por Silvia Carone
Trip #37

Um cara que passou mais de metade da vida alucinado com álcool e cocaína conta a história de seu sofrimento. Respira fundo antes de começar a ler

Estas talvez sejam as páginas mais negras da história da TRIP. Um cara que mais de metade da vida alucinado com álcool e cocaína conta a história de seu sofrimento. com todas as letras. Respira fundo antes de começar a ler - você vai se viciar nessa história.

Trip. Quando você foi apresentado à cocaína?

Fernando Waack. Meu primeiro contato com a cocaína foi quando eu tinha uns 15 anos.

Quando você percebeu que gostava? Quando eu vi que era chegado à “danada”? Com 17 anos eu já estava bem identificado a ela…

O que quer dizer isso? Eu estava sempre na noite de São paulo e andava muito com um pessoal de teatro, e a cocaína era muito presente em reuniãozinha. Eu fazia aquela preparação: antes de sair, a gente ia para casa de alguém, e falava “ah, vai ter uma festa no Victoria” - naquela época era o Victoria - e sempre tinha. Era bem ritual ir lá, encher a cara, fumar baseado…

Você está com quantos anos agora? Estou com 30.

Então faz 13 anos. Treze anos que eu tenho o contato mais íntimo. Mas o primeiro foi com 15 para 16 anos. Digamos que eu tinha um retorno usando cocaína nessa época. Me estimulava, me dava disposição para estar saindo na noite, para estar chegando de madrugada, e me dava um certo status - porque se eu tinha droga eu não tinha “medo”, eu tinha companhia, eu tinha mulher, e não me preocupava, não via que me traiz algum problema, não percebia que trazia algum problema.

Mas já tinha aquelas coisas de noitada até não aguentar mais... Noitada até não aguentar mais, ressacona braba. O meu primeiro contato já foi bem louco.

Você já estava sem estudar? Foi assim: quando intensificou o uso, o primeiro reflexo foi repetir o segundo colegial. Como na época não era tão popular assim - isso em 80 - o custo era bem elevado. Então, o que eu podia fazer? Eu conhecia uma pessoa que mexia com ela. O meu contato foi direto como avião. Para mim era muito mais fácil ver quem queria, levar o bagulho pro pessoal e tirar a comissão. Logo de cara eu já comecei a me envolver com esse tipo de coisa. Normalmente, eu já ia na casa do cara e ele me dava um toque para levar para tal pessoa que queria comprar tantos gramas. Quando eu voltava, eu tinha uma carga. Tinha 17 anos, moto, ia levava, voltava, dava o dinheiro por cara e pegava a minha parte. Cheirava direto. Lembro que quando eu fiz 18 anos queria ir para o Sul, para fugir da droga. Não era de São Paulo ou fugir da família. Eu já não estava mais aguentando. Nos seis primeiro meses foi pesado, direto todo dia, todo dia, todo dia, comecei muito de cara. E eu já sou tenso por natureza, então eu despirocava. Mas tinha muita culpa. Toda vez que eu chegava em casa não conseguia dormir, ficava me culpando. Tinha muita promiscuidade perto, muito bicha, muito travesti, uma coisa meio pesada. Eu vivia muito com esses caras.

E a troco de quê você começou com isso? Através de uma menina que eu comecei a namorar. O irmão dela trabalhava com teatro, era ator. Era aquela figura que me falava que queria pó e eu levava.

Você sempre quis se livrar, apesar de estar constantemente envolvido e se sentindo culpado, ou não? Acho que desde o começo foram raras as vezes em que no dia seguinte eu não falava “nunca mais vou cheirar”. E quando passava o mal-estar, quando anoitecia de novo… era como se eu fosse um pássaro de noite. Escurecia e o que eu tinha ficado remoendo de dia, quando o sol amanhecia, quando as pessoas estavam começando a ir trabalhar e eu estava arrasado, mal, totalmente mal, passava. Eu queria fazer a mesma coisa mas ter um outro resultado. Então eu achava que se eu fizesse de outro modo não iria acontecer aquela rotina. Foi forte. Nessa época eu resolvi viajar. Fui para o Peru pegar onda… Hoje eu percebo como eu estava envolvido com ela. Fui para lá surfar com o apoio das confecções daqui na época, levei muita roupa, parafina, negociei para levantar uma grana e no fim troquei tudo por cocaína. Era para ter ficado 30 dias, fiquei 60, voltei, cheguei em São Paulo e a minha família não acreditou: eu estava seco, sem prancha, sem roupa, sem artesanato, sem lembrança, sem fotografia, sem nada. Deixei udo. E engraçado é que foi assim: cheguei no Peru numa segunda à noite e fui para Punta Hermosa. Na terça de manhã, seria normal eu pegar a prancha e estar indo dar uma olhada nas ondas, checar o local, qual é a distância… só que eu já fui direto no endereço do cara que vendia. Eu fui naqueles de que “tal pessoa do Brasil me mandou para cá” e troquei umas bermudas por um cara. Nos 15 primeiros dias eu nem me preocupei em pegar onda. Queria era cheirar. Tomar Pisco e cheirar. Eu achava que fugindo do espaço geográfico onde estava a droga, eu iria me ver livre dela. Mentira. Onde eu ia, por mais que eu não quisesse, acabava encontrando cocaína. E achava que era ela quem me perseguia. Mentira. É que eu já estava mesmo envolvido com ela. Isso foi com 18 anos. Me sentia derrotado porque eu não conseguia me destacar como surfista profissional, e achava que eu era um fraco. Então, um modo de eu me sobressair no meio era usando e tendo acesso. Eu só vendi cocaína naquele ano. Fazia questão de ter quantidade. Eu estudava à noite e fazia um curso de hotelaria de manhã, então eu sempre levava cinco, seis gramas de “brizola” no bolso para vender, para cheirar no banheiro com os amigos. Sempre estava com cocaína. E fui “crescendo”, conhecendo pessoas, fui me envolvendo com um nível social melhor, fui me deslumbrando. Achava que cocaína estava me trazendo benefícios. As pessoas não estavam comigo, estavam com o que eu tinha. Mas eu pensava que não. Achava que eles queriam estar comigo. Eu me achava o máximo. As pessoas ligavam para me convidar para uma festa, mas na verdade o convidado não era eu, queriam convidar a cocaína para sair. E eu achava que não. O que aconteceu? Me prejudiquei, perdi o ano na escola, tive uma overdose fudida com 18 anos, achei que eu ia morrer…

