Como Adão e Eva e as grandes corporações traduzem nossa fé cega
Caro Paulo,
“... Estou apenas cumprindo ordens.” Sempre que ouvi essa frase, tive a sensação de estar assistindo ao suicídio intelectual e espiritual de um ser humano.
Se Adão e Eva tivessem perguntado a Deus por que estavam proibidos de comer o fruto da árvore do conhecimento, poderia ter havido uma negociação ganha-ganha para chegar a algo que fosse bom para os quatro: Adão, Eva, a serpente e Deus.
Mas, não, Adão e Eva não perguntaram nem cumpriram as ordens de Deus. Foram punidos com a expulsão do paraíso, que era aquela vida boa e medíocre, sem conhecimento, sem consciência nem responsabilidade, desde que fossem submissos e obedientes às ordens de uma hierarquia toda poderosa, bondosa e generosa.
O Deus daquela narrativa queria uma fé cega, tanto que o efeito da desobediência de comer o fruto foi o casal abrir os olhos e perceber a nudez (e a beleza do paraíso! – comentário meu, e não do narrador).
O triste é que o contrato proposto por aquele Deus no começo dos tempos ainda está valendo e até hoje inspira muitas organizações dos mais diferentes setores e ideologias: você obedece de olhos fechados sem perguntar por que e, em troca, o chefe garante segurança e vida boa para sempre.
Este contrato está no cotidiano das fábricas, das lojas, das famílias, das igrejas, dos governos, dos partidos... Esta é a explicação para pessoas corretas fazerem coisas erradas dentro das estruturas hierárquicas corporativas. Este é o segredo das gangues institucionais de corrupção. Esta é a força que tem o conforto do não saber.
“Estamos vivendo uma fase de nossa história em que o grande aprendizado será a definição do objeto de nossa fé. Eu escolho a vida e a ciência”
Ricardo Guimarães
Não graças àquele Deus, existe a fé inquieta e insatisfeita, curiosa e inconformada que questiona e pergunta, pergunta, pergunta, nunca para de perguntar porque acredita de verdade que existem respostas. Digo que essa é a fé do cientista, do artista e de todo aprendiz, a fé que faz evoluir, que inova e move montanhas porque produz conhecimento e tecnologia para mudar o cenário com eficiência, segurança, melhorando a vida das pessoas e do meio ambiente.
Por quê? Por quê? Por quê?
Vejo muitas organizações frouxas e estagnadas porque a hierarquia é respeitada demais e as pessoas se respeitam de menos. Não existe a tensão criativa do confronto, do questionamento, da evolução. A política fala mais alto que a ciência porque as pessoas acreditam mais na hierarquia do que nos fatos e dados. O fluxo de informação que garante a saúde da organização é substituído pelo silêncio conveniente ou a concordância cínica, o que leva ao desastre inevitável.
Sugiro assistir à premiada série Chernobyl (HBO) para entender como a política derrota a ciência. Ou veja nossos noticiários sobre Brumadinho, Ninho do Urubu, incêndios na Amazônia, óleo no Nordeste para entender por que o desastre acontece, mas o socorro não.
Estamos vivendo uma fase de nossa história em que o grande aprendizado será a definição do objeto de nossa fé. Eu, humildemente, escolho a vida e a ciência. O cientista Valery Legasov, em Chernobyl, diante dos políticos perplexos e da imensidão do desastre, reconhece: “O átomo nos torna humildes”. Eu concordo e algum Deus deve me abençoar por isso.
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