O streaming sagrado

por alexandre matias

Laerte, Clarice Falcão, Gregório Duvivier e outros humoristas brasileiros falam da importância do grupo Monty Python para a história

Às vésperas de completar meio século de vida, o Monty Python, um dos nomes mais importantes da cultura popular moderna, está se preparando para voltar ao inconsciente coletivo. É que o grupo inglês Monty Python acaba de anunciar um acordo global com o serviço digital de distribuição de vídeos Netflix. A intenção é, aos poucos, colocar a obra completa na plataforma. Por enquanto, apenas três dos longa-metragens do grupo (Monty Python e o Cálice Sagrado, A vida de Brian e O sentido da vida) estão disponíveis, porém, a grande novidade é a íntegra da primeira temporada do programa de TV que inaugurou a história do grupo, em 1969, e é exibida pela primeira vez no Brasil.

“Acho que o Monty Python tem muito a ver com Beatles, eles têm uma importância parecida. O que os Beatles fizeram pra música, eles fizeram pro humor, não à toa eram de uma mesma época”, acredita o humorista Gregório Duvivier, que também escreveu um dos textos de abertura da versão brasileira da autobiografia do grupo, o recém-lançado Monty Python - Uma Autobiografia Escrita por Monty Python (Realejo Livros). “Mas acho que a grande contribuição deles, ao contrário da dos Beatles, que trouxeram o LSD para a música pop, era a lucidez. São pessoas muito lúcidas: um é professor de história, outro de literatura inglesa, tem um médico. Eles fazem humor a sério. É um humor que não está calcado na interpretação engraçada, mas no texto. Até hoje eu vejo gente achando que o texto na comédia é só uma base pra improvisar, pro humorista fazer gracejos em cima de uma base que não importa muito — 'esse texto é só indicativo, lá na hora você faz suas graças'. O Monty Python tem um grande apreço pelo texto, eles sempre discutiram muito as piadas.”

Formado pelos ingleses John Cleese, Eric Idle, Terry Jones, Graham Chapman e Michael Palin e pelo norte-americano Terry Gilliam, o grupo revolucionou o humor moderno ao colidir o absurdo com a formalidade. “A influência do Monty Python vem do absurdo, mas não só, mesmo porque já existia o teatro do absurdo muito antes, mas sobretudo na interpretação comedida e realista do absurdo. Tem o absurdo e um pé no chão, e através dessa tensão entre o absurdo e a realidade, gera um constrangimento muito cômico”, continua Duvivier.

Além dos filmes e do seriado, a parceria entre Monty Python e Netflix ainda trará novidades como apresentações ao vivo (como o o show que o grupo fez quando retornou à atividade em 2014 e o já clássico Live at the Hollywood Bowl), documentários (The Meaning of Monty Python, Monty Python Conquers America e The Meaning of Live), coletâneas divididas por ator (Best Bits), um especial feito para a Alemanha (Monty Python’s Fliegender Zirkus, gravado em alemão) e o filme What About Dick?, de Eric Idle.

Não há previsão de quando esses outros programas (e outros filmes) entrarão na programação do serviço, mas a expectativa é que até o final do ano todo o catálogo do grupo esteja disponível online.

O cartunista e roteirista Arnaldo Branco endossa. “Com certeza o lance dos personagens nos esquetes reagirem com cara de nada aos maiores absurdos foi minha introdução ao conceito de deadpan, que é perfeito pro Brasil, onde a gente perdeu a capacidade de se chocar com o noticiário”, conta. Para a atriz e cantora Clarice Falcão, destaca-se hoje o legado de liberdade criativa deixado por eles aos outros humoristas. “Acho que eles me influenciaram — e a toda uma geração — a ser mais livre como autora. A gente aprende cedo que a composição de uma piada é apenas set up x punchline, e depois de conhecer Monty Python comecei a ter vontade de esbarrar — e às vezes entrar de cabeça — no nonsense”, diz.