Como foi a overdose? Eu comecei a cheirar muito, muito, muito, tinha brigado com a namorada, cheirei, cheirei, cheirei, tinha que fazer uma prova de manhã, emendei, fui virado. Antes de fazer a prova mandei muito no banheiro, fiz a prova rapidinho e saí. Fui andar. Aí começou a doer o pulmão, doer o pulmão, comecei a ter dificuldade de respirar, travou o pescoço, travou a coluna, parecia que eu tinha torcicolo do abdômen para cima, tudo duro. Uma agonia, parecia que eu ia morrer mesmo. E a vergonha de procurar, de contar para alguém e dizer “cheirei cocaína que nem um louco e estou mal, estou morrendo”? Fui procurar uma pessoa que não tem nada a ver com médico, com nada, e ela me deu uma força. Me pôs para relaxar, me pôs na banheira com sal grosso. Mas eu achei que eu já tinha chegado no meu limite e dei um tempo. Fui morar em Ubatuba, e lá eu me afastei. Fumava muita maconha, haxixe, bebia pra caralho - sempre bebi muito - mas eu estava afastado. Ia pegar onde, trabalhava num hotel, não procurava a danada, eu evitava os amigos que usavam. Mas não demorou muito e eu comecei a usar. Perdi um Carnaval que tinha tudo pra ser legal por causa dela. Nessa época eu estava me relacionando super bem com uma gata, estava legal no trabalho, um puta final de semana com sol, estava tudo ótimo. Então eu achei que estava tão bom, por que eu não podia cheirar? Fui para casa de uns amigos e compramos uma quantidade grande. Começamos a cheirar, cheirar, cheirar, e nisso eu não fui trabalhar, não fui procurar minha namorada, fiquei trancado dentro de casa. Um acabou raspando a sobrancelha com barbeador, eu entrei em paranoia quando a gente começou a tomar - foi uma das primeiras vezes que eu tomei cocaína na veia - e eu fiquei trancado dentro de um armário encolhido, com medo. Nisso passou sábado, domingo, quase fui demitido, a menina não quis mais me ver, não fui mais ver o Carnaval e nos outros dias foi uma puta ressaca física e moral. Perdi essa menina, que falou: “Olha, você gosta mais da droga do que de mim” e eu via que estava perdendo as coisas. Ao invés de me afastar, eu ficava com raiva e usava mais. Um auto-flagelo: “Já que ela está me fudendo, já que eu perdi, então vou usar mesmo.” E ia me enterrando.

E a família? Eu sempre fui muito ausente, sempre fiquei muito na rua. Saí de casa em 82, com 19 anos. Foi quando eu fui morar em Ubatuba que eu saí definitivamente. E toda vez que eu estava usando muito, eu fugia. Quando Ubatuba começou a me trazer problemas, ou melhor, quando eu comecei a trazer problemas -porque Ubatuba não me deu problema nenhum, era eu o problema- aí comecei a usar la, comecei a vir para São Paulo uma vez por semana para comprar, para ter para mim no fim de semana, achei que era a hora de ir embora de Ubatuba. Mas aí é que está: eu sempre achava que tudo era externo, nunca era eu. Fui embora morar na Bahia. Falei: “Lá não deve ter cocaína.” Ilusão.

Mas você pensava isso mesmo, era consciente? Se alguém te perguntasse por que, você dizia que era para fugir da cocaína? Eu dizia para mim e para os outros: “Vou porque não conheço Salvador e tenho uma proposta de montar uma fábrica de prancha”. E eu fui montar essa fábrica. Mas o que aconteceu? Eu substitui a cocaína. Comecei a tomar Glucoenergan, e para trabalhar -eu lixava prancha- eu tomava esse remédio na veia. Glucoenergan é glicose pura. Hoje não tem mais Glucoenergan como era. Muito jogadores de futebol usavam. Até em cavalo de corrida se usa! É glicose pura, então você tomava, por exemplo, 100mg -puta overdose de glicose- e ficava a milhão. Não comia, não dormia, podia tomar três garrafas de pinga e não ficar bêbado. Isso é muito usado quando você está em coma alcoólico, o cara vai lá, te dá e você levanta na hora. Então eu já tomava um monte antes de beber e ficava a milhão. Fiquei muito tempo tomando Gluco, aí aquela coisa: apareceu cocaína e eu comecei a tomar glicose misturada com cocaína na veia, mas Energisan. Vivia que nem um retardado mental. Ninguém me aguentava, nem eu me aguentava. Engraçado que quando eu estou usado, tenho um momento muito pequeno de excitação. Depois eu travo, quero me esconder, ficar num canto. Na minha cabeça, a velocidade do pensamento é tão grande que eu não consigo falar. Quando eu vou falar o que eu estou pensando, já pensei. Uma merda. Aí larguei a fábrica de prancha, larguei tudo e fui morar em Itaparica. Pensei: “Aqui não tem”. Sempre achava que mudando de lugar… lá no “resort” deu uma aliviada, mas eu estava muito íntimo do grupo, gostava de fazer musculação, gostava de andar de windsurf, acordava às oito da manhã e ia dormir às quatro, não queria perder nenhum momento. Para mim todo dia era o último da minha vida. Tinha que fazer tudo num dia porque amanhã eu estava morto. Reativan, Gluconergan, Energisan, pó de guaraná, sempre essa sede de estímulo. Eu queria absorver tudo, e acabava não absorvendo nada, alucinado. Eu fiquei um tempo, uns seis meses sem usar cocaína, mas usando algo que me desse o mesmo resultado, um estimulante.

