanto aos gestos que devem fazer quando são abordados pela polícia. “Quis mostrar uma ironia. O policial apita, obriga o jovem a colocar as mãos na cabeça e se ajoelhar, até que seja algemado.” Berna conta que a ideia da performance surgiu em 2017 e que, nos dois anos e meio que levou para ser concluída, organizou quatro encontros com os participantes para ensaiar e conversar sobre o propósito da obra. Cerca de 80% estão desempregados e muitos abandonaram a escola na quinta série. “Eles sabem que tinham um propósito de estar ali. São jovens maravilhosos, sensíveis, que não têm oportunidades. Foi fundamental conhecê-los de perto, saber onde moram, ouvir a história de suas famílias. Eles deram a força que o trabalho precisava, trouxeram a realidade na epiderme”, conta. “Me envolvi muito, eles têm idade para ser meus filhos.”

Morador de uma ocupação no bairro da Terra Firme, na capital paraense, Sidnei Rodrigues, 28, foi um dos participantes: “Berna Reale nos fez gritar: ‘Chega de violência e extermínio de jovens em Belém, no Pará e no Brasil’. Utilizamos este momento para expressar nossa indignação com tanto desprezo recebido de autoridades e da sociedade”, diz. “Desde criança, lido com as lutas sociais cotidianas por causa da minha cor e origem. A pior forma de preconceito que já sofri foi quando voltava do trabalho, num ônibus. Todas as cadeiras estavam ocupadas e, de repente, entrou um policial encapuzado. Ele veio diretamente a mim pedindo para levantar a camisa, pois era suspeito naquele momento.”

“67% dos presos são negros ou pardos, com idade entre 18 e 29 anos”
Berna Reale

A indignação que impulsionou a realização da performance só aumentou com a notícia da morte de Bernardo Soares Capim, 19, um dos participantes, assassinado com um tiro vindo de uma moto, quando voltava do colégio ao lado da namorada, na periferia de Belém, por volta das 23h, em 29 de agosto deste ano. “O tiro não partiu da polícia, mas é resultado da condição social em que ele vivia”, reflete a artista. “A morte do Bernardo quase me destruiu. No velório, que aconteceu em uma loja de caixões, a maioria ali era negra e pobre como ele. Não tem como passar por isso e não se revoltar”, diz. “Nossas crianças são marginalizadas. Que fé podemos ter se os jovens, que são o futuro da nação, são prisioneiros de um descaso completo? Muda o governo, mas ninguém se preocupa com o futuro. Não se preza pela cultura, e a arte não acessa as camadas mais pobres. As pessoas estão se odiando sem escutar o outro. Existe um templo de acusações e ignorâncias.”

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Homenageada no Trip Transformadores 2016 por usar a arte para pensar o coletivo, Berna segue firme em seu propósito: “Nós, artistas, temos a obrigação de não desistir do humano, de usar nosso trabalho como um veículo de reflexão para todo mundo”, acredita. Ginástica da pele resultou em um vídeo e uma série de fotografias, que a artista pretende expor em museus abertos ao público. “Tenho muito orgulho desta performance. Hoje, os artistas não negros têm medo de fazer algo que envolva pessoas da raça negra, pois teme ser acusado de apropriação de ‘protagonismos’ e ‘lugares de fala’. Mas estou certa do meu objetivo, que é refletir sobre a sociedade e a violência contra os negros e pobres. A arte não pode ter medo de tocar em feridas, tem que ser presente, corajosa, ocupar seu lugar e resistir.”

Trip: Como teve a ideia, qual foi a motivação para criar este trabalho?

Berna Reale: Estou trabalhando como perita criminal há quase dez anos e todas as questões que envolvem violência me motivam a fazer algo que confronte sua crescente. Como artista, quero elaborar as imagens que vejo e transferir para códigos simbólicos e estéticos, tentando causar um ruído questionador. Esse trabalho é mais um dos resultados de meus estudos sobre as cenas do cotidiano que presencio.

“Que fé podemos ter se os jovens, que são o futuro da nação, são prisioneiros de um descaso completo? ”
Berna Reale

Como foi o processo de trabalhar com esses garotos, que já tinham sofrido violência policial? Como eles contribuíram para o que você estava idealizando? Foi fundamental conhecer de perto esses garotos. As entrevistas, as conversas, conhecer onde moram, a família e o que fazem , eles deram a força que o trabalho precisava, trouxeram a realidade na epiderme.

Como foi concluir esse projeto e qual é o lugar desse trabalho em toda sua obra? Foi, sem sombra de dúvida,  o trabalho que mais me emocionou até agora. Antes era "Americano", agora é este. "Ginástica da Pele" me fez ser por dois anos um pouco mãe, tia, irmã, prima, desses rapazes. Hoje eles fazem parte da minha história. Com certeza cresci com eles, principalmente como humana.

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Ao concluir o projeto, em julho, você estava emocionada com o resultado e a conclusão. Depois veio o caso do garoto assassinado que mexeu profundamente com você. Como foi lidar com isso? Bernardo foi um dos garotos que participou do projeto e ele foi assassinado. Isso quase me destruiu, me desestabilizou, fez eu desacreditar totalmente no futuro. Fui lá naquele velório e vi aquele garoto de 19 anos velado em uma pequena loja de vender caixões e a maioria ali, que chorava, era negro e pobre, como ele. Não tem como passar por isso e não se revoltar. Estou cada dia mais indignada com o Estado e com o poder público deste país.

Esse trabalho ataca uma questão de Estado. Acredita no poder de transformação da arte? Qual seu papel nesse momento tão pesado que estamos vivendo, inclusive com ataques constantes a quem trabalha com arte? A arte pode muito pouco, ainda é de pouco acesso às camadas mais pobres da sociedade; as artes visuais, ainda muito elitistas, mas acredito que podemos trabalhar para melhorar esse quadro. A arte e a filosofia são as únicas coisas que deslocam, que fazem pensar, refletir, que são capazes de transpor. Nós artistas temos a obrigação de não desistir do humano.

Créditos

Imagem principal: Acervo Nara Roesler/Divulgação

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