Um rolê na quebrada do Caverinha

por Douglas Vieira

O fenômeno do trap bate um papo sobre sua ainda breve (mas já gigante) história e lança em primeira mão na Trip o clipe de ”Só não pisa no meu boot”

Daria um filme. Há pouco menos de um ano, às seis horas da manhã, um oficial de justiça chegou sem avisar à casa de Charlene e Rubens e seus seis filhos. Ele estava acompanhado da polícia e de um trator. A família foi para a porta e teve muito pouco tempo para tentar salvar alguma coisa. “Ficaram pra trás as camas das crianças, os guardarroupas, a casa... Foi tudo pro chão. Foi um dia muito triste”, lembra Charlene.

Corte para outra cena. No dia 26 de janeiro deste ano, um garoto de 10 anos faz seu segundo post no Instagram, cantando uma música no quintal: “Sempre trampando ganhando dinheiro / Desde menor tô fazendo meu corre / Um dia dou uma casa pra minha mãe / Sem precisar segurar num revólver”. O verso de "Favelado também pode" é consciente de que ter uma arma na mão não é o melhor caminho, mas o vídeo correu na velocidade de uma bala. Hoje, dia 4 de abril, este post beira as 600 mil visualizações.

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Deu um rap. “Meu nome é Kauê. Eu canto e só.” É só e é muito. Ele ainda estava tímido no começo da conversa com a Trip — estávamos em quatro pessoas dentro dos quatro cômodos que divide com cinco irmãos e os pais, em Mogi das Cruzes, no conjunto Santo Ângelo. Lá onde ele mora, não se chega de carro, que fica parado na entrada da comunidade. Dali em diante, só se anda a pé. 

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Kauê já foi Kalil, mas agora é MC Caverinha. Aos 11 anos, completados dia 13 de março, ele é um fenômeno da cena trap e, com três músicas prontas e mais umas duas ou três em processo, ele já coleciona admiradores de peso dentro do rap (Djonga, Baco Exu do Blues, Rincon Sapiência, Dfideliz) e fora dele (Cleo Pires e Gabriel Medina) —  e ainda há muitos outros famosos entre os mais de 360 mil seguidores que conquistou em pouco menos de três meses no Instagram. “É daora. Eles compartilham. Aí vai subindo, subindo… E vai ter uma hora que eu vou ficar muito famoso.”

A urgência da música é a urgência da vida. A preocupação do menino com a fama não é só ser conhecido, é encontrar uma saída. Entre a derrubada da casa em que moravam, algumas vielas abaixo de onde estamos conversando, e a casa em que estão agora, a família morou inteira em um cômodo, dentro do bar de um amigo, alugado de maneira temporária até encontrarem um lugarzinho à venda na mesma favela e entregarem o carro que tinham como entrada. "É por causa disso que ele fala tanto de me dar uma casa. Foi muito difícil pra ele no dia que derrubaram tudo. Quando acabou, ele subiu no que sobrou da casa, chorou, e cantou", conta a mãe. 

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E daí, e de muitas outras situações assim, vem a necessidade que tem de perseguir o sucesso. "Fazer dois mil de compras lá em casa / Fazer 10 K de compra lá no shopping / Sacar meu placo na frente dos rico / E gritar favelado também pode", canta na sequência da música que o fez estourar na rede social. 

Hoje, a família está toda radiante com o garoto e contam orgulhosos da trajetória já cheia de curvas de sua carreira artística, surgida de modo espontâneo.

Onde está Kauê, está Kaíque, o mais velho dos seis filhos de Charlene, com 19 anos. Ele é ídolo, referência e parceiro de Caverinha. "A gente senta, pega uma caneta e escreve a música", conta o MC sobre o processo de criação que mantém com o irmão, com quem também escolhe diariamente como vai se vestir. "Ele brinca e até chama de pai", conta Charlene. Na sequência, o MC lembra que foi em um show de Kaíke numa Fábrica de Cultura que ele começou a cantar.

Na época, aos 6 anos, ele era dançarino no show do irmão, que era o responsável pelas rimas no início de uma agora interrompida carreira no rap. Nesse dia, ele chegou e avisou no meio da apresentação que queria cantar. O mais velho perguntou se ele conseguia e, diante do sim, cedeu o espaço. O garotinho pegou o microfone já chamando o público pra chegar junto. Cantou pra não mais parar.

Os convites para participar de shows de artistas famosos na cena trap de São Paulo começaram a aparecer. No Instagram, os registros mostram que, mais do que participação, a presença dele é a atração. Em um dos vídeos, a galera em peso no show do Matuê canta os versos de "Não pisa no meu boot", que tem seu clipe lançado hoje (dia 4 de abril), às 19h, no canal oficial do Caverinha no YouTube. Mas a Trip adianta e publica acima o vídeo em primeira mão.

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Ele não se deslumbra com o sucesso, mas se deslumbra com os encontros. Ainda é realmente um menino quando lembra do espanto e alegria que sentiu ao receber o contato de artistas que até então eram seus ídolos. "Caramba, eu tô falando com o Dfideliz", lembra, sobre a primeira ligação do agora parceiro em uma nova versão de "Favelado também pode". Caverinha também tem estado em contato com Djonga, com quem está combinando um encontro. Aos poucos, ele cola com quem escrevia as músicas que ele próprio escutava. "Mano, Djonga e Dfideliz, eu me inspiro de verdade neles. A música é boa e eles são daora", conta.

Eles, assim como o irmão Kaíque, o inspiraram a escolher a carreira no trap em vez de se perder nas inúmeras e possíveis escolhas erradas. E ele vai conquistando o espaço de ser ele próprio a inspiração para outros. “O que me motivou a fazer rap foi passar uma visão pros moleques da quebrada, da minha idade, pra não fazer nada de errado”, conta sobre suas composições, inspiradas em tudo que está ao seu redor. “Tudo que você vê, tudo que você escuta, tudo é música, é rap. A gente pega a caneta e escreve a música.”

"Eu vou conseguir" é uma frase que o garoto repete como um mantra ao lembrar dos passos que deu na música. Sobre começar a dançar: "Eu via os garotos dançando e pensava: 'Um dia eu vou conseguir dançar assim'". Sobre começar a cantar: 'Eu ouvia rap e pensava: 'Um dia eu vou conseguir cantar assim'". E ao fim de cada explicação sobre o que faz: "Eu vou conseguir dar uma casa pra minha mãe".

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Essa busca vem com ele desde os versos da primeira música que publicou na internet, "Eu vou na fé", na época ainda um funketon, e não trap. No clipe, ele, então com 9 anos, estava com a mãe e cantava versos como: "Eu vou na fé / Vou batalhar / Quem sabe um dia eu consigo chegar lá / Vou ajudar quem precisar / E o meu sonho é fazer a quebrada cantar".

E assim ele vai, na fé, no beat, no flow e cada vez com mais gente seguindo cada um dos seus passos. "Um menino chamado Caverinha / Um neguinho da periferia / Onde tua estrela brilhou..."

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