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E bebendo sempre. O álcool presente sempre, manhã, tarde e noite. Todo dia. Podia faltar maconha, podia faltar tudo, mas cachaça nunca faltou. Tanto é que eu tenho uma série de problemas por causa do alcoolismo. Depois de Itaparica, fui morar no Rio. Casei com uma carioca que gostava de usar também. Aí foi foda. Comecei a roubar, comecei a trabalhar como recepcionista num hotel, alterava nota fiscal, fazia câmbio de dólar, agilizava meninas para os hóspedes -ia muito americano no hotel, então eu conhecia as vagabundinhas da praia, conhecia os cara, fazia avião, falava para o cara que a menina queria R$50, dava R$20 para ela, ficava com R$30 para mim, comprava cocaína… Tanto foi que me mandaram embora por causa do movimento na recepção. Às onze da noite de sexta-feira de Carnaval eu vendendo papelote na recepção. E cheirava pra caralho. Todo dia, todo dia.

Mas sempre aquela coisa de na hora de dormir… Aí já não, Eu nem tentava mais, não me permitia mais ficar na ressaca. Não existia isso. Quando já estava acabando, já estava cansado de cheirar, enchia a cara e desmaiava. Então não dava tempo de… eu acordava de tarde, já arrombado da ressaca do álcool, já cheirava uma, fumava um. Seis meses doente. E muita promiscuidade: cada de massagem, minha mulher estava trabalhando, eu ligava para anúncio de jornal para levar mulher em casa, achei que estava ficando louco, porque estava saindo dos eixos, achei que era melhor voltar a estudar e entrei numa faculdade -nem sei como passei no vestibular- mas não adiantava nada, carregava o vício comigo.

Como é a história de achar que estava ficando louco, o que passava na sua cabeça? Confusão mental, você não consegue dar fim em nada. Qualquer coisa que me propusesse, não conseguia realizar. Um sentimento que eu tinha por você agora, três segundos mudava, podia estar rindo e daqui a pouco estava chorando. Ou deprimido ou eufórico, não tinha um meio termo, não conseguia ter uma estabilidade.

Você se separou dessa menina? Ah, fiquei um bom tempo com ela… Eu comecei a achar que o problema era outro: fui procurar centro espírita, achava que era encosto! Fiz trabalho de umbanda, acendi vela em porta de cemitério com cachaça “para tirar o espírito maligno do meu corpo”, mas o que adiantava? Tirava o espírito na sexta e no sábado estava usando. “Agora tirou o espírito então eu posso cheirar”... Aí foi foda. Voltei para São Paulo -sempre assim- cheguei aqui e larguei a mulher, larguei a faculdade, larguei tudo, não aguentava mais esse negócio de ficar envolvido com estelionato, tráfico, prostituição, e fui trabalhar com um amigo numa galeria de arte. Mas deu 15 dias e eu entrei um cara das antigas trabalhando pra polícia, que tinha a carga toda… um mês depois eu já estava aí com um sacão de cocaína vendendo pros caras, já usando que nem louco, já pirando, já distorcendo a realidade, ficando irritado… E era louco porque eu usava, usava, usava, depois eu me arrependia, usava, usava, usava, depois me arrependia, uma coisa de louco isso de você saber que está se acabando, mas era só ter um momento de bem-estar que já era motivo de voltar. Como eu podia ter tanta sede de vida e me matar tanto? Eu usava para aquela sede de estar vivendo, de querer aproveitar, “porque dormir é perda de tempo, quando eu morrer eu vou ter muito tempo para dormir, então eu quero ficar acordado, não quero perder um minuto da minha vida. vou cheirar porque assim eu não durmo, fico elétrico, fico esperto”. E ao mesmo tempo eu me sentia morrendo, né. Quando passava essa euforia vinha aquela depressão, vinha aquela: “Por que quando eu tinha trẽs anos de idade eu bati no vizinho?” Vinham coisas na minha cabeça que eu não sabia nem de onde. Falava: “Porra, que coisa, eu tenho 12h de euforia e 10 de depressão”.

Existia alguma proporção de euforia para depressão? Era nojento muito mais deprimente do que eufórico. O único modo de você manter a euforia é manter o uso. Mas aquele estado de euforia vai ficando mais distante. E a depressão mais profunda. Aí chega uma hora que mesmo usando você não sai mais da depressão. Você não consegue atingir mais a euforia. Aí eu usava e ficava deprimido. Se não usava também estava.

Como era a sua depressão? Depressão?... É visceral… Para mim é como aquele frio na barriga de quando você desde uma montanha russa, dava aquele frio na minha barriga e dava sensação de vazio, aquela falta de sentido de tudo. Eu via tudo preto, não via beleza em nada.

Você não pensava que estava se matando? Sentia que eu estava me matando e não conseguia parar. É desesperante. Eu tinha meu momento de folga através do álcool, para poder suportar essa dor eu tampava ela com a cachaça. Ou eu estava ligado ou eu estava embriagado. Mas muito bêbado, muito bêbado… foi quando eu descambei mesmo no alcoolismo. Teve um período em que eu me afastei totalmente, não cheirava nada, não fumava nada, mas em compensação tomava quase um litro de pinga por dia. Tinha que estar de algum jeito aditivado, fugindo de algum jeito da realidade. Não queria encarar nada de frente, era muito covarde. Então eu me sentia forte, era prepotente, me achava dono da situação. E não era nada disso, tudo mentira.

Mas era um ciclo? Sóbrio você decidia parar, mas aí você via, hesitava um pouquinho, começava e não parava mais. Acho que o momento de sobriedade era muito duro. Eu tinha até medo de ficar sóbrio e de poder ver o que estava fazendo.

