por Milly Lacombe
Trip #281

O reino da liberdade começa no momento em que o reino da necessidade é deixado para trás

Tenho dúvidas em relação à existência de Deus, mas, se Ela existir, imagino que seja bem-humorada. Não exatamente com aquele tipo de humor que faz você se dobrar no chão de tanto rir; mas um tipo mais sóbrio, que faz você dar uma risada de canto de boca enquanto pensa: “Ah, entendi. Muito inteligente sua sacada”. Soube que Ela tinha esse humor quando percebi que me senti livre no mesmo instante em que me encontrei inauguralmente triste. Nunca antes havia me sentido tão triste ou tão livre. Naquele momento, liberdade e tristeza dependiam uma da outra para existir em mim; Deus, sua lôca.

Aos 45 anos, tendo sido traída e deixada depois de um casamento de dez anos, me vi quase sem nenhum dinheiro para chamar de meu, sem um teto que não fosse o da minha mãe, sem perspectivas e absurdamente sozinha. Ainda assim, livre. Livre para recomeçar, sonhar, pensar, sentir e existir de uma forma totalmente nova. Eu era uma página em branco e, estranhamente, isso me estimulava, ainda que de mim só saíssem lágrimas e desespero. É como escreveu Proust: temos tantos interesses em nossas vidas que não é incomum que as fundações de uma alegria que ainda não existe estejam alinhadas à intensificação de uma angústia pela qual ainda estamos passando.

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Só que ao contrário

Hoje, tendo passado de olhos abertos pelas noites escuras da minha alma, posso bater no peito e cantar com Elza: “Ali onde chorei, qualquer um chorava. Dar a volta por cima que eu dei quero ver quem dava”. Ter encarado a solidão, o fracasso e a mais completa sensação de abandono me fez entender a liberdade de um jeito radicalmente diferente daquele que me tinha sido ensinado, de que era fazer o que eu bem entendesse, na hora que eu bem entendesse, como eu bem entendesse.

Essa é a liberdade sobre a qual aprendemos, e que alguns chamam de “ligar o foda-se”; aquela que o neoliberalismo entende como suprema, individual, pessoal, intransferível. Uma liberdade que permite que você tenha uma arma em casa, ganhe rios de dinheiro sem precisar investir socialmente, derrube quantas árvores bem entender para erguer sua mansão, pesque em área de reservas naturais, lucre durante calamidades públicas e, em nome de ser honestão com seus sentimentos mais sombrios, ofenda e humilhe outra pessoa pela cor da pele, gênero, sexualidade ou classe social.

Essa é a liberdade que querem nos fazer acreditar ser a única pela qual podemos lutar: uma que implica a menor participação possível do Estado, a eliminação de regulações, de qualquer amarra social, de qualquer dever moral – a minha liberdade, a da minha família, acima de todas as coisas e de todas as outras. Ser livre para matar se qualquer uma de minhas propriedades for ameaçada pela bandidagem, seja uma casa, um carro, um celular ou uma mulher.

Mas é quando você está morta, quando passou a ser o nada, invadida pelo vazio mais absoluto, que pode entender uma coisa bastante básica e que, infelizmente, não é ensinada nas escolas: o reino da liberdade começa no momento em que o reino da necessidade é deixado para trás. E isso vale para suas necessidades emocionais e para as mais básicas necessidades humanas.

Não há como ser livre quando se tem fome, ou se não temos acesso a recursos básicos, como saúde, educação, moradia e dignidade. Assim como não há como ser livre se sua respiração depende do olhar de uma outra pessoa, se sua existência depende da aprovação de alguém, sem que possamos investigar quem somos, o que buscamos e o que queremos realizar nessa vida, sem que tenhamos a chance de ter nossas capacidades e poderes contemplados e libertados. E não há como ser livre se precisamos trabalhar 15 horas por dia para pagar contas enquanto poucas pessoas acumulam riquezas sem precedentes na história da humanidade.

Ao contrário do que nos dizem, liberdade não é um conceito pessoal e intransferível, mas, sim, o exercício de enxergar o outro, de entender suas necessidades e suas batalhas, de permitir que todos possam exercer suas criatividades e conviver dignamente. Liberdade envolve consciência, empatia, disciplina e é irmã siamesa da justiça social.

Que tipo de liberdade queremos? Aquela que diz que a propriedade privada é o sustentáculo de todas as coisas e que é cada um por si e por suas posses, ou aquela que diz que, sem justiça social, não haverá liberdade porque, afinal, estamos todos juntos nessa aventura?

Existem experiências e condições que nos definem: o fracasso, a dor, o sofrimento, a solidão, a emoção, o medo, as sombras, os sonhos, a paixão, o desamor, o amor. Não importa quanta riqueza tenhamos conseguido acumular, essas são condições inescapáveis. Não há como tirar a tristeza da experiência humana. E, mesmo que houvesse, essa não seria uma alternativa, porque é quando mergulhamos na escuridão que temos a chance de amadurecer, de crescer, de nos tornarmos melhores, mais humildes e mais fortes. Ao espantarmos nossos demônios, mandaremos com eles embora também os anjos (Deus, sua lôca).

O que precisa acabar é o sofrimento social, para que todos nós tenhamos, enfim, a chance de sofrer os sofrimentos certos e, juntos, nos elevarmos a um lugar de mais beleza, poesia e significado. Para que todos nós tenhamos, como eu tive, o privilégio de mergulhar na mais completa sensação de abandono e solidão, se recolher e se investigar, e, a partir do vazio, renascer livre e forte para uma vida nova.

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