Conviver é, sim, possível

Bruna Bittencourt
Douglas Vieira

por Bruna Bittencourt
Douglas Vieira

Na 12ª edição do Trip Transformadores, homenageamos os trabalhos de dez pessoas que nos mostram que é possível estarmos todos juntos e, assim, transformar o mundo

Olhar nos olhos e reconhecer o outro, independentemente da origem ou situação social, como igual. Ver oportunidade onde existe dificuldade e desafio. Fazer da dor um gesto de amor. Enxergar todos os humanos como eles são, humanos, sem privilégios para um ou outro. Escutar. Agir. Essas são ideias que, de alguma forma, permeiam os trabalhos dos dez homenageados de 2018 do Trip Transformadores, que neste ano celebrou o tema "Conviver é possível?". A pergunta proposta não pode ser respondida de outra forma senão convivendo e, mais do que isso, acreditando neste tão simples gesto como um ato de resiliência, resistência e amor. E foi esta a tônica da cerimônia de entrega realizada na noite de 22 de novembro no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, que se encerrou com uma certeza: conviver é, sim, possível.

Primeira homenageada da noite, Lucinha Araújo criou há 28 anos a ONG Sociedade Viva Cazuza. A iniciativa que visa ajudar crianças soropositivas também foi de vital importância para a abertura de um diálogo necessário para combater os estigmas e preconceitos que marcavam a então nova doença. “A gente não trabalha pra ganhar prêmios, mas, quando somos homenageados, é muito bom. Enquanto eu tiver saúde, vou cuidar das crianças, estarei lá todos os dias”, declarou no palco do Auditório Ibirapuera ao receber a estatueta das mãos da atriz Laura Neiva e de Rodrigo Santini, gerente de missão social da Ben & Jerry’s. Lucinha ainda lembrou do papel de padre Júlio Lancellotti, outro homenageado da noite e que estava presente quando ela decidiu começar seu projeto. “O padre Júlio me deu essa luz. A gente se conheceu há 28 anos, foi ele quem me aconselhou.”

“Eu não trabalho com os moradores de rua, eu convivo com eles”, disse o padre, que, há mais de 30 anos, milita em São Paulo pelos direitos humanos e pelas minorias – o movimento LGBT, a população carcerária, os moradores de rua, entre tantos outros grupos. “É possível conviver e transformar, sem ter medo de lutar até o fim. É possível defender aqueles que todos atacam, aqueles que ninguém ama e que ninguém dá importância. Sempre quero estar ao lado dos que perderam, que são pisados e desrespeitados para junto deles dizer: ‘Basta, a vida tem que ser respeitada’”, disse o padre, que recebeu o prêmio do artista multimídia Tadeu Jungle e da atriz Maeve Jinkings.

Assim como o padre Júlio, Luiz Chacon Filho também não é de cruzar os braços: criador da SuperBac há mais de 20 anos, ele é pioneiro no Brasil na utilização de bactérias para a criação de soluções ambientais, como, por exemplo, a despoluição de rios. O empresário recebeu o prêmio de Lia Azevedo (VP de RH Comunicação e Sustentabilidade d'O Boticário), mas ele fez mais do que agradecer: contou aos convidados que, na saída da premiação, eles receberiam uma pastilha para ser colocada no ralo de suas casas e que tratará a água usada. “Queria convidar todos a participar do projeto.”  

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Inovação também move Danilo Zamprônio. Físico biomolecular, ele se dedicou ao meio acadêmico até perceber que seu projeto de vida não estava restrito ao ambiente teórico. Ele queria usar seu conhecimento para causar impactos positivos no mundo e, da vontade de partir para a prática, o físico criou a Lotan, startup que desenvolve pesticidas sustentáveis com alta eficiência e sem toxicidade aos seres humanos e outros organismos. O chef André Mifano e Walter Schalka, CEO da Suzano Papel e Celulose, entregaram o prêmio. Em seu agradecimento, Danilo mergulhou no tema da noite (“Conviver é possível?”). “Acredito que aprender a viver junto é respeitar e ser empático com o outro, apesar das diferenças. É aprender a levar o outro a sério de fato, tentar o olho no olhos com as pessoas e ver que o mundo se apresenta de maneira muito diferente pra cada um de nós. Que a gente faça um esforço permanente para levar o outro a sério e desconstruir nossos preconceitos estruturais e construir uma sociedade mais justa.”

Ricky Ribeiro também trabalha para melhorar seu entorno. Quando ele  tinha 28 anos, ao voltar de Barcelona, recebeu um duro diagnóstico: ele tinha ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica). Do que poderia ser uma razão para se entregar, nasceu o projeto Mobilize Brasil, um portal sobre mobilidade urbana sustentável (de calçadas acessíveis a um transporte público de qualidade). “Ficar parado nunca foi uma opção pra ele”, lembrou Ricardo Chester, diretor de criação da Almap BBDO, que, junto de Gabriela Gaspari, gerente de comunicação da 99, e do ator Marco Pigossi, entregou a ele o prêmio. Em seu agradecimento, Ricky foi ovacionado e emocionou a todos os presentes. “É um prazer estar ao lado de pessoas tão inspiradoras. Quando fui diagnosticado com ELA, diziam que eu teria de dois a cinco anos de vida. Nunca poderia imaginar que dez anos depois estaria sendo homenageado em um prêmio como esse.”