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Tinha gente querendo ajudar? Me incomodava qualquer pessoa que tocasse no assunto sobre meu modo de usar. Se alguém falasse, eu já tomava frente na situação, agredia a pessoa e afastava ela do meu contexto: “Sai fora. A vida é minha, o dinheiro é meu, compro com meu dinheiro, faço o que eu quiser, sou eu que estou me matando e me deixa em paz”. E as pessoas se afastavam de mim, tanto que nessa vida de cocainômano eu fiquei oito anos viajando. “Viajando” é o modo simples de dizer fugindo. Para tribo eu anos -surfista, essas coisas- é muito normal e até valorizado ser um nômade. Então para mim era perfeito: “Sou surfista, pego onda, então vou ficar viajando”, e ficava fugindo. Tanto que sempre que estava em algum lugar e eu começava a usar muito pesado, a primeira coisa era achar que o lugar estava ruim e ir embora. Muita oportunidade eu deixei, porque eu queria me esconder. Eu tinha vergonha de mim, muita vergonha.

Mas você se arrependia sempre da noite anterior? É aquela coisa: eu me achava rebelde, e a minha rebeldia era contra a minha consciência. Eu agia totalmente ao contrário do que eu na verdade desejava e era. eu sou uma pessoa calma, que gosta de todo mundo, que é participativa. Então o que eu tinha de desejo mesmo eu não fazia. A minha revolta era contra mim. Era horrível, eu não me suportava, estar comigo era super baixo astral.

E você estava sempre namorando? Sempre usando as pessoas. Eu era muito carente. Eu percebo hoje, com 30 anos de idade, que eu nunca tive um sentimento verdadeiro, sempre distorcido. Sempre vivi muito mais a sensação, emoção e percepção. Sentimento verdadeiro, não. As pessoas eram muletas, eu sugava a pessoa até ela não suportar mais e fugir. Tive muita dificuldade de manter um relacionamento porque eu era muito pedante, muito pesado, desgastante, uma pessoa sofrida. Aquela coisa: ou eu estava a milhão ou estava um lixo. Difícil alguém querer conviver. Normalmente, quando você encontra alguém, é alguém igual ou pior. Tinha muito relacionamento “químico”, como se diz. Eu procurava parceiras que fossem da ativa, que usassem. Normalmente eram prostitutas, mulheres da noite, que eu tinha meu prazer sujo, podia estar na promiscuidade. E eu achava que amava alguém e que era amado

Eram mulheres que trabalhavam mesmo… Mulheres da noite, não depreciando a classe -gosto muito delas- mas nem todas são como as pessoas que eu me relacionei. Eu sempre procurava sapato velho para o meu pé doente. Bem dark, sujo, underground, gostava de entrar no meu quarto cheio de louça suja, gostava de Bukowsky, de não ter comida na geladeira, garrafa de bebida para todo lado, carpete queimado de bagana, prato sujo de cocaína, higiene pessoal zero. Sabe, gostava da escuridão… coisa louca. Eram uns relacionamentos doentes. Muita briga, muita agressão física, muita ofensa moral, muita boatezinha do centro da cidade, muito motelzinho barato.

Onde você morava? Eu morava no Humaitá, Rio de Janeiro, mas estava sempre na rua do Lido em Copacabana, ou em Botafogo numa casa de massagem, ou enfiado num hotelzinho barato usando. Aqui em São Paulo também, foda…

Quando começaram as internações? O caldo entornou mesmo de uns cinco anos para cá, quando eu me envolvi com anfetamina. Não tem viagem psicodélica, não tem nada. Eu entrava em contato com um cara que tinha muita anfetamina -não foi no Brasil isso- trocava a cocaína pelas anfetaminas e tomava direto, todo dia. Aquilo começou a perturbar minha cabeça. Ficava quatro, cinco dias sem comer e sem dormir. Cheguei a trabalhar, mas fiquei sete meses sem ter uma relação sexual, sem ter nada, só via droga. Eu comprava 150, 700 pedras, tomava quatro num dia, vivia adrenado. Voltei para o Brasil e trouxe para vender, só que quando eu cheguei aqui, eu guardei, porque se eu vendesse não teria para mim. Comecei a tomar muito. Aí surgiu a primeira cadeia. Não fui preso com anfetamina, foi com baseado. Mas eu estava anfetaminado. Isso foi em 89 e a minha família já abriu os olhos, me pôs num psicólogo, num terapeuta, comecei a frequentar Toxicômonos Anônimos, Alcoólatras Anônimos, mas por imposição externa, não era uma solicitação minha. Eu não queria ajuda. Achaia que ainda dava para segurar. Nessa fuga toda eu fui morar em Manaus, entrei em contato com a base, comecei a fumar base, parei de cheirar, só fumava pasta base da cocaína. É uma substância bege que parece argamassa de passar em parede, e você fuma com tabaco. Aquilo arranca teu peito, parece que você está fumando um pedaço de pano com querosene puro. Aquilo foi me deixando muito louco, meu. Chegou uma hora que eu já ficava louco sem usar mais nada. Acabei voltando para São Paulo em desespero, e cheguei aqui mal. Não estava mais usando estimulante. Já sentia que estava totalmente abalado. Meu sistema nervoso estava um lixo, a minha noção de realidade estava totalmente deturpada e as reações físicas que eu tinha eram impressionantes: ou eu tinha diarreia ou muita prisão de ventre, ou muito sono ou insônia. E álcool pra dentro, álcool pra dentro. Acabei voltando a ver as pessoas que eu não via. Não deu dois palitos e eu já estava cheirando de novo, só que eu cheirava uma fileira e parecia que eu tinha cheirado cinco gramas. Estava num quadro psicótico. Eu também tive delirium tremens.