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O grupo foi criado no final dos anos 60 com uma série de TV exibida pela BBC. Monty Python’s Flying Circus estreou no dia 5 de outubro de 1969, um domingo à noite, e tornou-se um sucesso quase instantâneo ao parodiar o estilo de vida britânico sem caricaturas fáceis ou estereótipos clichê. “Essa caricatura da pessoa britânica é bastante popular”, conta a quadrinista Laerte. “Talvez tenha sido cultivada por franceses — lembro de um livro que li, de Pierre Daninos, onde aparecia o inglês ‘típico’, já num tratamento humorístico — o Major Thompson. Acho que o Monty Python fazia caricaturas dessa caricatura de inglês, mesmo através de um humor feito por ingleses.”

O seriado seguiu até 1972 e o grupo aos poucos se aventurou pelo cinema, primeiro com uma antologia de quadros feitos para a TV refilmados para o cinema (E agora para algo completamente diferente, de 1971) e depois com os filmes Monty Python e o Cálice Sagrado (1975), A vida de Brian (1979), Ao vivo no Hollywood Bowl (1982) e O sentido da vida (1983). A mistura de erudição, subversão, nonsense e controvérsia atravessou toda a carreira do grupo e a chegada ao cinema os apresentou para o público norte-americano e para o resto do mundo.

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“Lembro quando soube da existência deles, lendo O diário de um cucaracha, do Henfil, uma coletânea das cartas que ele escreveu quando morava nos Estados Unidos nos anos setenta — o Henfil descrevia a ideia geral do programa, chocado que uma parada que pegava tão pesado com a ideia de Deus passava na TV americana”, lembra Arnaldo, sobre a demora do grupo em chegar ao Brasil.

“Acho que o Monty Python ensinou a desenvolver um olhar meio cômico sobre tudo de ridículo e inerente à sociedade. Aquele esquete da entrevista de emprego idiota é um exemplo.  Textos imensos. Timing de piada”, continua a quadrinista Fabiane Langona, que ainda reforça a importância do integrante norte-americano do grupo, o animador Terry Gilliam. “A estética dessas animações parece sempre ter feito parte da minha memória por osmose, muito antes de eu ter qualquer ideia do que era Monty Python”, lembra.

Clarice reforça a seriedade do grupo também do ponto de vista musical. “A primeira sequência que vi deles foi o começo d’O sentido da vida, com a canção do esperma, que me marcou profundamente. Era um número musical levado muito a sério e hilário. Acho que pra uma música ficar engraçada ela tem que ser levada a sério. O Eric Idle especialmente fazia isso muito bem”, explica.  “Conheci mais profundamente o Monty Python, também por conta da amizade do grupo com o George Harrison — que armou uma produtora e hipotecou a casa pra bancar A vida de Brian”, continua Fabiane. “Adoro essa amizade. E acho que humor X música tem tudo a ver, ainda mais se tratando desse pessoal.”

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“Humor é sempre ligado à circunstância — é difícil rir do mesmo modo com que se ria ao ler Jonathan Swift, ou Voltaire”, continua Laerte. “Mas as chaves que o Monty Python nos deixou abrem ainda muitas e muitas portas, isso é verdade.” “Eles continuam muito atuais. Eles estão no nível dos grandes humoristas que são eternos, como Chaplin e Buster Keaton”, emenda Duvivier. “Eles riem do humano, não do que acabou de acontecer essa semana. Não é humor de revista, trocadilho com o nome do presidente ou piada com uma coisa que acabou de sair do jornal. O humor deles é muito ancorado na realidade, no humano. Por isso que eles são tão duradouros, porque eles riem da condição humana — e também daqueles que estão no poder.”

“E as pessoas de quem eles riam continuam no poder. A religião católica, de quem eles riram tanto, não só a católica, mas o cristianismo e os falsos profetas, continuam no poder — e continuam processando”, continua Gregório. “O Porta dos Fundos têm três processos de associações católicas, sem contar as denúncias do Marco Feliciano e de outros pastores. Os mesmos falsos profetas continuam no poder, o que faz que o Monty Python continue relevante e influenciando tanta gente." Arnaldo Branco concorda: “Sim, tem um conservadorismo tacanho que quer transformar piadas sobre religião — que eu até achava que haviam alcançado seu ponto de saturação — em material subversivo novamente. Vamos a elas, então”.

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