É o que também procura a promotora Gabriela Manssur, uma referência na defesa da mulher. Seu reconhecimento vem muito da forma como escolheu atuar, indo além de prender o agressor. Gabriela percebeu que, para lidar com esse profundo problema social, precisava tentar, além de punir, transformar o agressor, criar nele uma consciência sobre o próprio machismo. E assim ela trabalha no projeto Tempo de Despertar, dedicado a ressocializar os homens agressores. A promotora recebeu o prêmio das mãos de Cícero Barreto, diretor comercial e de marketing da Omint, e da atriz e humorista Júlia Rabello, que celebrou: “O lindo do trabalho da Gabriela é essa escuta ao agressor, porque ali também há um trabalho a ser feito”. Gabriela lembrou das muitas situações difíceis que chegam ao seu gabinete. “Vi muitas mulheres estupradas, violentadas na sua integridade física, psicológica e moral, na sua dignidade”, contou. “Mulheres, acreditem, pois há vida depois da violência.”

Badminton era um “esporte alienígena” para Sebastião Oliveira, mas é através dele e de uma metodologia própria, em que são utilizadas as batidas do samba, que ele muda a vida de centenas de crianças em uma comunidade de Jacarepaguá, no Rio. “Vivi na Funabem dos 7 aos 18 anos de idade. Às vezes, não é de dinheiro que uma criança precisa, é de uma oportunidade”, disse o criador da Associação Miratus. “Transformaram a minha vida e estou tentando transformar a dos outros”, completou Sebastião, que recebeu o prêmio de Frederico Saliba, presidente da Shell Energy BR, e Rodrigo Figuiredo, VP de sustentabilidade da Ambev.

Sueli Carneiro é outro nome que luta por transformação: uma das criadoras do Geledés – Instituto da Mulher Negra,  primeira organização negra e feminista independente de São Paulo, ela recebeu sua homenagem das mãos de Taís Araujo, homenageada pelo Trip Transformadores 2016 por sua militância negra. “A Sueli e o Geledés têm sido a grande ferramenta da construção da minha identidade e autoestima enquanto mulher negra”, disse a atriz. “Essa homenagem renova em mim a ideia de que conviver é possível. Conviver com as nossas diferentes orientações sexuais, com diversas convicções religiosas. Vou emprestar o prestígio da Trip para divulgar as causas que defendemos, principalmente, neste momento de incertezas. Obrigada pela solidariedade e pelo compromisso.”

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A cultura negra seguiu dando a tônica: “Para afastar o mal, para afastar a inveja. Para atrair o amor, para atrair o que for bom”, cantou Luedji Luna no palco do Trip Transformadores. A cantora, uma das principais vozes da música brasileira contemporânea, usa sua arte como arma para combater o racismo e exaltar a ancestralidade negra.

Na sequência, o Trip Transformadores abriu espaço para a segunda edição do Prêmio Gol Novos Tempos, que homenageou a empreendedora Aline Landim, moradora da Brasilândia, bairro periférico da zona norte de São Paulo, que recebeu a premiação das mãos do presidente da Gol, Paulo Kakinoff. Ao observar que muitos motoristas se recusavam a levar e buscar passageiros em sua comunidade, Aline percebeu uma oportunidade de negócio e, junto de seu pai, criou a plataforma Jaubra. A iniciativa conta com 50 motoristas da região cadastrados, que podem ser solicitados por telefone, mensagem ou aplicativo terceirizado e, assim, ela transforma a realidade. “Quando o projeto foi criado,  não tinhamos noção do impacto que ele tinha. As pessoas da comunidade dão muito valor para o nosso trabalho. A gente também está gerando renda, muitos jovens taxistas estão começando com a gente”, contou.

A premiação tocou em um dos mais urgentes problemas do país hoje: o sistema carcerário. Valdeci Ferreira dedicou sua vida ao trabalho nas Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac), um revolucionário modelo prisional em que as chaves da rua ficam nas mãos dos próprios condenados, que trabalham e estudam dentro da instituição. Ele recebeu o prêmio das mãos de Christo Brand, carcereiro responsável por Nelson Mandela, preso por 27 anos durante o apartheid, na África do Sul, e de Carlos Netto, diretor de estratégia e organização do Banco do Brasil. Carlos ressaltou a importância de instituições que mudem o padrão desumanizador do sistema carcerário brasileiro: “O estado fracassa quando, ao invés de recuperar, atira”. Valdeci, em seu agradecimento, lembrou o grande idealizador da obra da Apac, Doutor Mário Ottoboni. “Lembrando as palavras de Mandela: ‘É impossível esquecer, mas é possível perdoar’.”

Das prisões para a sala de aula: nem todo mundo sabe, mas, além de ator, diretor, apresentador, escritor e militante, Lázaro Ramos é também embaixador da Unicef com uma agenda movimentada em relação à educação e à infância. “Eu me sinto como qualquer cidadão, que pode participar e fazer a diferença”, disse que ele recebeu o prêmio da apresentadora Angélica e do sambista Nelson Sargento, aos 94 anos. “A noite de hoje é mais que um prêmio, é um chamado. Me fez pensar em como me renovar, como conquistar novos ouvidos. Saio com a esperança renovada”, disse Lázaro. Nós também.

A premiação terminou nesta sintonia e com um encontro de gerações da música brasileira, com Nelson Sargento dividindo o palco com as cantoras Anais Sylla e Luedji Luna em uma versão de “Eu sou o samba”, clássico composto pelo bamba Zé Keti.

Créditos

Imagem principal: Mariana Pekin

Fotos: Mariana Pekin

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