Como é? É quando tiram a substância do seu corpo mas ele já está tão habituado a agir mediante essas substãncias que na ausência delas ela provoca uma disfunção cerebral. Você começa a ver, ouvir, ter convulsões, enfim, pira. É o princípio da loucura mesmo, você pode morrer, ter um acidente vascular-cerebral, ter um derrame cerebral e morrer. Eu tinha esse delírio místico, tinha essa paranóia de perseguição, eu sofri um acidente com um amigo, achei que o cara tinha ficado puto comigo. Eu tive uma fantasia em cima disso, achei que ele queria me pegar. Eu entrei na minha casa, acordei meu pai, acordei a minha mãe, queria uma arma, queria matar o meu pai, a minha mãe, todo mundo, queria quebrar tudo, comecei a beber whisky, rir e chorar, desmaiei, acordei às quatro da tarde e meu pai tinha acionado psicólogo, médico e eu fui internado pela primeira vez. Foi em consequẽncia de uma overdose, que é quando vocẽ passa do seu limite, realmente você se descontrola. Fiquei amarrado três dias numa cama sedado, depois eu passei para um apartamento só. Era uma clínica moderna, tipo spa. Fiquei 45 dias internado. Depois eu passei a trabalhar como contato comercial durante o dia e à noite eu dormia na clínica. nos fins de semana eu ficava internado direto.

Como você se sentia quando estava normal, sem estar sedado? Você entra em confusão, você tem a síndrome de abstinência. Teu organismo pede, né? Em qualquer situação eu estava acostumado a estar me dopando, então sem ela é difícil. Por exemplo: qualquer situação de medo, vergonha, em vez de enfrentar a situação eu tapava tudo com um químico. O medo fica muito mais forte quando você para de usar, muito mais do que quando eu nunca tinha usado. Eu tinha muito medo porque eu tinha certeza de que estava louco. Na primeira semana eu tinha certeza de que nunca mais iria ser uma pessoa normal, que o meu fim seria ficar dentro de uma instituição, de um hospício pro resto da minha vida. Ou acabar me matando.Eu tinha vontade de dar um fim, queria terminar com a minha dor, com o meu sofrimento, e eu achava que o modo mais prático era me matando. E é muito forte essa vontade. Tanto que eles tiram tudo de você: pra fazer barba, eu tinha que estar com um enfermeiro porque eu poderia desmontar o barbeador e cortar o meu pulso. Não podia usar desodorante líquido porque eu poderia estar bebendo, não podia ter cinto, se eu fosse fazer alguma refeição longe do refeitório, só com colher. E mesmo assim tinha que estar me marcando, porque existe a possibilidade de você amarrar o cinto no chuveiro e se enforcar. Eu comecei a me prender muito à fé. eu tinha que estar acreditando em algo maior do que a existẽncia humana para poder me dar razão. Eu rezava, tinha que pedir a Deus: “Pelo amor de Deus, não deixar eu ficar louco, eu não quero ficar louco. Eu estava enganado, esse negócio de ser muito louco era brincadeira, não era série. Pelo amor de Deus devolve a minha sanidade. Que mal eu fiz…” E era apavorante, muito medo, muito medo.

Você ficou zero de drogas quando saiu? Zero. E só posso agradecer a um cara, principalmente por ele ter me acolhido depois de tudo. Nessa época eu também fiz uma puta festa beneficente em uma das casas noturnas mais badaladas de São Paulo. Me deram um espaço na noite para organizar festas, pediram para eu fazer uma assessoria na reforma dessa casa -nisso eu não estava usando- e eu ia muito para praia.

Você fazia um puta esforço para não usar? Eu nem questionava, achava que a distância entre a droga e eu era muito grande, não fazia mais parte da minha vida. Mas aquela coisa: voltei a frequentar os velhos lugares, andar com os velhos amigos, e num determinado momento, eu achei que dava para usar moderadamente, que agora eu tinha o controle, que tinha sido uma fase. Eu me lembro bem: eu estava na Barra do Saí fazendo um trabalho para aquela casa noturna, namorava gostoso, estava namorando uma pessoa ótima, era um relacionamento bom -acho que foi a primeira vez que eu tive uma relação sexual sem estar embriagado, sem estar drogado- foi diferente, era como se fosse a primeira vez. Estava tudo muito bonito, eu estava muito deslumbrado com essa nova visão limpa. Aí eu lembro que fui pedir uma vodca. E eu tomei a vodca. Quando eu tomei parecia que tudo tinha passado na minha vida -na época eu tinha 12 de uso-, aqueles 12 anos tinham se condensado naquele minuto, naquela vodca. Eu entrei numa crise, chorava, chorava, chorava, e eu tinha certeza que dali eu tinha voltado pra minha ruína. E foi exatamente o que aconteceu. O famoso “primeiro gole”. Por causa de um copo de vodca eu ativei tudo, tudo aquilo que eu achei que estava quieto, amortecido, guardado, trancafiado, veio à tona. Deixei de fazer terapia, comecei a usar moderadamente e me chamaram para trabalhar na noite. Aí não deu 20 dias e estava na mesma merda: usando pra caralho, cheirando pra caralho, saindo com a mulherada, parando na cidade em motelzinho barato, indo para as casa de massagem, era assim. Só cinco vezes mais intenso do que no dia em que eu parei. Impressionante como você retoma a coisa com muito mais sede. Parece que aqueles 90 dias sem usar tinham que ser compensados de uma vez. Uma sede, uma voracidade enorme pra estar drogado. E na hora TUDO começa a andar pra trás. Fui desligado da casa noturno por causa do uso da droga, fui mandado embora. Por me pegarem fumando um baseado no camarim com úsico, por viver cheirado, cheirar no caixa, cheiro em tudo quanto é canto, vivia cheirado. Cheirava, cheirava, cheirava. E quando não estava cheirado, estava bêbado.

