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Chernobyl e o turismo de tragédia

por André Fran

Diretor brasileiro conta, com exclusividade, sobre sua experiência na cidade ucraniana abandonada

Depois de  ver de perto a realidade surreal da Coreia do Norte e adentrar uma ditadura sanguinária na Arábia Saudita... eu, André Fran, junto com meus companheiros de viagem e de programa, Michel Coeli e Rodrigo Cebrian, decidimos encarar na nona temporada de nossa série de TV “Que Mundo é Esse?”, da Globo News, um desafio mais invisível e silencioso, porém não menos polêmico: Chernobyl.

O objetivo inicial era mostrar os problemas do passado e suas consequências para o futuro. Essa dualidade é a tônica da nossa temporada filmada na Ucrânia, um país na fronteira entre dois mundos. Passado e presente, Rússia e Europa, fascismo e comunismo. Serão 5 episódios retratando alguns dos mais complexos aspectos do país.

E logo em nossa primeira parada, nos deparamos com uma questão curiosa, importante e que, às vezes, passa despercebida em meio às pautas mais evidentes do lugar: o “turismo de tragédia”.

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Esse modelo de viagem vem ganhando espaço nos roteiros de viajantes que procuram um pouco de emoção em seus passeios pelo mundo. Programas de TV, agências especializadas e matérias na imprensa focam em destinos ideais para a prática de esportes radicais, safáris pela África ou trilhas ecológicas, mas esse local específico da Ucrânia extrapolou todos os limites deste conceito e se tornou o destino número um para “viagens exóticas”, como classificou a revista Forbes.

Em 2011, autoridades do governo ucraniano decretaram aberta ao turismo a usina nuclear de Chernobyl, onde, há mais de 30 anos, aconteceu o pior acidente nuclear da história. A explosão do infame Reator 4 em pleno funcionamento provocou centenas (especula-se milhares) de mortes e fez com que uma nuvem de radiação 400 vezes mais contaminada que a da bomba atômica de Hiroshima cobrisse a região e se estendesse por toda a Europa. A região ao redor da usina foi evacuada em um raio de 30 quilômetros que ficou para sempre conhecido como a “zona de exclusão”. E é lá que está localizada uma das grandes atrações do inusitado roteiro: a cidade de Prypiat, uma das mais proeminentes da região na década de 1980 e que, hoje, é o que se poderia chamar de uma autêntica cidade fantasma.

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A partir de Kiev, a viagem para Chernobyl é toda feita de forma oficial. O turista define suas datas com uma das agências autorizadas pelo governo e tem garantidos transporte da capital até o local (uma viagem de carro que dura pouco mais de uma hora e meia), hospedagem dentro da zona de exclusão e um guia que o acompanha por todo o trajeto, dando informações e alertas de segurança. A presença indefectível de um medidor de radiação também é mandatória – e o apito intermitente que o aparelho faz ainda segue no ouvido do viajante dias após ele ter deixado as imediações. 

Obrigatoriamente, o tour deve ser realizado em, no máximo, dois dias. Outras medidas de segurança recomendadas e que “supostamente” minimizam a contaminação durante a sua estada são: usar roupas que cubram a maior parte do corpo possível, não tocar em nada e não se aventurar para além da rota determinada pelo guia. A variação de radiação em pequenos deslocamentos é imensa, e o medidor (apitando sem parar) é a prova de que você está mesmo andando em uma espécie de campo minado.  

As atrações do roteiro se resumem a um passeio guiado pela cidade fantasma de Prypiat, com seus prédios abandonados, teatro, ginásio esportivo e o lendário parque de diversões – uma das visões mais emblemáticas e carregadas de significado. Cenas de jardins de infância, com livros ainda abertos nas escrivaninhas, máscaras de oxigênio abandonadas pelo chão de uma escola e a forma como a natureza invadiu ruas, praças e prédios inteiros formam um panorama impossível de encontrar em qualquer outro roteiro. Extremo ou não. 

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Se você tiver reservado o tour de dois dias, pode incluir uma visita a uma das poucas famílias que vivem dentro da zona de exclusão – em geral, senhoras de idade. Elas são as Babushkas de Chernobyl. Humildes agricultoras que voltaram às suas casinhas por teimosia ou falta de opção e lá permanecem isoladas do mundo. Além dos turistas cada vez mais frequentes, só é possível esbarrar com alguns trabalhadores que atuam na manutenção do “sarcófago” (como foi apropriadamente batizado) responsável por vedar o defeituoso Reator 4, que segue emanando radiação e é o ponto final e “clímax” do passeio. 

É possível chegar a uma distância de menos de 50 metros do centro do caos nuclear de Chernobyl. Informações desencontradas avisam que o tempo máximo de permanência próximo àquele vórtice de radiação não ultrapasse os 20 minutos (alguns anos atrás, o tempo recomendado era de meia hora. Enfim, seja o tempo que for, fique por sua conta e risco.) 

A possibilidade de conferir com os próprios olhos a capacidade criativa (gerar energia através do complexo processo de fissão nuclear) e destrutiva (até hoje, as reais consequências e medidas de contenção do desastre não podem ser efetivamente calculadas) do homem por meio desse cenário aterrador continua atiçando a curiosidade de turistas extremos de todas as partes do mundo. E gerando dividendos para o governo ucraniano, que acaba de formalizar o local como atração turística oficial da Ucrânia. 

Sem dúvida, os cenários são inacreditáveis. E o limite entre as lições históricas que podem ser aprendidas no passeio e a selfie pra lacrar às custas da memória de um episódio traumático para todo um povo, é tênue. É importante que os curiosos tenham isso em mente.

Vai lá: “Que Mundo É Esse?”, no Globosat Play

Créditos

André Fran é diretor, escritor, palestrante e apresentador do programa "Que mundo é esse?", exibido na Globo News e disponível no Globosat Play.

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