Era sempre até de manhã. Até de manhã. Ao meio-dia eu ia dormir e acordava às 7h da noite. Trocava a noite pelo dia, literalmente. trabalhava das 8h da noite às 4h, saía e ia pra cidade -porque lá tem rock’ n’ roll até 9h, 10h da manhã-, saía de lá e ia para o motel estiar. Depois desmaiava. O sono é alimento do cérebro. A partir do momento que você não está alimentando o teu cérebro, ele está ficando deficiente. Aí você começa a ficar xarope. Se você não comer, fica fraco, e eu estava com a cabeça fraca. Resultado: fuga geográfica. O mesmo processo, a mesma história de novo. Fui morar em Maresias. O que eu fiz? Abri um bar em Maresias!

E grana para isso? Eu sempre tive uma estrela boa. Fui chamado para entrar como sócio minoritário.

Aí você bebeu e cheirou o bar inteiro. Claro, era uma putaria, uma coisa inconveniente, e não deu certo, acabou o bar, acabou a sociedade, me vi de novo fudido.

E quando você se via assim não lembrava de como já tinha ficado das outras vezes? Mas é engraçado… você repete o erro. Por isso eu digo que é a doença do não-percebimento. Você sabe mas não age, você tem consciência que está comendo merda e acha que está comendo caviar. Eu sabia que tinha problemas, que as pessoas se afastava,, que eu perdia oportunidade, que a minha moral estava suja, que eu já tinha problemas judiciais, tinha abandonado minha profissão -sou hoteleiro formado, tenho experiência internacional, falo idiomas- o meu nome está sujo no mercado hoteleiro, eu consegui queimar o meu nome...Então tudo isso vinha à tona, e quando vinham todas as cagadas, todas as perdas, como trabalhar isso? Usando. Aí usava mais. Então já tinha tinha perdido a oportunidade de trabalhar naquela casa noturna, do outro trabalho, “quero morrer... Não dou sorte… sou um perdedor… eu optei por perder… tenho consciência de que eu faço tudo pra perder… por que eu sou assim? Por que eu faço um castelo bem bonito de areia e depois caio sentado em cima?” A visão do perdedor. Eu criava aquele castelo, mas um castelo oco. Que nem um cenário de cinema: você vê o castelo, mas por dentro é só madeirite e prego. E quando não desmoronava por si só, eu tinha o prazer de ir lá quebrar. Eu tinha - hoje não tenho mais- o prazer de destruir as minhas conquistas. Me sentia bem perdendo. Coisa de doente, bem doente. Nesses últimos dois anos, fiquei escondido nas praias. Eu procurava aparecer o mínimo possível em público, e quando aparecia, estava totalmente travado. Bebia bastante: uma garrafa, uma garrafa e meia, muita pinga, então vivia bêbado e me escondendo. Nessas a minha família começou a se preocupar e resolveu me sustentar na praia. Eles preferiam que eu ficasse lá, escondido, do que aqui. Por pior que fosse, eu estava menos exposto lá. Mas aí eu comecei a entrar num quadro fudido de alcoolismo. Já estava desligado da cocaína, mas eu tinha sequela da cocaína, o desgaste que ela tinha feito comigo. Eu entrei num quadro louco, completamente psicótico. Comecei a perder amigos -não diretamente pela droga, mas por acidente de automóvel, todo mundo drogado- e tudo levava para um drama, cresciam todos os problemas. Eu me achava um lixo, a escória, a típica hiena -trepava uma vez por ano, comia merda todo dia e ainda dava risada. Eu era um merda. para amenizar essa coisa, eu bebia, bebia, bebia, comecei a ter alucinação, ver coisas, não conseguia assinar meu nome…

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Sem cocaína? Sem cocaína. E quando eu voltei a ter contato com a cocaína, foi impressionante: eu podia cheirar uma grama ou uma fileira, a reação era imediata: depressão profunda aguda, na hora, e síndrome de perseguição instantânea. Não tinha excitação, não tinha prazer. Eu não tinha mais aquele ritual de ir na boca, pegar, esquentar o prato, quebrar as pedras, “vou esticar umas fininhas”, tal. Era pegar e jogar dentro do whisky, ou comer mesmo -cheguei a comer, por papelote inteiro na boca e mastigar. Dilatava muito a pupila, tinha convulsão, tinha cólica no fígado, me retorcia todo e ficava trancado ali num canto, apagava a luz, desligava o som e ficava vendo morto… no meu quarto. Então eu achava que tinha um contato com o plano espiritual. E isso é delírio, é um quadro psicótico gerado pela droga. TODAS acabam te levando a isso. Umas com mais tempo, outras com menos. Não levam todas as pessoas, mas algumas levam. Eu sou ua delas. A coisa foi piorando. Se eu fumasse maconha, ficava louco. E se eu não usasse álcool eu ficava louco. Então eu ficava louco com e pior sem. Comecei a entrar em pânico. A hipótese de não estar anestesiado pelo álcool era apavorante. Na minha casa tinha bebida escondida em tudo quanto era canto. Eu acordava ás 2h da manhã suando, tremendo, mal, tendo cólica, eu tinha que ir na cozinha tomar dois copos de requeijão de pinga e dormia, mas eu acordava três horas depois. O organismo queria mais! Às 5h30, 6h da manhã já estava tomando umas. Alimentação, quando muito eu fazia uma refeição por dia. E isso foi me debilitando, eu fui emagrecendo, não defecava mais, a urina era laranja-escuro, parecia um vidro de formol. Mijava e o banheiro ficava impregnado. Comecei a vomitar espuma preta, a comida não parava dentro do estômago. Fígado, rins, era tudo fudido. O teu fígado não consegue mais metabolizar, sei lá. Disfunção hepática. Uma vez, achei que tinha uma bolha, tipo aquela bolha assassina, que me perseguia. Saí gritando na rua, cortando a bolha com foice, cai na rua e comecei a tremer, espumar, me levaram para o pronto-socorro de Juquei, tive que ficar no soro, com sedativo. Fenergan. Aí voltei para São Paulo, e não contente resolvi tomar conhaque com Coca-Cola. Nem álcool mais estava entrando, estava simplesmente no meu limite. Tomei dois Dreyes com Coca-Cola e comecei a vomitar, ter cólica de fígado e fui parar no hospital. Tive que ficar dois dias com soro, Plasil, Fenergan na veia, tomando papinha. Nos exames foi constatado que eu consegui adquirir nesse tempo todo -em 17 anos de uso de cocaína, álcool, maconha, ácido, tranquilizante, anfetamina, tudo- esfagite, disfunção hepática (ou seja, um convite à cirrose), hérnia por deslizamento do hiato, arritmia cardíaca, comprometimento sexual… Algumas lesões são reversíveis, mas a longo prazo. Isso além de ansiedade, depressão, desequilíbrio emocional… Mas mesmo assim não parava. Voltei para praia e continuei usando. Aí despiroquei mais ainda. Comecei a quebrar tudo. E estava namorando. A menina me pôs no carro e falou que eu estava ficando louco. “Você não está mais falando coisa com coisa, está chorando e rindo, chorando e rindo, tua pupila retrai, dilata, retrai, dilata, retrai, dilata, você está cheirando, tomando ácido.” E quando não usava, o quadro era pior. Eu bêbado, normalizava. Eu sóbrio despirocava literalmente. Que aconteceu? Me internaram num hospital psiquiátrico. Fui parar em um instituto de psiquiatria. Entrei com depressão alcoólica aguda: tremor, inchaço, veia saltada do lho, falta de vitamina, tudo derrubado, moral e espiritualmente. Não tem um campo da tua vida que salve. Nenhum. Para quem já viu “Um Estranho No Ninho”, é você viver o filme. Eu quando acordei, já estava há vinte e poucas horas sedado, amarrado numa cama com um soro verde no braço. Tinha tomado “sossega-leão”, fui amarrado na cama, na cela dum pavilhão chamado Pavilhão 9! É o pavilhão de triagem, onde tem 16 loucos, esquizofrênicos, psicopatas, onde tiram o colchão da cama e você tem que dormir no estrado, uns ficam se masturbando e não trocam de troupa, um lixo, gente que come merda, gente que não toma banho, neguinho que precisa tomar choque, gente que não dorme… Fui para num hospício. Não queria ser louco? Taí o que dá ser muito louco. Fiquei apavorado. Falava que não estava louco. Quando eu estava fudido, “pelo amor de Deus me ajuda. Dá-lha Deus. Cadê Deus que me abandonou?” Como que te abandonou? Ele me carregou no colo. Desespero. Fiquei trẽs dias naquela luta, naquele esforço para estar retomando, tentando ter um momento de lucidez, um momento de discernimento para conseguir ter um diálogo com alguém, expor realmente. E eu consegui com uma enfermeira que me tirou do Pavilhão 9. Fui para um quarto com cinco leitos. E para você ter uma ideia, é uma instituição fechada, é um depósito de reśiduo humano pelo Estado. Se a saúde pública já é precária, imagine um sanatório. Comida de bandeijão, pulga, higiene precária. E tudo que tem aqui fora tem lá dentro: comecei a me drogar lá dentro, só que são drogas distintas, são drogas de manicômio. Os enfermeiro vendiam remédios pra gente em troca de cigarros -alguns, não todos. Eu tomava Aldon, Dexamil, Dalmadorm, tomava disco voador que eu não sei nem o nome, o que é, mas é um derivado da morfina, que adormece tudo: a língua, a boca, ficava em letargia. Além disso, a gente fazia cachaça lá dentro: pegava sobre de comida, pegava arroz, casca de laranja, de banana e na madrugada desmanchava um chuveiro, tirava a resistência e cozinhava. Depois a gente tomava isso com tranquilizantes, e dava uma reação para lá de louca. Eu ficava num estado catatônico: babava, tinha convulsão, caía no meio do pátio, me debatia... era realmente insanidade, eu vivi a loucura na íntegra. Quando eu saí do instituto de psiquiatria tinha adquirido uma outra dependência, por tranquilizantes, antidepressivos, anticonvulsivos, sedativos… Eu não cheirava, não fumava, não bebia, mas tomava 20mg de Lexotan por dia. Era um cara idiota, robotizado, e não tinha sono porque eu tomava Aldol. Eles te dão uma série de remédios: um antidepressivo, um anticonvulsivo, um antidistônico, Complexo B, e um que quebra a potencialização deles. Imagina como você fica. Você fica um merda literalmente. Aí comecei a usar essa substância mais álcool, o que me gerou apagamentos, ou seja, em determinados momentos, meu cérebro desligou e eu agia não sei como. Então eu acordava domigo, todo fodido, com a cara quebrada, com a cabeça raspada, e só sabia que tinha saído de casa na sexta-feira às 8h da noite.

E o que tinha acontecido do meio, não lembrava nada? Nada.

Quantas vezes você bateu o carro drogado? Não dá para contar. Eu perdi cinco carros, de não conseguir sair pelo lugar por onde eu tinha entrado. E não contente com essa situação, voltei a usar cocaína. Então usava: tranquilizantes, anticonvulsivos, álcool, tudo. Surto psicótico, quadro de delírio, delírio místico. Tudo de novo. Resultado: fui internado de novo.

Seus pais te mandaram? Meus pais falaram: “Ou você vai ou você vai morrer, vai ficar louco. Você está ficando louco.” Eu estava morando aqui com eles, depois de dez anos fora de casa. Estou agora há oito meses com a minha família. E nesses oito meses eu tive duas internações. Em oito meses eu tive três empregos, em outro meses eu tive uma namorada. E há seis meses eu não tenho uma relação com ninguém. E a coisa mais gostosa como resultado de tudo isso: que a minha realidade estava uma merda. Quando eu encontrava alguém na rua, me perguntavam se eu ainda estava vivo. Todo mundo olhava para mim e associava à droga. A droga do Fernando. Realmente a droga do Fernando. A bosta do Fernando. Se botar ele na água, ele destila, desaparece. Se você injetar na veia, nem barato vai dar. É capaz de passar mal.

Me puseram na última internação, que eu já posso dizer “com a graça de Deus”. Fui parar numa clínica que não era nem como a primeira, nem como a psiquiatria fechada. Era um trabalho de conscientização. Eu fiquei numa unidade de desintoxicação durante 72 horas - que é o momento de pico, o momento mais grave, quando se tira a substância química de um dependente. Por exemplo: tem gente que quando você tira, morre. Nessas 72 horas eu posso ficar louco pelo resto da vida, ou ter um acidente vascular cerebral e ficar paralítico, ou morrer… é aquele momento. Isso é entre 72 horas e 21 dias. Depois de 21 dias, passa. Se não passou, não passa mais. Fui sedado, foi diminuindo, vão tirando a pressão continuamente, vão te dando líquidos, vão te dando açúcar, aumenta a taxa de glicose no teu sangue, vão trabalhando o meu fígado… Passei por isso e entrei em síndrome de abstinência. Eu tinha oscilação de pressão muito grande e parecia que o meu globo ocular ia sair pra fora e a minha cabeça ia explodia. Então eu perdi a audição e a imagem desfocava. Parecia que todo o sangue do meu corpo ia pra cabeça, ficava com a cabeça vermelha. E o meu coração batia muito rápido e parava. Sofri pra caralho. Nos primeiros 45 dias eu achei que não fosse mais conseguir sair dessa. Mas eles vão te dando informação: começam a te explicar que você não está sozinha, que não é só você que tem isso, que você fica louco, que você morre precocemente, que isso não é uma ficção, que o fim de quem usa droga e têm predisposição a desenvolver dependência é instituição, prisão e morte precoce. Pode demorar cinco, pode demorar dez, pode demorar 20 ou 40 anos: o fim é esse. Agora, se a pessoa não tem a predisposição física, tudo bem, pode cheirar, fumar, beber, que não tem problema. Mas 10% da população tem a predisposição para desenvolver dependência química -física ou psicológica-, seja ela com tranquilizantes, cocaína, maconha, álcool com o que for. E quem tem, o fim é esse. Daí você vai vendo, isso vai te confortando. De um filho da puta, sem vergonha, você passa a ser um doente. E posso transar, dançar, posso pegar onda, posso fazer tudo, só não posso usar substância química, nenhuma substância química que altere o meu humor, que aja sobre o meu sistema nervoso central. E não só isso. Além de não poder usar, tem que ter uma conduta de vida. Eu tenho que ter regras, tenho que ter disciplina, tenho que ter responsabilidades, tenho que estar me percebendo, tenho que estar me conhecendo interiormente, tenho que estar me auto-analisando todo dia, por que eu tenho que mudar o meu modo de vida. Então eu reduzi a minha jornada de vida para um dia de cada vez, 24 horas. E durante essas 24 horas você se propõe a não usar químico. Se você for pensar na palavra “nunca” -para quem em dois terços da vida só usou droga-, fala que nunca mais eu vou me drogar é muito pesado.

Há quanto tempo você está limpo?

Faz 115 dias, quase quatro meses.

E como é, você tem ido a festas, tem se divertido, ou se distanciou de tudo?

Num primeiro momento você tem que se distanciar, evitar velhos hábitos, velhos lugares. Não que você não possa sair. Mas por exemplo: eu ia toda noite numa determinada casa noturna e saía sempre com determinado grupo. Acontece que esse grupo e esse lugar estão tão relacionados ao uso que não tem motivo para voltar lá, uma vez que eu parei de usar. Eu posso ir em outro lugar. Não tem motivo para não ir a um bar ouvir um jazz. Só que de preferência que eu vá com alguém que entendo o meu problema e que me dê abertura, que não vá ficar a noite inteira me enchendo com papo de droga.

Como foi o Carnaval?

Eu brinquei o Carnaval tranquilo, dei risada, me diverti. Eu não comi ninguém; antes todo Carnaval eu tinha que comer alguém. Mas era assim: enchia a cara, ficava meio louco, encostava numa louca no final da noite e parava numa praia, num canto, depois nem sabia o que tinha acontecido. E isso já não aconteceu. Eu passei a ter seleção. Já olhava e falava: “Puta, olha o estado dessa mulher!” Você começa a ficar mais seletivo. E por estar assim, as pessoas que me conheciam -principalmente onde eu estava, em Maresias, que eu fiquei dois anos completamente drogado- te olham e conhecem o drogado, o bêbado, o cheirado, o louco, o que traficava, e não eu. As pessoas te abordam e não perguntam o que você está fazendo da vida, se você está legal, bem da saúde. Já chegam perguntando da “parada”. Só para você ter uma ideia, eu estava num bar tomando um suco de laranja, e toda vez que eu ia ao banheiro ia alguém atrás, achando que eu ia usar. Mas o que eu posso fazer? Infelizmente, eu vou ter que conviver com isso. E não adianta falar que eu parei, porque eu já disse isso. Então eu falo simplesmente que “hoje eu não estou usando, estou acabado de ontem, cheirei que nem um louco…” E daí? Eu não mentia para usar? Minto para não usar também.

Você não dá explicação para ninguém.

De maneira nenhuma. Mas dá para se divertir: dancei, ri, fiz novas amizades, fiquei um pouco tendo -lá me deu vontade de usar. eu fiz churrasco em casa e até tinha um cara tomando whisky, cerveja. Eu não posso proibir ninguém de beber do meu lado. Eu não sou contra quem bebe, eu não sou contra droga, não sou contra quem usa. Só sou a favor de quem quer parar. Sou a favor do respeito da decisão, da opinião que cada um tem. Se eu tomei essa decisão -porque se não tomasse ia ser caixão mesmo- então procuro pessoas que entendam. Mas quem sou eu para poder mudar alguém?

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